Débora Calheiros, da Embrapa Pantanal, foi perseguida pela
chefia local após divulgar estudos sobre impactos ambientais da
construção de 135 hidrelétricas na região. Liminar suspende
projetos em andamento
Pedro Rafael Ferreira,
de Brasília (DF)
Os impactos ambientais sobre a maior planície alagada do
mundo, o Pantanal, estão na origem de um grave problema de
censura à liberdade científica e assédio moral contra o trabalho
de uma pesquisadora da Embrapa. Débora Calheiros, doutora em
Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), 23 anos de
serviços prestados à empresa, é uma das maiores especialistas do
país em ecologia de rios e planícies de inundação.
Nos últimos anos, ela e outros pesquisadores – além de
organizações ambientalistas e comunidades ribeirinhas – tem
travado uma batalha contra projetos de construção de 135
centrais hidrelétricas na região, devido ao risco de alterações
no pulso natural das cheias, que podem acarretar danos
irreversíveis ao bioma. Boicotada pela direção local da Embrapa
Pantanal, em diversas ocasiões, por insistir na divulgação
desses estudos, a resposta veio pela Justiça. A pedido dos
Ministérios Públicos Federal e Estadual de Mato Grosso do Sul, a
Justiça Federal de Coxim (MS) concedeu, na última semana,
liminar que paralisa a emissão de licenças ambientais de
empreendimentos hidrelétricos na Bacia do Alto Paraguai (BAP),
que engloba a planície pantaneira e abrange os estados de Mato
Grosso do Sul e Mato Grosso.
A decisão determina que os órgãos ambientais licenciadores
suspendam todos os processos de licenciamento ambiental em curso
e não mais concedam novas licenças – sejam elas prévia, de
instalação ou de operação – até que a Avaliação Ambiental
Estratégica de toda a BAP seja realizada. Desta forma,
empreendimentos hidrelétricos já em funcionamento continuarão
operando, mas suas licenças não podem ser renovadas. Quanto às
hidrelétricas em vias de instalação, suas atividades devem ficar
paradas até a realização do estudo do impacto cumulativo.
Segundo a decisão judicial, existe “prova inequívoca” de que
os empreendimentos estão sendo instalados sem a observância das
normas protetivas básicas, que inclui o prévio estudo de impacto
ambiental em toda a Bacia do Alto Paraguai. Caso a decisão
judicial seja descumprida, a multa por licença expedida é de R$
100 mil. O trabalho do Ministério Público, que culminou na
proposição de uma Ação Civil Pública, só foi possível graças às
pesquisas desenvolvida por Débora Calheiros e outros
pesquisadores.
Censura e perseguição
Débora se tornou alvo da direção da Embrapa justamente porque
passou a se posicionar, com base em estudos científicos, contra
a expansão do projeto energético na bacia do Pantanal. O ponto
alto desse processo não poderia ser mais emblemático. Em 2010,
antes de uma reunião do Conselho Nacional de Recursos Hídricos,
em Brasília (DF), a pesquisadora foi informada de que não
poderia falar em nome da empresa. “Eu tinha realizado uma viagem
oficial, já estava em Brasília aguardando a reunião quando fui
comunicada de que não poderia falar. Isso aconteceu porque eu
indicaria aos conselheiros e os tomadores de decisão [o Conselho
é formado por diversos órgãos federais, como Ibama, Agência
Nacional das Águas, entre outros] de que as hidrelétricas juntas
afetariam drasticamente o Pantanal”, conta.
Não tinha sido a primeira vez. Em 2008, ela também foi
impedida de falar em nome da Embrapa Pantanal nas reuniões do
Plano Estadual de Recursos Hídricos de Mato Grosso do Sul e em
uma audiência pública na Câmara dos Deputados. “A participação
nesses conselhos é por mérito e por experiência no assunto. Me
tirar essas responsabilidades foi uma forma de censura, além de
configurar o assédio moral”, exalta Débora, que ainda
exemplifica: “cheguei a ter artigos para publicação na imprensa
vetados pela direção da Embrapa”. No ano seguinte, em 2009, uma
sindicância interna foi aberta contra a pesquisadora, mas não
para apurar uma situação específica de sua conduta profissional,
como é praxe. Nesse caso, a sindicância focava toda a sua
trajetória profissional. “Me acusaram de insubordinação e de ser
ideológica no exercício da função, uma verdadeira inquisição”,
desabafa.
