Quando entrei na USP em 1984 meus avós ficaram preocupados. Ainda era época do degelo militar e a Psicologia vinha com um traço “róseo” que levantava suspeitas em meu querido avô. Formado da tradição liberal inglesa, voraz leitor do Estadão, ele iniciou uma espécie de profilaxia que consistia em receber-me, às quartas feiras, para uma conversa sobre temas de sua livre escolha: economia, política ou cultura. Minha avó esperava a ocasião com uma generosa torrada sobre a qual repousavam dois ovos pochés, em cima dos quais salpicava-se pimenta, extraída de um daqueles antigos e compridos moedores feitos de madeira.
Depois do fausto e antes da partida de xadrez, vinha a chamada oral em torno dos artigos, previamente selecionados na semana anterior: Delfim Neto, Pedreira, Paulo Francis, Simonsen, Joelmir Beting e ao fim o indefectível Bob Fields (Roberto Campos), combinavam-se com artigos mais informativos do The Economist ou das revistas francesas ou alemãs, que minha avó conseguia interpolar na conversa. Lembro particularmente de um luminar da direita americana chamado Rush Limbaugh, que quando ativado era o código para “agora o comunismo vai tremer nas bases” e Cuba deixará de ser o exemplo eterno de superioridade moral em matéria de educação e saúde. Rapidamente descobri que havia alguns caras que “pegavam mais leve” e que havia uma tensão a ser explorada entre meus dois avós, já que ela gostava mesmo era da Folha.
À medida que a esquerda foi entrando, no país e nos meus anos de graduação, as batalhas verbais com meu avô aumentavam em teor de pimenta. Daquela época retive o diagnóstico de que as verdadeiras ideias liberais jamais tinham sido realmente implantadas no Brasil. Não tínhamos instituições fortes, nossa economia era ridiculamente fechada e o espírito de discussão livre, pública e democrática havia sido sequestrado por dois grandes malfeitores: o governo corruptor de adultos e a esquerda corruptora de jovens. A alma do capitalismo é o risco, e as joint ventures públicas ou privadas deviam ser o ponto nevrálgico de um grande sistema baseado em punições e recompensas, praticadas pelas mãos invisíveis de Adam Smith.
Havia ainda outro lado da direita liberal. Sua capacidade de erudição, seu gosto cultivado e seu exercício da ilustração. Independente do sentido aristocrático ou popular deste tipo de virtude, ela não vinha sem alguma humildade, característica daqueles que sabem o tamanho do problema que se está a enfrentar. Talvez seja por isso que os antigos cadernos culturais tinham títulos diminutivos como o Pasquim e o Folhetim, ou que indicavam sua condição acessória como o Suplemento Literário. Hoje passamos para a época dos superlativos como o Mais!, ou a atual Ilustríssima. À esquerda podia-se perdoar a falta de lastro cultural, que em tese seria substituído pela aposta em novas formas, vanguardas ou não, populares se benfazejas. Afinal, cultura implica conservar, cuidar, manter. Por isso a direita tinha a obrigação moral de pagar o imposto por sua própria vocação e conservar os clássicos, louvar as origens e cantar as descendências. Foi assim que a própria relação entre política e cultura tornou-se um tema mais político para a esquerda e mais cultural para a direita.
Fato é que aprendi a respeitar este tipo de pensamento liberal que era realmente uma forma de pensamento, um estilo, que podia ser mais ou menos conservador, mais inglês que francês, mais protestante que católico, mais liberal do que progressista, mais aderido aos fatos do que às interpretações, mais realista do que construtivista. Ser de direita não tornava o sujeito imediatamente desrespeitável, mas um adversário a ser batido. Podia-se refazer a genealogia imaginária deste tipo de liberalismo no pessimismo auto-irônico de Machado de Assis (o nosso Chesterton), na poesia densa de João Cabral, na sobriedade metodológica de Villa Lobos, ou nas tragédias de Nelson Rodrigues (o nosso Swift). Todos eles expressões mais ou menos reativas ao positivismo francês e seu moralismo de ocasião.
