Transcrito do IHU On-line
“Hoje vivemos em uma
sociedade de serviços, e isso requer um reposicionamento do Estado
brasileiro em relação a essa questão. Inclusive as manifestações
ocorridas desde o ano passado têm demandas voltadas para os serviços,
sejam privados ou públicos: bancários, de saúde, de educação, de
transporte”, pontua o economista.
Foto: www.ceviu.com.br |
O cenário econômico e social brasileiro “repete o que ocorreu no pós-guerra nos países desenvolvidos”, assinala Márcio Pochmann à IHU On-Line,
ao analisar as políticas públicas que favoreceram a ascensão econômica
de uma parcela da população, sem com isso garantir a incorporação dessas
pessoas à classe média. “O que está acontecendo no país é a pauta que o
novo sindicalismo foi construindo desde as greves dos anos 1970, ou
seja, crescimento dos salários de acordo com a produtividade mais a
inflação, melhora nas políticas de renda, etc. Tudo isso permitiu uma
ampliação do acesso ao consumo, melhorou a renda, o emprego, mas os
valores continuam os mesmos. (...) Então, imagino que não é possível
fazer essa transição da classe trabalhadora para a classe média sem uma
mudança na estrutura produtiva, e isso depende de ações mais abrangentes
do que essas que nós tivemos até o momento”, adverte.
Na avaliação do economista, o
crescimento do setor de serviços com base em baixos salários e queda do
setor industrial na participação do PIB
são fatores que impedem a transição de uma classe trabalhadora para uma
classe média assalariada no país. “Mas é claro que se o Brasil
tiver uma política de reindustrialização, de fortalecimento de
determinados setores industriais, associado aos serviços produtivos,
certamente terá condições de avançar em termos de uma classe média
assalariada. Do contrário, isso se torna mais difícil. O que se tem
visto no Brasil desde a primeira década deste século é uma difusão de empregos não vinculados à indústria, mas aos serviços – pessoais, sociais, de distribuição –, cujo emprego é de menor qualidade do que aquele vislumbrado na indústria. Tanto é que dos 22 milhões de empregos que o Brasil gerou, 95% são relacionados à faixa de até dois salários mínimos mensais”, destaca.
Apesar de as políticas públicas dos
últimos anos terem permitido aumento da renda salarial e terem incluído
mais pessoas em programas sociais, há uma série de contradições nesses
processos. Entre os exemplos, o economista menciona o Programa Minha Casa, Minha Vida,
que possibilita a construção da casa própria em “áreas que não vêm
acompanhadas de serviços públicos, transportes, áreas de lazer, postos
de saúde, escolas”. Além disso, pontua, “mais de dois milhões de jovens
tiveram acesso ao ensino superior por meio do ProUni e do Fundo de Financiamento Estudantil – Fies.
Apesar disso, evidentemente há problemas na educação brasileira”. E
acrescenta: “Há problemas, mas eles não estão sendo capturados pelas
instituições tradicionais, sejam elas associações de bairros,
sindicatos, ou o movimento estudantil”.
Autor do livro recém-lançado, O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social (São Paulo: Boitempo, 2014), Pochmann
comenta, na entrevista a seguir, concedida por telefone, o mito em
torno da classe média e a tendência a uma polarização entre ricos e uma
“classe trabalhadora mais alargada submetida a empregos precários, com
baixos salários, maior informalidade, maior flexibilidade nas
contratações”. Segundo ele, o emprego assalariado de classe média estava
associado ao capitalismo industrial, mas hoje há um deslocamento das
indústrias para a Ásia, “de tal forma que a divisão
internacional do trabalho de classe média sofre um deslocamento da
classe média dos países europeus e da América para a Ásia. É dentro desse contexto que o Brasil
se coloca, convivendo com o esvaziamento de empregos e da classe média
tradicional”. E conclui: “É por isso que a classe média se converte num
mito, porque estamos vendo uma estrutura de classe cada vez mais
polarizada e não medianizada, como foi o capitalismo do pós-Segunda
Guerra, assentado no fordismo”.