Agora, com a liminar da Justiça proibindo a expansão das
hidrelétricas, Débora comprova a imparcialidade e o rigor
científico com que tem pautado o seu trabalho. “Quem está sendo
ideológica é a empresa, completamente omissa no debate público
sobre temas tão relevantes. A Constituição Federal diz que o
poder público tem o dever de conservar a qualidade ambiental do
Pantanal. A decisão judicial comprova que quem tinha embasamento
técnico para o assunto era eu, não a empresa que me boicotou”,
afirma.
Assuntos polêmicos como hidrelétricas, Código Florestal e
transgênicos são deliberadamente silenciados pela direção atual
da Embrapa, acusa Débora. “É polêmico, porque tem interesse
público e a Embrapa tem o dever de discutir abertamente com a
sociedade, baseada em pesquisa científica, mas não o faz por
questões políticas e econômicas”. O teor da Circular nº 58, de
18 de outubro de 2010, assinada pelo próprio presidente da
Embrapa, Pedro Arraes, deixa transparecer o clima de censura. De
acordo com o documento, os trabalhadores devem obedecer ao
disposto na chamada Política de Comunicação da Empresa (PCE), em
que pesquisadores e técnicos só podem falar com a imprensa
quando "explicitamente delegados por seus chefes" e quando estes
acharem conveniente.
Interesse econômico x Pantanal
No caso da instalação de usinas hidrelétricas na bacia do
Pantanal, Débora Calheiros enumera as graves consequências
ambientais já comprovadas. O pulso de inundação do ecossistema,
também conhecido como período de cheia e seca, tende a sofrer
uma distorção com a implantação dos reservatórios hidrelétricos.
“A subida e descida das águas não estará mais condicionada ao
fluxo natural dos rios. Significa que esse fluxo poderá ser
alterado até em nível diário, e não mais nas épocas certas,
obedecendo apenas à necessidade econômica de produção
energética”, explica. O resultado: “atrapalha o funcionamento
ecológico do Pantanal, impedindo a migração de peixes e a
recomposição das pastagens nativas. Com isso, cairá a produção
pesqueira, afetando os pescadores e o turismo de pesca, a
produção pecuária tradicional, entre outros problemas”.
Como se não bastasse, o potencial hidroelétrico do Pantanal,
diz a pesquisadora, já está no limite. Cerca de 70% da
capacidade de geração de energia da bacia já está instalada e em
operação e os projetos em andamento, quase todos para Pequenas
Centrais Elétricas (PCHs) só seriam capazes de ampliar em mais
2% o fornecimento de energia para o país. “A sociedade precisa
escolher, se é mais importante aumentar a energia em 2% ou
conservar o Pantanal”, acrescenta Débora. Ela vai mais além.
Mesmo as PCHs, embora de pequeno porte, podem causar estragos
sérios.
No município de Coxim, por exemplo, estão previstas 17 PCHs,
exatamente em uma região cuja economia depende basicamente da
pesca e do turismo associado à pesca. “No rio Jaurú, no sul de
Mato Grosso, os pescadores estão à míngua. Lá já foram
construídas seis hidrelétricas. Os peixes migratórios, que são
também os mais nobres, como pintado, pacú e dourado,
simplesmente não conseguem atravessar as barragens. As
hidrelétricas são limpas em emissões de carbono, mas em termos
de conservação de rios o impacto é irreversível”, analisa. O
lado econômico, no entanto, pode falar mais alto. A legislação
atual permite a concessão de PCHs por 30 anos e o retorno do
investimento não passa de cinco. “O lucro é alto e o risco é
baixo. Dá para entender o que move os interesses em me censurar
na Embrapa”, conclui Débora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário