Na Faixa de Gaza, a área de maior densidade
populacional do planeta, um milhão e meio de pessoas estão
constantemente sujeitas a eventuais e amiúde ferozes e arbitrárias
punições, cujo propósito não é senão humilhar e rebaixar a população
palestina e ulteriormente garantir tanto o esmagamento das esperanças de
um futuro decente quanto a nulidade do vasto apoio internacional para
um acordo diplomático que sancione o direito a essas esperanças. O
artigo é de Noam Chomsky.
Noam Chomsky
Data: 24/11/2012
Uma noite encarcerado é o bastante para que se
conheça o sabor de estar sob total controle de uma força externa. E
dificilmente demora mais de um dia em Gaza para que se comece a perceber
como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo. Na
Faixa de Gaza, a área de maior densidade populacional do planeta, um
milhão e meio de pessoas estão constantemente sujeitas a eventuais e
amiúde ferozes e arbitrárias punições, cujo propósito não é senão
humilhar e rebaixar a população palestina e ulteriormente garantir tanto
o esmagamento das esperanças de um futuro decente quanto a nulidade do
vasto apoio internacional para um acordo diplomático que sancione o
direito a essas esperanças.
O comprometimento a isso por parte das lideranças políticas israelenses foi ilustrado expressivamente nos últimos dias, quando eles advertiram que ‘enlouqueceriam’ se os direitos palestinos fossem reconhecidos, mesmo que limitadamente, pela ONU. Essa postura não é nova. A ameaça de ‘enlouquecer’ (‘nishtagea’) tem raízes profundas, lá nos governos trabalhistas dos anos 1950 e em seus respectivos “complexos de Sansão”: “se nos contrariarem, implodimos as paredes do Templo à nossa volta”. À época, essa ameaça era inútil; hoje não é mais.
A humilhação deliberada também não é nova, apesar de adquirir novas formas constantemente. Há trinta anos, líderes políticos, inclusive alguns dos mais notórios ‘falcões’ (sionistas mais conservadores), apresentaram ao primeiro-ministro um relato detalhado de como colonos regularmente violavam palestinos da forma mais vil e com total impunidade. A proeminente analista Yoram Peri notou com repugnância que a tarefa do exército não é a de defender o Estado, mas de “acabar com os direitos de pessoas inocentes somente porque são araboushim (uma ofensa racial) vivendo numa terra que Deus nos prometeu”.
O povo de Gaza foi selecionado para punições particularmente cruéis. É quase miraculoso que eles suportem tal existência. Raja Shehadeh descreveu como eles o fazem num eloquente livro de memórias, A Terceira Via, escrito há 30 anos. O texto relata seu trabalho como advogado empenhado na tarefa de tentar proteger direitos elementares num sistema legal feito para ser insuficiente, além de sua experiência como um resistente que vê sua casa tornar-se uma prisão por ocupantes violentos e nada pode fazer além de “aguentar”.
A situação piorou muito desde o texto de Shehadeh. Os acordos de Oslo, celebrados com muita cerimônia em 1993, determinaram que Gaza e a Cisjordânia eram uma só entidade territorial. Os EUA e Israel puseram sua estratégia de separá-los para funcionar já naquela época, de forma a barrar um acordo diplomático e punir os araboushim em ambos os territórios.
A punição aos moradores de Gaza tornou-se ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um crime hediondo: votaram no “lado errado” na primeira eleição do mundo árabe, elegendo o Hamas. Demonstrando seu amor pela democracia, os EUA e Israel, apoiados pela tímida União Europeia, impuseram um sítio brutal e ataques militares ostensivos logo de cara. Os norte-americanos também imediatamente recorreram ao procedimento operacional padrão para momentos em que populações desobedientes elegem o governo errado: prepararam um golpe militar para restabelecer a ordem.
O povo de Gaza cometeu um crime ainda pior um ano depois. Barraram a tentativa de golpe, levando a uma forte escalada do sítio e das ofensivas militares. Isso culminou, no inverno de 2008-9, na Operação Chumbo Fundido, um dos mais covardes e perversos exercícios de poder militar na memória recente, na qual uma população civil sem defesa e enclausurada ficou sujeita à implacável ofensiva de um dos mais avançados sistemas militares do mundo, que conta com o apoio das armas e da diplomacia estadunidense. Um testemunho inesquecível do morticínio – infanticídio, nas palavras deles – é o livro Eyes in Gaza, de dois corajosos doutores noruegueses, Mads Gilbert e Erik Fosse, que à época trabalhavam no principal hospital de Gaza.