Nos anos 1980 a ecologia apareceu como um tema emergente, meio político, meio cultural. Logo foi metabolizado pelos liberais na seguinte máxima: “nada menos ecológico do que uma criança com a barriga vazia”. Para este tipo de pensamento progresso e economia vêm primeiro, justiça e distribuição são uma espécie de consequência natural: “Primeiro vamos fazer o bolo crescer, depois distribuímos suas fatias” – era a lei de Delfim. Para esta narrativa nossos heróis são os capitães de indústria de Mauá a Hermírio de Morais passando por Chatô. Foi também nesta época que o tema do “social” caiu no colo da esquerda, para desespero de meu avô. Como observou outro dia Paulo Arantes, em entrevista a Mario Sergio Conti, no… GloboNews (isso sim teria levado meu velho ao colapso) a identificação entre a esquerda e a defesa de temas sociais é relativamente recente. E esta ideia de um Estado benemérito, sem mexer no “core” da economia, é, no fundo, senão estratégica, um pouco estranha.
Tais “maravilhosas” sínteses facultavam que na hora de escolher entre o sórdido caráter egoísta e hobbesiano ou a alegre idealização de nós mesmos, promovida pela Liga da Justiça formada pelos descendentes de Rousseau e Marx, seria preciso optar sempre pela primeira alternativa.
Gostaria que meu velho avô Colin voltasse para este mundo, apenas para ver ao que se reduziu o pensamento de direita e quiçá dar-me razão, pelo menos uma vez, senão em vida, depois da morte. Talvez ele tenha prenunciado os novos tempos quando em um de seus últimos gestos renunciou à revista Veja dizendo que aquilo tinha virado propaganda de remédio aplicada à política. Quando leio Reinaldo Azevedo, Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi, Rodrigo Constantino e os chamados neoconservadores eu me pergunto: o que aconteceu com a tênue, mas boa, tradição da direita ilustrada brasileira? Que fim levou o pessoal que realmente acreditava nas ideias de Milton Friedman, que queria discutir Ayn Rand ou que, no geral, tinha teses para interpretar o Brasil?
Gostaria de dizer para meu velho avô: olha aí, aquilo deu nisso. Mas não é verdade. Há uma espécie de erro de continuidade neste filme onde, de repente, aparece um pessoal dançando uma espécie de “Lepo Lepo” sanguinário contra o PT. Uma espécie de macarthismo retórico contra tudo o que cheire, pareça ou suporte a projeção vermelha. É uma turma que surge do nada, fantasiada de Capitão Nascimento, dizendo coisas que nem o Maluf do “estupra, mas não mata” seria capaz de dizer. Há uma fratura de gerações na direita, que de repente deu a luz a espécimes mutantes capazes de argumentar que o “2014” escrito em vermelho no logotipo da Copa do Mundo só pode ser uma propaganda subliminar da esquerda. Se o poder perdeu a vergonha, a reflexão de direita sobre o poder transformou a crítica em pichação. Esquecendo sua nobre origem liberal, não se pode reconhecer nos neoconservadores nem mesmo os bibelôs da história: seus heróis, ideias ou compromissos. Basta entrar no Bonde do “Ai se eu te pego” para perseguir, criar e vender inimigos, qual romanos vendendo bárbaros aprisionados como escravos.
Ninguém viu, ninguém sabe como chegaram esses sujeitos a posições de reputada representação em grandes diários, revistas, canais de televisão ou blogs correlatos. Passagem pelo governo, partido ou qualquer outro órgão politicamente formativo: nenhuma. Experiência com movimentos sociais, terceiro setor ou com grandes corporações: desprezível. Reputação acadêmica da moçada: zero. Aliás, para esta turma, a academia deveria ser extinta, privatizada, vendida como ferro velho, ou comprimida e coada antes da floculação tendo em vista a extração vendável de pigmento vermelhiforme.
Da antiga indignação liberal, ainda que com a típica arrogância dos vencedores, que não obstante entendiam-se como guardiões da virtude, não sobrou mais que a raiva dos impotentes. Leia-se: a cólera esbravejante dos que acreditam que possuem mais poder do que realmente têm. Antes a velha direita cheirava a dinheiro e gostava de dizer-se acima de esquerdas ou direitas, pois era tão somente contrária à vulgaridade. Ao que a velha esquerda respondia com “o meu partido é um coração partido”. Hoje, denunciam, reagem e latem como caçadores baratos de celebridade. E o sentimento basal é de vergonha alheia. Com uma direita destas quem precisa de esquerda?
Esta direita está mais para os ovos poché de minha avó do que para o Rush Limbaugh de meu avô. São quadrados, ásperos e chatos como uma torrada queimada. Os ovos são moles e espalham tudo com qualquer furinho à toa. Mas o pior é que ainda não entenderam que não é para sentar em cima do moedor de pimenta.
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