Por Adriano Benayon –
26.08.2012
No clássico samba Chão de
Estrelas, de Orestes Barbosa, o verso fala em “palhaço de
perdidas ilusões”. No tango Mano a Mano, de Carlos
Gardel, este diz à que o deixa por um ricaço: “tenés el mate
lleno (a cabeça cheia) de infelices ilusiones” .
2. Mais infelizes são as
ilusões em que o sistema de poder concentrador enreda o nosso
povo, depois de montar bombas-relógio que têm causado enormes
estragos antes mesmo de detonarem.
3. Entre outras, a dívida
interna federal, que atingiu, no final de 2011, R$ 2.536.065.586.017,68
(mais de dois trilhões e meio de reais), e a dívida externa, US$
402.385.102.828,23 (mais de quatrocentos bilhões de dólares).
Esta, em parte privada, acaba virando toda pública em situações
como a de 1982.
4. A soma passa de três
trilhões e seiscentos bilhões de reais e corresponde a 83% do
PIB: o valor da produção interna de bens e serviços nos doze
meses do ano.
5.
Cerca de 30% dos títulos da dívida interna figuram como “em
poder do Banco Central”, mas este os repassa aos bancos nas
"Operações de Mercado Aberto". Aplicadores do exterior vendem
dólares para comprar desses títulos.
6. O Banco
Central fica com parte dos títulos para cobrir, com o
rendimento, o prejuízo de R$ 100 bilhões anuais (2011),
diferença entre os juros pagos pelos títulos do Tesouro e os
juros auferidos com as reservas brasileiras no exterior.
7. E a tragédia
da dívida pública não está só no tamanho dela e no gasto que
causa: R$ 708 de juros e amortizações em 2011.
8. O pior é que
mais de 90% provêm de juros, taxas e comissões incorporados ao
principal (capitalizados), ao longo do tempo, desde antes de
grande parte da dívida externa se ter convertido em interna, nos
anos 80, mesmo após o Brasil ter feito enormes desembolsos em
dólar.
9. Há mais.
Conforme dados da Auditoria Cidadã da Dívida, as despesas de
juros e amortizações (serviço da dívida) totalizaram R$
2 trilhões durante os mandatos de FHC (1995-2002) e R$
4,7 trilhões, durante os de Lula (2003-2010).
10. Com as taxas
de juros mais altas do mundo e a dinâmica dos juros compostos, a
dívida cresce através da emissão de novos títulos em valor maior
que os liquidados, porquanto os juros e encargos estipulados
ultrapassam o que a União consegue saldar.
11. Nos
últimos 17 anos, o serviço da dívida custou R$ 7,4 trilhões.
Nos 7 anos anteriores, de 1988 a 1994, ele somou R$
2,84 trilhões, já aproveitando o dispositivo inserido na Constituição,
através de fraude, o qual privilegia o serviço da dívida no
Orçamento.
12. O montante da
dívida não equivalia então nem a 10% do presente, mas o “governo
brasileiro”, aceitando o vergonhoso Plano Baker, emitiu títulos
e fez pagamentos em volume espantoso, para cobrir dívidas
atrasadas e abusivamente infladas.
13. De fato, em 1989
e 1990 o serviço da dívidacustou R$ 1,57
trilhão. Essa média anual, R$ 785 bilhões, em cifras
atualizadas a preços de 2011, supera o custo atual, embora o
principal fosse naquela época dez vezes menor que hoje .
14. O serviço da
dívida, correspondendo atualmente a 45% do total das despesas
federais, equivale a 17% do PIB. Nem tudo isso é desembolsado,
mas o que não o é, vai elevando o montante da dívida.
15. Seria bem
melhor criar moeda e crédito em bancos próprios, para investir
produtivamente, que endividar-se para rolar dívidas financeiras
e, de resto, nunca auditadas. Portanto, o Brasil poderia quase
dobrar os investimentos (19% do PIB), chegando ao patamar dos
países de maior poupança, como China, Taiwan e Coreia.
16. Imagine-se o
progresso, se não se despendessem - há mais de 35 anos - verbas
absurdas com a dívida. Mormente, se se investisse certo, em vez
de subsidiar as transnacionais, como o Brasil faz há 58
anos, desde 24 de agosto de 1954.