Márcio Pochmann é doutor em Economia e professor do Instituto de Economia da Unicamp. Entre seus livros, destacamos E-trabalho (São Paulo: Publisher Brasil, 2002) e Desenvolvimento, trabalho e solidariedade (São Paulo: Cortez, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste o
mito da classe média do qual trata o seu livro O Mito da Grande Classe
Média – Capitalismo e Estrutura Social (São Paulo: Editora Boitempo,
2014)?
Márcio Pochmann – Este
livro é resultado de uma pesquisa que busca analisar o conceito de
classe média, o qual foi utilizado, ao longo do tempo, em situações
muito distintas. Na constituição do capitalismo,
a definição de classe média foi adotada para identificar justamente a
política nascente, os pequenos empresários, como a classe média
intermediária entre a aristocracia fundiária e os trabalhadores. Esse é
um conceito que foi se alterando, e tal como o utilizamos ao longo do século XX,
refere-se à classe assalariada em geral, embora compreenda também a
classe média proletária, os pequenos comerciantes, que de certa forma,
em algum momento, se transformariam em comerciantes maiores, ou seriam
incorporados nos segmentos maiores. A classe média assalariada está
relacionada ao que se identifica como sendo o capitalismo urbano e
industrial, associado à grande empresa, inclusive ao fordismo, que
permitiu, dentro das grandes empresas, o estabelecimento de ocupações
vinculadas à maior escolaridade. Nesse caso, trata-se especificamente
dos gerentes, dos administradores, dos supervisores, das atividades que
demandam ensino médio ou ensino superior.
O que conhecemos hoje sobre o conceito
de classe média se associa, portanto, à fase do desenvolvimento do
capitalismo urbano e industrial, associado à grande empresa privada, que
foi responsável pela geração de um segmento de salários mais altos e de
empregos que se relacionavam com um nível de educação superior ou
ensino médio especializado (técnico).
Esse segmento tinha sua remuneração
através de salários, os quais, de maneira geral, eram complementados por
benefícios, como cartão de crédito, aluguel de moradia, pagamento de
mensalidades escolares dos filhos dos funcionários, de tal forma que a
remuneração dessa classe média resultava do salário mais os adicionais
vinculados a metas de produção e venda.
Além dessa classe média assalariada da empresa privada, também houve uma expansão da classe média assalariada vinculada ao Estado,
seja na administração pública, seja nos empregos oriundos através de
concursos públicos, como de juízes, promotores, oficiais das Forças
Armadas, ou seja, uma tecnocracia que se constitui em torno do Estado
por meio do emprego público.
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"Se considerarmos outras fontes de renda que não a do trabalho, é possível perceber melhor as desigualdades" |
Esse segmento assalariado
que se denominou classe média vem apresentando sinais de decréscimo da
década de 1970 para cá. Tanto é que a literatura internacional
especializada usa expressões como “adeus à classe média” assalariada,
seja a oriunda das empresas privadas, seja as do emprego público. Isso
porque houve uma transição da empresa privada anteriormente organizada
em torno do fordismo para a empresa organizada em torno do toyotismo.
Essa transição gerou a chamada empresa enxuta, na qual grande parte do
emprego foi externalizado, ou seja, saiu da grande empresa e se
transformou em serviços terceirizados, vinculados à produção, mas não
mais vinculados à grande empresa. Isso fez com que se tivesse uma
redução do emprego assalariado de classe média tradicional. Da mesma
forma, a revolução informacional acabou permitindo que várias das
atividades que a classe média exercia fossem agregadas a novas
ocupações, que simplificaram a própria estrutura ocupacional da classe
média. Por fim, o avanço do próprio neoliberalismo terminou por reduzir
várias das funções do Estado, principalmente aquelas em que se tinha uma
tecnocracia avantajada com o enxugamento de vários empregos, de tal
forma que estamos caminhando para uma estrutura de ocupação, para uma
estrutura de classe desse capitalismo do século XXI, que de certa maneira vai comprimindo o processo de medianização do pós-guerra.