O Presidente Obama não foi capaz de dizer uma palavra além de reiterar sua sincera simpatia pelas crianças sob ataque – na cidade israelense de Sderot. A investida minuciosamente planejada foi levada a cabo justamente antes do empossamento de Barack, assim ele pôde dizer que era hora de vislumbrar o futuro, não o passado.
Obviamente, havia pretextos – sempre há. O de costume, apresentado assim que necessário, é a “segurança”: neste caso, os foguetes caseiros de Gaza. Como de costume, também, o pretexto carecia de credibilidade. Em 2008, estabeleceu-se uma trégua entre Israel e o Hamas. E o governo israelense reconheceu formalmente que o Hamas cumpriu a trégua. Nenhuma bomba do Hamas foi disparada até que Israel rompeu a trégua encoberto pelas eleições presidenciais norte-americanas de 4 de novembro de 2008, invadindo Gaza por motivos ridículos e matando meia-dúzia de membros do Hamas. O governo de Israel foi aconselhado por suas mais altas autoridades de inteligência de que a trégua poderia ser retomada por suavizar o bloqueio criminoso e acabar com as ofensivas militares. Mas o governo de Ehud Olmert, por reputação um “pombo” (termo para os sionistas “moderados”), preferiu rejeitar estas opções e lançar mão de sua enorme vantagem no quesito violência: a Operação Chumbo Fundido.
O modelo de bombardeio da Operação Chumbo Fundido foi analisado cuidadosamente pelo respeitado defensor dos direitos humanos Raji Sourani, natural de Gaza. Ele aponta que o bombardeio concentrou-se ao norte, mirando civis indefesos nas áreas de maior densidade populacional, sem qualquer desculpa do ponto de vista militar. O objetivo, ele sugere, talvez tenha sido mover a população intimidada para o sul, próximo à fronteira com o Egito. Mas, apesar da avalanche terrorista, os resistentes não se moveram.
Outro objetivo provavelmente era movê-los para lá da fronteira. Desde o início da colonização sionista dizia-se que os árabes não tinham motivo para estar na Palestina. Eles podiam continuar felizes noutro lugar e deveriam ser “transferidos” de maneira educada, sugeriam os pombos. Esta, que claramente não é uma preocupação menor do governo egípcio, talvez seja a razão pela qual o Egito não abre sua fronteira seja para civis, seja para os suprimentos dos quais o país necessita desesperadamente.
Sourani e outras fontes dignas de reconhecimento notam que a disciplina dos resistentes oculta um barril de pólvora que pode explodir inesperadamente, como aconteceu na primeira Intifada em Gaza em 1989, após anos de repressão indigna de qualquer interesse ou nota.
Só para mencionar um dos inumeráveis casos, pouco antes da eclosão da Intifada, uma menina palestina, Intissar al-Atar, foi assassinada no pátio da escola pelo morador de um assentamento judeu próximo. Ele era um dos milhares de colonos israelenses trazidos para Gaza, o que violava leis internacionais, sob proteção da enorme presença de um exército que assumiu o controle das terras e da escassa água da Faixa. O assassino da estudante, Shimon Yifrah, foi preso. No entanto, foi solto rapidamente quando o tribunal determinou que “o delito não foi severo o suficiente” para justificar a detenção. O juiz comentou que Yifrah só pretendia assustar a garota por atirar na direção dela, não matá-la, assim, “o caso não é o de um criminoso que deve ser punido com um aprisionamento”. Yifrah recebeu uma pena suspensa de 7 meses, o que levou os outros colonos presentes à sala de tribunal a dançar e cantar. E o silêncio, pra variar, reinou. Afinal, a rotina é essa.