17. Os países
citados, com potencial menor que o do Brasil, tiveram resultados
incomparavelmente melhores, porque fizeram investimentos
estatais, com crescente autonomia tecnológica, e ajudaram
as empresas nacionais, não as transnacionais. Essa
política econômica levou-os a tornarem-se credores, enquanto o
Brasil ficou refém da dívida.
18. Chegamos aqui
à verdadeira origem da dívida. Esta resulta
da acumulação dos déficits nas transações correntes com o
exterior, os quais, por sua vez, decorrem
das remessas oficiais e disfarçadas dos lucros que as empresas
transnacionais auferem no mercado brasileiro, que
lhes foi entregue a partir de 1954.
19. Além da
ocupação do mercado por carteis transnacionais, contribuíram
para a explosão da dívida:
a) o
financiamento externo dos investimentos na infra-estrutura e nas
indústrias de base, realizados em apoio à indústria “nacional”,
cada vez menos nacional;
b) os choques dos
preços de petróleo (1973 e 1979), quando o Brasil era
importador;
c) a elevação dos
juros em dólar pelo FED, em agosto de 1979, de menos de 10% para
mais de 20% aa.
20. A
desnacionalização da economia - causa primordial da dívida e da
desestruturação do País - ganhou corpo a partir de 1954, quando
agentes da oligarquia, Eugênio Gudin e Otávio Gouvêa de Bulhões,
assumiram o comando da política econômica.
21. Baixaram a
Instrução nº 113 da SUMOC, que permitiu às transnacionais (ETNs)
importar máquinas e equipamentos usados,
registrando-os como se fosse investimento em moeda.
Assim, as ETNs puderam produzir a custo zero de capital
e tecnologia, pois tais bens de capital estavam mais
que amortizados com as vendas no exterior.
22.
Evidentemente, as transnacionais não declaravam valor zero. De
1957 a 1960, sob JK - que manteve os subsídios e ainda lhes deu
maiores facilidades – as montadoras e outras transnacionais
registraram quase US$ 400 milhões (US$ 3,3 bilhões, atualizando,
conforme a variação, brutalmente subestimada, do IPC dos EUA).
23. Não bastasse,
as transnacionais favorecidas por aquela Instrução
contabilizavam à taxa de câmbio livre o equivalente, em moeda
nacional, ao investimento registrado e convertiam lucros e repatriações de
capital à taxa preferencial, quando das remessas ao exterior.
Isso significava mais que dobrar o valor transferido.
24. Florescentes
indústrias de capital nacional surgiram em grande número, na
primeira metade do Século XX, principalmente na Era Vargas.
Depois de 1954, em vez de serem protegidas, foram prejudicadas
pela política econômica.
25. Em 1964,
Roberto Campos tornou-se czar da economia. Bulhões, ministro da
Fazenda. Que fizeram? Pretextando combater a inflação, em alta
com a desestabilização anterior ao golpe patrocinado pelos
serviços secretos estrangeiros, reduziram os investimentos,
elevaram os juros e restringiram o crédito: o suficiente para
eliminar do mercado grande número de empresas nacionais.
26. Costa e Silva
e Médici reeditaram o falso milagre de JK, e Geisel tentou o
mesmo. A ressaca foi ainda mais dolorida. Em 1960, o
endividamento externo quase levou à inadimplência. No final dos
anos 70, ela já era inevitável e aconteceu em 1982, juntamente
com a moratória do México e a da Argentina.
27. Delfim Neto,
em 1969-1970, instituíra vultosos subsídios às exportações
industriais, mais um maná para as transnacionais. Em 1982, de
volta ao governo, sob Figueiredo, mostrou-se arredio a
qualquer atitude que lembrasse soberania, e desprezou a
tentativa argentina de formar o cartel dos devedores.
28. Daí por
diante, não cessaram as capitulações, em notável continuidade
entre o governo militar e os governos instalados após a
Constituição de 1988.
29. Advêm nesse
ponto os colossais dispêndios com o serviço da dívida de
1989/1990, ditados pela mágica dos banqueiros mundiais: não
deixar acabar a dívida externa – apesar dos vultosos pagamentos
– e ainda extrair dela a dívida interna, que cresceu
exponencialmente a partir dos anos 80.