Hoje estamos caminhando para uma
polarização, porque esse emprego de classe média está sendo comprimido, e
avança, de um lado, uma classe trabalhadora mais alargada submetida a
empregos precários — há autores que denominam esse fenômeno de o novo
precariado —, com baixos salários, maior informalidade, maior
flexibilidade nas contratações, e, no outro extremo, há um
fortalecimento dos muito ricos, que vêm crescendo e indicando inclusive o
aumento da desigualdade. Por fim, esse emprego assalariado de classe
média estava muito associado ao capitalismo industrial, e observamos,
hoje, olhando o mundo como um todo, um deslocamento das indústrias e do
emprego para a Ásia, que responde por 80% da manufatura
mundial, de tal forma que a divisão internacional do trabalho de classe
média sofre um deslocamento da classe média dos países europeus e da
América para a Ásia. É dentro desse contexto que o Brasil se coloca, convivendo com o esvaziamento de empregos e da classe média tradicional.
É por isso que a classe média se
converte num mito, porque estamos vendo uma estrutura de classe cada vez
mais polarizada e não medianizada, como foi o capitalismo do
pós-Segunda Guerra, assentado no fordismo.
IHU On-Line – Ainda existe uma classe média?
Márcio Pochmann – Sim,
existe, mas não nas proporções que se estabeleceram no período anterior.
É uma classe média mais contida, mas que convive com enormes
dificuldades de reprodução, seja porque os empregos tradicionais de
classe média têm dificuldade de serem expandidos, seja pelo esvaziamento
industrial, seja porque ela está submetida a uma competição muito
acirrada, pois aquilo que anteriormente era quase um monopólio de classe
média e dos ricos, sofreu um processo de universalização, de tal forma
que hoje há mais pessoas qualificadas para disputar empregos que,
anteriormente, eram ofertados para segmentos de classe média e,
portanto, menor quantidade de pessoas disputavam postos de trabalho de
classe média. Hoje há mais pessoas e menos empregos.
IHU On-Line – Como se dá esse
mito da classe média no mundo? Por que não foi possível constituir uma
classe média? Algumas políticas poderiam ter sido implementadas nesse
sentido?
Márcio Pochmann – O livro analisa o mito da classe média no mundo. Percebe-se que o esvaziamento industrial, seja nos EUA, seja na União Europeia,
está levando ao esvaziamento da classe média nesses países, que são
países que convivem com uma estrutura social polarizada. No caso
brasileiro, vive-se um quadro de esvaziamento do setor industrial. Basta
dizer que nos anos 1980 a indústria respondia ao redor de um terço do
PIB brasileiro e hoje é algo ao redor de 20%. Houve um esvaziamento do
setor industrial e ao mesmo tempo houve um deslocamento de várias
indústrias para diferentes regiões do país.
Então, o Brasil sofre desse problema. Mas é claro que se o Brasil
tiver uma política de reindustrialização, de fortalecimento de
determinados setores industriais, associado aos serviços produtivos,
certamente terá condições de avançar em termos de uma classe média
assalariada. Do contrário, isso se torna mais difícil. O que se tem
visto no Brasil desde a primeira década deste século é uma difusão de
empregos não vinculados à indústria, mas aos serviços – pessoais, sociais, de distribuição –,
cujo emprego é de menor qualidade do que aquele vislumbrado na
indústria. Tanto é que dos 22 milhões de empregos que o Brasil gerou,
95% são relacionados à faixa de até dois salários mínimos mensais.
Esse é um aspecto interessante de ser
destacado, porque a geração desse tipo de emprego foi fundamental para
incorporar um segmento da sociedade que era praticamente intocável por
políticas públicas. Porque se fossem gerados empregos de quatro, cinco
ou mais salários mínimos mensais, dificilmente esses segmentos de baixa
escolaridade, que viviam na informalidade, teriam tido acesso ao
emprego. Na minha avaliação, foi muito positiva a expansão desse tipo de
emprego, pois permitiu que determinados segmentos da sociedade que
estavam engajados na estrutura social pudessem ter essa oportunidade.
Além da geração de empregos, foram importantes as políticas de renda – do salário mínimo, de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família –
associadas às políticas de crédito e até mesmo à mudança dos preços
relativos. O meu livro se debruça um pouco sobre a análise da estrutura
de preços, bens e serviços, e se percebe que os preços dos produtos
manufaturados não acompanharam a inflação, enquanto os preços dos
serviços subiram acima da inflação. Isso fez com que determinados
segmentos com menor renda pudessem, através da sua remuneração maior ou
do crédito, ter acesso a bens de consumo duráveis que até então não
teriam.
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"O que tivemos no capitalismo industrial foi uma melhora no nível de vida dos trabalhadores" |
IHU On-Line – Essa combinação de acesso a crédito
com aumento do salário mínimo permitiu ascensão econômica de uma
parcela significativa da população. À época do governo Lula falava-se da
ascensão da classe C, da “nova classe média”. Contudo, apesar de ter
possibilitado acesso ao mercado de consumo, essa política teve
contradições no sentido de não possibilitar acesso a outros bens, tais
como educação de qualidade, saúde? É possível fazer a transição da
classe trabalhadora para a classe média?
Márcio Pochmann – A
mudança do conceito de classe média ao longo do capitalismo está
diretamente relacionada à estrutura produtiva, ou seja, dependendo do
tipo de emprego que o capitalismo gera, tem como reflexo uma estrutura
de classe. Todavia, o que tivemos no capitalismo industrial foi uma
melhora no nível de vida dos trabalhadores. Eu sempre gosto de dizer
que, na década de 1940, de cada dez operários franceses, apenas um tinha
automóvel. Na de 1970, de cada dez operários franceses, nove tinham
automóveis. Eles elevaram o nível de renda, tiveram acesso a crédito, ou
seja, uma expansão do estado de bem-estar social permitiu-lhes ampliar o
consumo, ter acesso à casa própria, mas isso não mudou a condição de
classe: eles continuaram sendo operários.
O que acontece no Brasil simplesmente
repete o que ocorreu no pós-guerra nos países desenvolvidos. O que está
acontecendo é a pauta que o novo sindicalismo foi construindo desde as
greves dos anos 1970, ou seja, crescimento dos salários de acordo com a
produtividade mais a inflação, melhora nas políticas de renda, etc. Tudo
isso permitiu uma ampliação ao acesso ao consumo, melhorou a renda, o
emprego, mas os valores continuam os mesmos. Os serviços não foram
profundamente alterados. Não obstante, apesar da elevação da quantidade
para o acesso à educação, a qualidade da educação no país ainda é muito
difícil. Então, imagino que não é possível fazer essa transição da
classe trabalhadora para a classe média sem uma mudança na estrutura
produtiva, e isso depende de ações mais abrangentes do que essas que nós
tivemos até o momento.
IHU On-Line - O senhor disse
recentemente que o que acontece hoje é parecido com o que acontecia à
época da ditadura, referindo-se às pessoas que têm acesso ao Programa
Minha Casa, Minha Vida, mas moram distante e não têm acesso a outros
bens. Isso é consequência de que processo?
Márcio Pochmann – Aí é
outro debate, porque a ampliação da classe trabalhadora no Brasil desde
os anos 1970, mesmo durante a ditadura, foi repleta de contradições que
geraram grandes possibilidades de mobilizações sociais. Quer dizer,
muitos trabalhadores saíam da zona rural e vinham para as cidades, que
não estavam preparadas para recebê-los, mas eles vinham trabalhar na
indústria moderna e não tinham habitação e transporte adequados.
Essas dificuldades foram muito bem
compreendidas pelas associações de bairro das áreas em que foram sendo
construídas habitações, gerando um ambiente de pressão e organização
social. Ou seja, os anseios dos trabalhadores foram capturados, se não
pelas direções dos sindicatos, pelas oposições às direções dos
sindicatos, que souberam trabalhar e utilizar esse mal-estar para forjar
lutas que viabilizaram a transição para a ditadura e para a criação de
partidos políticos. Na realidade essa ascensão dos anos 1970 teve a ver
com a expansão do emprego industrial. O que acontece desde a primeira
década deste século é uma expansão de empregos de serviços, os quais têm
uma natureza distinta do trabalho industrial: é quase imaterial e não
vem associado ao surgimento de algo concreto e palpável, mas associado
às tecnologias da informação e comunicação, e estamos tendo dificuldades
de representação desses setores que emergiram no Brasil.
Basta dizer que, segundo pesquisas, de cada dez novos empregos gerados,
apenas dois trabalhadores buscaram os sindicatos. Há várias razões que
explicam isso, mas não quer dizer que os trabalhadores não estão vivendo
um quadro de contradições.
Contradições
Nesse sentido, o Programa Minha Casa, Minha Vida
está sendo construído em muitas áreas que não vêm acompanhadas de
serviços públicos, transportes, áreas de lazer, postos de saúde,
escolas. Há problemas, mas eles não estão sendo capturados pelas
instituições tradicionais, sejam elas associações de bairros,
sindicatos, ou o movimento estudantil. Mais de dois milhões de jovens
tiveram acesso ao ensino superior por meio do ProUni e do Fundo de Financiamento Estudantil – Fies.
Apesar disso, evidentemente, há problemas na educação brasileira, mas
esses problemas não são capturados pelo movimento estudantil.
Acredito que isso está associado ao
descolamento entre as insatisfações desse novo mundo do trabalho no país
e as instituições que devem representá-lo e que hoje têm grande
dificuldade para fazer isso. Talvez estejamos próximos de viver um novo
ciclo de instituições, como ocorreu nos anos 1970, sem que o governo à
época oferecesse resultados adequados.
Guardadas as devidas proporções, acho
que estamos numa situação parecida. Basta ver o que acontece hoje:
sindicatos e empregadores firmam um acordo de trabalho, e no dia
seguinte tem uma paralisação porque os trabalhadores não foram
consultados ou estão insatisfeitos com o acordo. Isso demonstra que não
estamos caminhando para uma sociedade homogênea, medianizada, mas para
uma sociedade mais polarizada, tensa, em torno dos direitos que têm de
ser adequados às demandas.
IHU On-Line - As manifestações de junho passado
são um reflexo desse mito da classe média ou ao menos dessa ascensão
econômica que não gera outros ganhos para a população?
Márcio Pochmann – Essa
mobilidade social que aconteceu é positiva e demonstra que um segmento
que parecia intocável por políticas públicas passou a ter acesso a
emprego, a programas de capacitação, programa habitacional — o país tem
um grande déficit habitacional concentrado nas famílias de baixa renda.
Há iniciativas fundamentais e importantes que representam uma inversão
de prioridades do Estado brasileiro, mas ao mesmo tempo não podemos
deixar de lembrar que há contradições nessa ascensão social, as quais
derivam da falência das grandes cidades brasileiras, das catástrofes que
foram as cidades em termos de investimento público a partir das décadas
de 1980 e 1990, ou seja, houve uma paralisia em termos de investimento
de mobilidade social. Temos contradições que exigem um programa de
reformas que olhem para essa situação. O problema das cidades é o grande
estopim para grandes manifestações, porque o cotidiano da vida nas
cidades é muito perverso: as pessoas saem cedo de suas casas e voltam
tarde. Hoje vivemos uma sociedade de serviços e isso requer um
reposicionamento do Estado brasileiro em relação a essa questão.
Inclusive as manifestações ocorridas
desde o ano passado têm demandas voltadas para os serviços, sejam
privados ou públicos: bancários, de saúde, de educação, de transporte.
IHU On-Line - O Brasil parece
ser visto com bons olhos no exterior no sentido de ser um país em
ascensão econômica e desenvolvimento, se comparado com outros países que
estão em crise atualmente. No que se refere ao crescimento econômico e
ao desenvolvimento, o Brasil está num caminho certo ou também pode-se
falar de um mito nessa área?
Márcio Pochmann – O Brasil
como país subdesenvolvido tem determinados graus de autonomia em
momentos em que os países do centro do capitalismo vivem em crise.
Tivemos dois momentos que se assemelham ao que estamos vivendo no mundo
de hoje: um ocorreu no final do século XIX, do ano de
1873 a 1896; e o segundo foi a grande depressão de 1929-1939. Esses dois
períodos de problemas sérios abriram para o Brasil a
possibilidade de trilhar caminhos próprios e ele o fez, seja na década
de 1980, quando fez uma reforma política, seja a mudança mais antiga de
passar do Império para República. Isso permitiu ao Brasil
se inserir no ciclo de comércio mundial e através da economia cafeeira
criar as bases para a própria industrialização a partir de 1930. Na
segunda grande depressão, o Brasil fez uma transição, abandonando a sociedade agrária e construindo um setor urbano e industrial.
Hoje o país está criando um novo caminho
— não muito bem identificado —, mas é um caminho que permitiu ao Brasil
se diferenciar do que está acontecendo no mundo. Basta ver que segundo a
Organização Internacional do Trabalho - OIT,
entre 2008 e 2013, o mundo destruiu 62 milhões de empregos e o Brasil
criou 11 milhões de empregos. Isso é uma demonstração de que o Brasil
está trilhando um caminho próprio, o qual deriva de uma maioria política
que dá sustentação a iniciativas dessa natureza, em defesa da produção e
do emprego. Apesar da dificuldade internacional, o Brasil segue
crescendo. Cresce um pouco menos, mas esse crescimento permite continuar
reduzindo a pobreza e a própria desigualdade de renda. Há um ambiente
internacional desfavorável, mas o Brasil dá passos firmes no sentido de evitar o aumento da pobreza e da desigualdade como estamos vendo nos países ricos.
IHU On-Line - O livro Capital in
the Twenty-First Century (O capital no século XXI), do economista
Thomas Piketty, retomou o debate em relação às desigualdades sociais. Para o senhor, quais são as razões de ainda termos tantas desigualdades?
Márcio Pochmann – A
desigualdade é um fenômeno intrínseco ao capitalismo. A natureza do
capitalismo é a produção da desigualdade. A desigualdade entre aqueles
que têm propriedade e condições de constituir sua renda oriunda de
lucros, aluguéis, da terra, são segmentos que acumulam e ampliam a sua
renda e o seu poder de forma mais rápida em relação a outros que não
possuem propriedade, mas somente o seu próprio esforço, através do
trabalho, de acumular riqueza.
Em 2003, foi publicado o livro Os ricos no Brasil, que utiliza dados equivalentes aos que Piketty
utilizou, e mostra que 20 mil famílias controlam quatro quintos da
propriedade brasileira. A desigualdade da propriedade é muito maior do
que essa desigualdade que medimos através do fluxo de renda do trabalho
ou de benefícios de políticas públicas que é capturado pelo IBGE. Então, se considerarmos outras fontes de renda que não a do trabalho, é possível perceber melhor as desigualdades.
O fato é que com o processo de financeirização e globalização, esse 1% de ricos analisados por Piketty se constituiu numa grande elite mundial que vem sendo favorecida enormemente pelo processo de financeirização do capitalismo.
A tentativa de resolver as desigualdades
já é recorrente e há um certo consenso teórico acerca da tributação de
grandes fortunas. A questão é que não há maioria política no mundo para
se fazer esse tipo de tributação, sobretudo em países como Inglaterra e EUA,
que são os principais centros financeiros. Eles não aceitam essa
proposta, de modo que é muito difícil a aplicação de políticas dessa
natureza. De certa forma, também se abre uma lacuna, porque até a década
de 1980-1990 a construção do Estado
era apenas de caráter nacional, mas hoje estamos diante de um
capitalismo global que exige uma regulação supranacional; e esse é um
dos grandes desequilíbrios que temos hoje. Esse desequilíbrio gera
pressões e basicamente aprofunda ainda mais o processo de desigualdade
entre pessoas, classes e países.
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