Assim que Yifrah foi libertado, a imprensa israelense reportou que uma patrulha armada atirou no pátio de um colégio para meninos de 6 a 12 anos num campo de refugiados da Cisjordânia, ferindo cinco crianças. O ataque só pretendia “assustá-los”. Não houve punições e o evento, para variar, não atraiu atenção. Era só mais um episódio do programa de “analfabetismo como punição”, disse a imprensa israelense, programa que incluía o fechamento de escolas, uso de bombas de gás, espancamento de estudantes a coronhadas, bloqueio de auxílio médico para vítimas; e para além das escolas predominou a mesma brutalidade, que até asseverou-se durante a Intifada, sob ordens do Ministro da Defesa Yitzhak Rabin, outro bem conceituado “pombo”.
Minha impressão inicial, depois de uma visita de alguns dias, foi de admiração ao povo palestino. Não só pela habilidade de levar a vida, mas também pela vitalidade da juventude, particularmente a universitária, com a qual eu passei um bom tempo numa conferência internacional. Mas também fui capaz de perceber que a pressão pode tornar-se grande demais. Relatos apontam que entre a população masculina jovem há uma frustração crescente e o reconhecimento de que, sob comando dos EUA e de Israel, o futuro não é promissor.
A Faixa de Gaza parece uma típica sociedade de terceiro mundo, com bolsões de riqueza rodeados por uma pobreza medonha. Não é, entretanto, um lugar “subdesenvolvido”. Na verdade, é “des-desenvolvido”, e de maneira muito sistemática, pegando emprestado um termo de Sara Ray, a maior especialista acadêmica em Gaza. Gaza poderia ter se tornado uma região mediterrânea próspera, com rica agricultura, uma promissora indústria pesqueira, praias maravilhosas e, como descobriu-se há dez anos, a perspectiva de uma extensa reserva de gás natural dentro dos limites de suas águas. Coincidentemente ou não, foi há uma década que Israel intensificou seu bloqueio naval, levando navios pesqueiros em direção à costa.
As perspectivas favoráveis foram frustradas em 1948, quando a Faixa tornou-se abrigo da enxurrada de refugiados palestinos que fugiram ou foram expulsos à força do que hoje é Israel.
Na verdade, eles continuaram sendo expulsos quatro anos depois, como informou no periódico Ha’aretz (25.12.2008) o estudioso Beni Tziper. Ele afirma que, já em 1953, “avaliava-se necessário varrer os árabes da região”.
Isso foi em 1953, quando a necessidade de militarização ainda não se insinuava. As conquistas israelenses de 1967 ajudaram a administrar os golpes posteriores. Vieram então os terríveis crimes já mencionados, que continuam até hoje.
É fácil notar os sinais de tais crimes, mesmo numa visita breve. Num hotel perto da costa pode-se ouvir as metralhadoras israelenses empurrando pescadores para fora das águas de Gaza, em direção à própria costa. Assim, eles são levados a pescar em águas que estão poluidíssimas porque norte-americanos e israelenses não permitem a reconstrução dos sistemas de esgoto e energia que eles próprios destruíram.
Os Acordos de Oslo planejavam duas usinas de dessalinização, imprescindíveis em função da aridez da região. Uma, instalação muito avançada, foi construída – em Israel. A segunda é em Khan Yunis, sul da Faixa de Gaza. O engenheiro encarregado de tentar obter água potável para a população explicou que essa usina foi projetada de forma tal que é incapaz de usar água do mar, ela depende de reservas subterrâneas, um sistema mais barato que, no entanto, degrada o aquífero já deficiente. Mesmo assim, a água é limitadíssima. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que cuida dos refugiados (mas não dos outros moradores de Gaza), recentemente lançou um relatório advertindo que os danos ao aquífero podem em breve tornar-se “irreversíveis”, e que, sem ações reparadoras, Gaza talvez deixe de ser um “local habitável” em 2020.
Israel permite a entrada de concreto para projetos da UNRWA, mas não para os palestinos comprometidos com as enormes necessidades de reconstrução. O equipamento pesado permanece ocioso a maior parte do tempo, já que Israel não permite materiais para reparo. Tudo isso é parte do programa descrito por Dov Weisglass, conselheiro do primeiro-ministro Ehud Olmert, depois de os palestinos terem deixado de seguir certas ordens na eleição de 2006: “a ideia”, disse ele, “é aplicar uma dieta aos palestinos, mas não deixá-los morrer de fome”. Não seria de bom tom.
O plano está sendo seguido conscienciosamente. Sara Roy nos dá vasta evidência disso em seus estudos. Recentemente, após anos de esforços, a Gisha, organização israelense pelos direitos humanos, conseguiu obter uma ordem judicial exigindo que o governo divulgue os planos da “dieta”. Jonathan Cook, jornalista em Israel, assim os resume: “oficiais de saúde forneceram cálculos do número mínimo de calorias que Gaza precisa para que os 1.5 milhão de habitantes não fiquem desnutridos. Esse número traduziu-se no número de caminhões de comida que Israel supostamente permite a cada dia, uma média de apenas 67 caminhões – bem menos do que a metade do requerido. E que se compare com isso os 400 caminhões diários de antes do bloqueio”. Segundo relatórios da ONU, mesmo essas estimativas são bastante generosas.
O resultado da imposição da dieta, observa o especialista em Oriente Médio Juan Cole, é que “cerca de 10% das crianças palestinas com menos de cinco anos tiveram seu crescimento atrofiado pela desnutrição. Além disso, a anemia hoje afeta dois terços das crianças mais jovens, 58,6% das crianças em idade escolar e mais de um terço das grávidas”. Os EUA e Israel querem ter certeza de que nada além da mera sobrevivência seja possível.
“O que devemos ter em mente”, diz Raji Sourani, “é que a ocupação e o encerramento absoluto é um ataque em andamento contra a dignidade humana do povo de Gaza em particular, e contra os palestinos em geral. É degradação, humilhação, isolamento e fragmentação sistemática do povo palestino”. Essa conclusão é confirmada por muitas outras fontes. Em um dos mais importantes periódicos médicos do mundo, The Lancet, um físico de Stanford, horrorizado com o que viu, descreveu a Faixa de Gaza como um tipo de “laboratório de observação da completa ausência de dignidade”, condição que tem efeitos “devastadores” sobre o bem-estar físico, mental e social da população. “A constante vigilância vinda do céu, punições coletivas por bloqueios e isolamentos, invasão de lares e de sistemas de comunicação, além de restrições aos que tentam viajar, casar ou trabalhar, tornam difícil viver de maneira digna em Gaza”.
Havia esperanças de que o novo governo egípcio de Mohammed Mursi, menos servil à Israel do que a ditadura de Mubarak, pudesse abrir a Travessia de Rafah, única saída de Gaza que não está sujeita a controle israelense direto. Até houve uma pequena abertura. A jornalista Leila el-Haddad escreve que a reabertura sob Mursi “é simplesmente um retorno ao status quo de anos anteriores: somente os palestinos portadores de identidades de Gaza aprovadas por Israel podem usar a Travessia”, o que exclui inclusive a família da jornalista.
Ademais, continua Leila, “Rafah não leva à Cisjordânia e não permite o transporte de bens, restrito às travessias controladas por Israel e sujeito às proibições a materiais de construção e exportação”. A restrição à Travessia de Rafah não muda o fato, também, de que “Gaza permanece sob apertado sítio marítimo e aéreo e fechada para qualquer capital cultural, econômico ou acadêmico que venha do resto dos territórios palestinos, o que viola as obrigações dos EUA e de Israel segundo o Acordo de Oslo˜.
Os efeitos disso são dolorosamente evidentes. No hospital de Khan Yunis, o diretor, que também é cirurgião-chefe, descreve enfurecido tanto a falta de remédios para aliviar o sofrimento dos pacientes quanto a dos equipamentos cirúrgicos mais simples.
Relatos pessoais dão vivacidade à corrente aversão à obscenidade da ocupação. Um exemplo é o testemunho de uma jovem que desesperou-se quando seu pai, que se orgulharia ao saber que sua filha foi a primeira mulher do campo de refugiados a receber um diploma avançado, “faleceu após seis meses de luta contra o câncer, aos 60 anos. A ocupação israelense negou que ele fosse aos hospitais de Israel para tratar-se. Eu tive de suspender meus estudos, meu trabalho e minha vida para ficar ao lado de sua cama. Todos nós, incluindo meu irmão e minha irmã, sentamo-nos ao lado de meu pai, assistindo seu sofrimento impotentes e sem esperança. Ele morreu durante o desumano bloqueio a Gaza no verão de 2006, com pouquíssimo acesso a serviços de saúde. Sentir-se impotente e sem esperança é o sentimento mais terrível que alguém pode ter. É um sentimento que mata o espírito e quebra o coração. Podemos lutar contra a ocupação, mas não podemos lutar contra o sentimento de impotência. Não se pode nem dissolver esse sentimento”.
Aversão à obscenidade combinada com culpa: nós podemos acabar com esse sofrimento e permitir aos resistentes a vida de paz e dignidade que eles merecem.
(*) Noam Chomsky visitou a Faixa de Gaza nos dias 25 a 30 de outubro.
Tradução de André Cristi.
O comprometimento a isso por parte das lideranças políticas israelenses foi ilustrado expressivamente nos últimos dias, quando eles advertiram que ‘enlouqueceriam’ se os direitos palestinos fossem reconhecidos, mesmo que limitadamente, pela ONU. Essa postura não é nova. A ameaça de ‘enlouquecer’ (‘nishtagea’) tem raízes profundas, lá nos governos trabalhistas dos anos 1950 e em seus respectivos “complexos de Sansão”: “se nos contrariarem, implodimos as paredes do Templo à nossa volta”. À época, essa ameaça era inútil; hoje não é mais.
A humilhação deliberada também não é nova, apesar de adquirir novas formas constantemente. Há trinta anos, líderes políticos, inclusive alguns dos mais notórios ‘falcões’ (sionistas mais conservadores), apresentaram ao primeiro-ministro um relato detalhado de como colonos regularmente violavam palestinos da forma mais vil e com total impunidade. A proeminente analista Yoram Peri notou com repugnância que a tarefa do exército não é a de defender o Estado, mas de “acabar com os direitos de pessoas inocentes somente porque são araboushim (uma ofensa racial) vivendo numa terra que Deus nos prometeu”.
O povo de Gaza foi selecionado para punições particularmente cruéis. É quase miraculoso que eles suportem tal existência. Raja Shehadeh descreveu como eles o fazem num eloquente livro de memórias, A Terceira Via, escrito há 30 anos. O texto relata seu trabalho como advogado empenhado na tarefa de tentar proteger direitos elementares num sistema legal feito para ser insuficiente, além de sua experiência como um resistente que vê sua casa tornar-se uma prisão por ocupantes violentos e nada pode fazer além de “aguentar”.
A situação piorou muito desde o texto de Shehadeh. Os acordos de Oslo, celebrados com muita cerimônia em 1993, determinaram que Gaza e a Cisjordânia eram uma só entidade territorial. Os EUA e Israel puseram sua estratégia de separá-los para funcionar já naquela época, de forma a barrar um acordo diplomático e punir os araboushim em ambos os territórios.
A punição aos moradores de Gaza tornou-se ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um crime hediondo: votaram no “lado errado” na primeira eleição do mundo árabe, elegendo o Hamas. Demonstrando seu amor pela democracia, os EUA e Israel, apoiados pela tímida União Europeia, impuseram um sítio brutal e ataques militares ostensivos logo de cara. Os norte-americanos também imediatamente recorreram ao procedimento operacional padrão para momentos em que populações desobedientes elegem o governo errado: prepararam um golpe militar para restabelecer a ordem.
O povo de Gaza cometeu um crime ainda pior um ano depois. Barraram a tentativa de golpe, levando a uma forte escalada do sítio e das ofensivas militares. Isso culminou, no inverno de 2008-9, na Operação Chumbo Fundido, um dos mais covardes e perversos exercícios de poder militar na memória recente, na qual uma população civil sem defesa e enclausurada ficou sujeita à implacável ofensiva de um dos mais avançados sistemas militares do mundo, que conta com o apoio das armas e da diplomacia estadunidense. Um testemunho inesquecível do morticínio – infanticídio, nas palavras deles – é o livro Eyes in Gaza, de dois corajosos doutores noruegueses, Mads Gilbert e Erik Fosse, que à época trabalhavam no principal hospital de Gaza.
O Presidente Obama não foi capaz de dizer uma palavra além de reiterar sua sincera simpatia pelas crianças sob ataque – na cidade israelense de Sderot. A investida minuciosamente planejada foi levada a cabo justamente antes do empossamento de Barack, assim ele pôde dizer que era hora de vislumbrar o futuro, não o passado.
Obviamente, havia pretextos – sempre há. O de costume, apresentado assim que necessário, é a “segurança”: neste caso, os foguetes caseiros de Gaza. Como de costume, também, o pretexto carecia de credibilidade. Em 2008, estabeleceu-se uma trégua entre Israel e o Hamas. E o governo israelense reconheceu formalmente que o Hamas cumpriu a trégua. Nenhuma bomba do Hamas foi disparada até que Israel rompeu a trégua encoberto pelas eleições presidenciais norte-americanas de 4 de novembro de 2008, invadindo Gaza por motivos ridículos e matando meia-dúzia de membros do Hamas. O governo de Israel foi aconselhado por suas mais altas autoridades de inteligência de que a trégua poderia ser retomada por suavizar o bloqueio criminoso e acabar com as ofensivas militares. Mas o governo de Ehud Olmert, por reputação um “pombo” (termo para os sionistas “moderados”), preferiu rejeitar estas opções e lançar mão de sua enorme vantagem no quesito violência: a Operação Chumbo Fundido.
O modelo de bombardeio da Operação Chumbo Fundido foi analisado cuidadosamente pelo respeitado defensor dos direitos humanos Raji Sourani, natural de Gaza. Ele aponta que o bombardeio concentrou-se ao norte, mirando civis indefesos nas áreas de maior densidade populacional, sem qualquer desculpa do ponto de vista militar. O objetivo, ele sugere, talvez tenha sido mover a população intimidada para o sul, próximo à fronteira com o Egito. Mas, apesar da avalanche terrorista, os resistentes não se moveram.
Outro objetivo provavelmente era movê-los para lá da fronteira. Desde o início da colonização sionista dizia-se que os árabes não tinham motivo para estar na Palestina. Eles podiam continuar felizes noutro lugar e deveriam ser “transferidos” de maneira educada, sugeriam os pombos. Esta, que claramente não é uma preocupação menor do governo egípcio, talvez seja a razão pela qual o Egito não abre sua fronteira seja para civis, seja para os suprimentos dos quais o país necessita desesperadamente.
Sourani e outras fontes dignas de reconhecimento notam que a disciplina dos resistentes oculta um barril de pólvora que pode explodir inesperadamente, como aconteceu na primeira Intifada em Gaza em 1989, após anos de repressão indigna de qualquer interesse ou nota.
Só para mencionar um dos inumeráveis casos, pouco antes da eclosão da Intifada, uma menina palestina, Intissar al-Atar, foi assassinada no pátio da escola pelo morador de um assentamento judeu próximo. Ele era um dos milhares de colonos israelenses trazidos para Gaza, o que violava leis internacionais, sob proteção da enorme presença de um exército que assumiu o controle das terras e da escassa água da Faixa. O assassino da estudante, Shimon Yifrah, foi preso. No entanto, foi solto rapidamente quando o tribunal determinou que “o delito não foi severo o suficiente” para justificar a detenção. O juiz comentou que Yifrah só pretendia assustar a garota por atirar na direção dela, não matá-la, assim, “o caso não é o de um criminoso que deve ser punido com um aprisionamento”. Yifrah recebeu uma pena suspensa de 7 meses, o que levou os outros colonos presentes à sala de tribunal a dançar e cantar. E o silêncio, pra variar, reinou. Afinal, a rotina é essa.
Assim que Yifrah foi libertado, a imprensa israelense reportou que uma patrulha armada atirou no pátio de um colégio para meninos de 6 a 12 anos num campo de refugiados da Cisjordânia, ferindo cinco crianças. O ataque só pretendia “assustá-los”. Não houve punições e o evento, para variar, não atraiu atenção. Era só mais um episódio do programa de “analfabetismo como punição”, disse a imprensa israelense, programa que incluía o fechamento de escolas, uso de bombas de gás, espancamento de estudantes a coronhadas, bloqueio de auxílio médico para vítimas; e para além das escolas predominou a mesma brutalidade, que até asseverou-se durante a Intifada, sob ordens do Ministro da Defesa Yitzhak Rabin, outro bem conceituado “pombo”.
Minha impressão inicial, depois de uma visita de alguns dias, foi de admiração ao povo palestino. Não só pela habilidade de levar a vida, mas também pela vitalidade da juventude, particularmente a universitária, com a qual eu passei um bom tempo numa conferência internacional. Mas também fui capaz de perceber que a pressão pode tornar-se grande demais. Relatos apontam que entre a população masculina jovem há uma frustração crescente e o reconhecimento de que, sob comando dos EUA e de Israel, o futuro não é promissor.
A Faixa de Gaza parece uma típica sociedade de terceiro mundo, com bolsões de riqueza rodeados por uma pobreza medonha. Não é, entretanto, um lugar “subdesenvolvido”. Na verdade, é “des-desenvolvido”, e de maneira muito sistemática, pegando emprestado um termo de Sara Ray, a maior especialista acadêmica em Gaza. Gaza poderia ter se tornado uma região mediterrânea próspera, com rica agricultura, uma promissora indústria pesqueira, praias maravilhosas e, como descobriu-se há dez anos, a perspectiva de uma extensa reserva de gás natural dentro dos limites de suas águas. Coincidentemente ou não, foi há uma década que Israel intensificou seu bloqueio naval, levando navios pesqueiros em direção à costa.
As perspectivas favoráveis foram frustradas em 1948, quando a Faixa tornou-se abrigo da enxurrada de refugiados palestinos que fugiram ou foram expulsos à força do que hoje é Israel.
Na verdade, eles continuaram sendo expulsos quatro anos depois, como informou no periódico Ha’aretz (25.12.2008) o estudioso Beni Tziper. Ele afirma que, já em 1953, “avaliava-se necessário varrer os árabes da região”.
Isso foi em 1953, quando a necessidade de militarização ainda não se insinuava. As conquistas israelenses de 1967 ajudaram a administrar os golpes posteriores. Vieram então os terríveis crimes já mencionados, que continuam até hoje.
É fácil notar os sinais de tais crimes, mesmo numa visita breve. Num hotel perto da costa pode-se ouvir as metralhadoras israelenses empurrando pescadores para fora das águas de Gaza, em direção à própria costa. Assim, eles são levados a pescar em águas que estão poluidíssimas porque norte-americanos e israelenses não permitem a reconstrução dos sistemas de esgoto e energia que eles próprios destruíram.
Os Acordos de Oslo planejavam duas usinas de dessalinização, imprescindíveis em função da aridez da região. Uma, instalação muito avançada, foi construída – em Israel. A segunda é em Khan Yunis, sul da Faixa de Gaza. O engenheiro encarregado de tentar obter água potável para a população explicou que essa usina foi projetada de forma tal que é incapaz de usar água do mar, ela depende de reservas subterrâneas, um sistema mais barato que, no entanto, degrada o aquífero já deficiente. Mesmo assim, a água é limitadíssima. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que cuida dos refugiados (mas não dos outros moradores de Gaza), recentemente lançou um relatório advertindo que os danos ao aquífero podem em breve tornar-se “irreversíveis”, e que, sem ações reparadoras, Gaza talvez deixe de ser um “local habitável” em 2020.
Israel permite a entrada de concreto para projetos da UNRWA, mas não para os palestinos comprometidos com as enormes necessidades de reconstrução. O equipamento pesado permanece ocioso a maior parte do tempo, já que Israel não permite materiais para reparo. Tudo isso é parte do programa descrito por Dov Weisglass, conselheiro do primeiro-ministro Ehud Olmert, depois de os palestinos terem deixado de seguir certas ordens na eleição de 2006: “a ideia”, disse ele, “é aplicar uma dieta aos palestinos, mas não deixá-los morrer de fome”. Não seria de bom tom.
O plano está sendo seguido conscienciosamente. Sara Roy nos dá vasta evidência disso em seus estudos. Recentemente, após anos de esforços, a Gisha, organização israelense pelos direitos humanos, conseguiu obter uma ordem judicial exigindo que o governo divulgue os planos da “dieta”. Jonathan Cook, jornalista em Israel, assim os resume: “oficiais de saúde forneceram cálculos do número mínimo de calorias que Gaza precisa para que os 1.5 milhão de habitantes não fiquem desnutridos. Esse número traduziu-se no número de caminhões de comida que Israel supostamente permite a cada dia, uma média de apenas 67 caminhões – bem menos do que a metade do requerido. E que se compare com isso os 400 caminhões diários de antes do bloqueio”. Segundo relatórios da ONU, mesmo essas estimativas são bastante generosas.
O resultado da imposição da dieta, observa o especialista em Oriente Médio Juan Cole, é que “cerca de 10% das crianças palestinas com menos de cinco anos tiveram seu crescimento atrofiado pela desnutrição. Além disso, a anemia hoje afeta dois terços das crianças mais jovens, 58,6% das crianças em idade escolar e mais de um terço das grávidas”. Os EUA e Israel querem ter certeza de que nada além da mera sobrevivência seja possível.
“O que devemos ter em mente”, diz Raji Sourani, “é que a ocupação e o encerramento absoluto é um ataque em andamento contra a dignidade humana do povo de Gaza em particular, e contra os palestinos em geral. É degradação, humilhação, isolamento e fragmentação sistemática do povo palestino”. Essa conclusão é confirmada por muitas outras fontes. Em um dos mais importantes periódicos médicos do mundo, The Lancet, um físico de Stanford, horrorizado com o que viu, descreveu a Faixa de Gaza como um tipo de “laboratório de observação da completa ausência de dignidade”, condição que tem efeitos “devastadores” sobre o bem-estar físico, mental e social da população. “A constante vigilância vinda do céu, punições coletivas por bloqueios e isolamentos, invasão de lares e de sistemas de comunicação, além de restrições aos que tentam viajar, casar ou trabalhar, tornam difícil viver de maneira digna em Gaza”.
Havia esperanças de que o novo governo egípcio de Mohammed Mursi, menos servil à Israel do que a ditadura de Mubarak, pudesse abrir a Travessia de Rafah, única saída de Gaza que não está sujeita a controle israelense direto. Até houve uma pequena abertura. A jornalista Leila el-Haddad escreve que a reabertura sob Mursi “é simplesmente um retorno ao status quo de anos anteriores: somente os palestinos portadores de identidades de Gaza aprovadas por Israel podem usar a Travessia”, o que exclui inclusive a família da jornalista.
Ademais, continua Leila, “Rafah não leva à Cisjordânia e não permite o transporte de bens, restrito às travessias controladas por Israel e sujeito às proibições a materiais de construção e exportação”. A restrição à Travessia de Rafah não muda o fato, também, de que “Gaza permanece sob apertado sítio marítimo e aéreo e fechada para qualquer capital cultural, econômico ou acadêmico que venha do resto dos territórios palestinos, o que viola as obrigações dos EUA e de Israel segundo o Acordo de Oslo˜.
Os efeitos disso são dolorosamente evidentes. No hospital de Khan Yunis, o diretor, que também é cirurgião-chefe, descreve enfurecido tanto a falta de remédios para aliviar o sofrimento dos pacientes quanto a dos equipamentos cirúrgicos mais simples.
Relatos pessoais dão vivacidade à corrente aversão à obscenidade da ocupação. Um exemplo é o testemunho de uma jovem que desesperou-se quando seu pai, que se orgulharia ao saber que sua filha foi a primeira mulher do campo de refugiados a receber um diploma avançado, “faleceu após seis meses de luta contra o câncer, aos 60 anos. A ocupação israelense negou que ele fosse aos hospitais de Israel para tratar-se. Eu tive de suspender meus estudos, meu trabalho e minha vida para ficar ao lado de sua cama. Todos nós, incluindo meu irmão e minha irmã, sentamo-nos ao lado de meu pai, assistindo seu sofrimento impotentes e sem esperança. Ele morreu durante o desumano bloqueio a Gaza no verão de 2006, com pouquíssimo acesso a serviços de saúde. Sentir-se impotente e sem esperança é o sentimento mais terrível que alguém pode ter. É um sentimento que mata o espírito e quebra o coração. Podemos lutar contra a ocupação, mas não podemos lutar contra o sentimento de impotência. Não se pode nem dissolver esse sentimento”.
Aversão à obscenidade combinada com culpa: nós podemos acabar com esse sofrimento e permitir aos resistentes a vida de paz e dignidade que eles merecem.
(*) Noam Chomsky visitou a Faixa de Gaza nos dias 25 a 30 de outubro.
Tradução de André Cristi.
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