30. Entretanto, a
coisa não parou aí. Num processo de retro-alimentação perene: a
estrutura de mercado, em poder de empresas estrangeiras,
causando déficits externos e endividamento, e este gerando
ocupação ainda maior do mercado por essas empresas.
31. Isso
culminou, a partir de 1990, com:
1) as
“privatizações”: entrega de estatais, de valor incalculável, em
troca de títulos sem valor (moedas podres), com
desnacionalização imediata ou a médio prazo, em razão da
dinâmica do modelo concentrador;
2) a
desestruturação do próprio Estado, tornando-o desprovido de
instituições capazes de guiar o desenvolvimento econômico e
social, e fazendo-o substituir servidores comprometidos com o
País por agentes externos.
32. Com a
estagnação, acentuada após a crise de 1982, a taxa de
investimento ficou baixa, e os investimentos continuaram mal
direcionados.
33. Mesmo sem
crescimento econômico, os fatores do endividamento continuaram
operando, até, em 1999, final do primeiro mandato de FHC,
eclodir outra crise externa, ocultada até o desenlace, após a
reeleição viabilizada pela corrupção para a emenda à
Constituição.
34. Nos mandatos
de Lula e no de Dilma, elevaram-se as taxas de crescimento do
PIB, com a expansão do crédito, especialmente público, e
navegando sobre preços mais altos nas exportações primárias.
35. Então se
formaram bolhas e, a cada sinal de exaustão, o governo reage com
pacotes que intensificam a deterioração estrutural da economia,
em curso desde 1954 e agravada desde 1990. De fato, em 1970
oligopólios de transnacionais já controlavam o grosso da
indústria, e depois foi quase todo o restante.
36. Os
expedientes para o “crescimento” subordinam-se aos dogmas do
Consenso de Washington, tais como parcerias público-privadas,
nas quais o dinheiro público financia os empreendimentos e
assume o risco, cabendo a gestão e lucro garantido a
concentradores privados. Na mesma linha, os créditos subsidiados
do BNDES às transnacionais - e novas isenções fiscais e doações
em favor destas - refletem o estado patológico das relações de
poder.
37. FHC fez
desnacionalizar como ninguém, mas, segundo a Consultoria KPMG,
de 2004 a junho de 2012, mais 1.167 empresas brasileiras
passaram para controle estrangeiro.
38. Mais do que
as fusões e aquisições, os investimentos estrangeiros
diretos (IEDs) – onde se computa também o
reinvestimento de lucros - são o principal mecanismo
da desnacionalização.
39. O estoque de
IEDs acumulado de 1947 a 2005 montou a US$ 180 bilhões, e só
os de 2006 a 2011 superam esse montante, com US$ 192,7
bilhões.
40. No mesmo
período,os déficits de “serviços” e “rendas” aumentaram
114%. Somaram US$ 345,4 bilhões nesses seis anos, quantia
equivalente a 93% do estoque de IEDs até 2011.
41. Os IEDs e
outras modalidades de capital estrangeiro têm equilibrado o
Balanço de Pagamentos, como o uso acrescido de drogas alivia o
toxicômano, i.e., agravando a doença estrutural da economia.
42. Assim, se não
forem revertidas as regras que o Brasil vem obedecendo
cegamente, as transferências das transnacionais levarão a uma
crise externa incontornável, a qual, se tratada como as
anteriores, fará elevar os juros e tornará a dívida pública
ainda menos suportável.
43. Está presente
também, em função da provável desvalorização do real, a
perspectiva de avultar ainda mais a já desbragada venda – por
nada - de empresas, títulos públicos e terras brasileiras.
44. De fato, por
imposição imperial, acatada por países submissos, o dólar
continua valendo como moeda internacional, não obstante ser
moeda falsa, aviltada por emissões às dezenas de trilhões,
passados aos bancos da oligarquia. O Brasil entrega tudo para
ficar com depósitos em dólares, fadados não só a perder valor,
mas também a sumir de repente quando se desencadear a fuga de
capitais.
* - Adriano Benayon é
doutor em economia e autor do livro Globalização versus
Desenvolvimento, editora Escrituras SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário