Por
William Nozaki, publicado originalmente na Carta
Maior
Em
comparação com os últimos cinquenta anos, o Brasil convive atualmente com uma
experiência inédita na transformação de sua estrutura social. As políticas de
elevação real do salário mínimo, de expansão da oferta de crédito e de ampliação
dos programas de transferência de renda estimularam o crescimento do PIB com
base no avanço do mercado interno e originaram um tripé socioeconômico virtuoso
caracterizado pelo aumento do mercado formal de trabalho, pela redução da
pobreza e pela melhora na distribuição de renda.
Essa
combinação de fatores tem como uma de suas principais conseqüências um fenômeno
nem sempre analisado com o devido cuidado e rigor: o crescimento daquilo que se
chama de modo inapropriado de “classe C” ou “nova classe média”.
Embora
o adensamento das camadas intermediárias seja um fenômeno incontestável, a maior
parte das pesquisas que captam essa mudança incorre em dois erros:
(i)
Há uma associação superficial entre renda individual e classe social. O fato,
por exemplo, de um trabalhador industrial qualificado e um professor
universitário auferirem a mesma renda pode ser encarado como um indicador
macroeconômico de redução da desigualdade. Mas, sociologicamente, diz muito
pouco, ou quase nada, sobre seus estilos de vida distintos e seus hábitos de
consumo diferentes. Tais ganhos, certamente, serão utilizados a partir de
referências culturais e entre redes sociais que não garantem nenhum laço de
pertencimento de classe, pelo contrário: o mais provável é que a realização do
consumo revele status sociais ainda muito desiguais. Nesse sentido, há muitas
diferenças entre o estilo de vida da classe média estabelecida e da chamada
“nova classe média” que estão longe de ser transpostas.
(ii)
Há uma relação inadequada entre renda média e estrato médio. Na maior parte das
vezes, os estudos que abordam o assunto referem-se à média em seu sentido
algébrico, ou seja: média é a posição matemática daquilo que está igualmente
distante dos pontos extremos. Como a distribuição de renda no país é
historicamente severa e como há uma distância muito grande entre os muito ricos
e os extremamente pobres, o agrupamento intermediário orbita numa vasta faixa de
rendimentos que vai, aproximadamente, de R$ 1000 a R$ 5000. Essa zona de
estratificação dilatada impede análises mais criteriosas. Sendo assim, as
denominações “classe C” e “nova classe média” são infelizes, posto que
transmitem a impressão de que o Brasil está se tornando aquilo que não é: um
país em que os remediados são a maioria e no qual a pobreza vai tornando-se um
problema residual.
Para
compreender essas mudanças em sua inteireza é preciso empreender uma análise que
incorpore outras variáveis como estrutura ocupacional, acesso a mercadorias
privadas e a serviços públicos, padrões de consumo, entre outros.
Perfil
e preferências econômicas
Sob
essa perspectiva o que se evidencia é que o mais adequado é denominar o estrato
que ascendeu socialmente e economicamente nos últimos anos de nova classe
trabalhadora urbana. Do ponto de vista ocupacional, trata-se de vendedores,
balconistas, motoristas, motoboys, profissionais de telemarketing, os diversos
tipos de auxiliares que atuam em empresas e comércios, recepcionistas,
cabeleireiros, garçons e uma heterogeneidade de trabalhadores
qualificados.
Do
ponto de vista da educação, seus integrantes, na maioria, são aqueles que
utilizam as escolas públicas ou escolas particulares com mensalidades mais
baixas; e do ponto de vista da saúde, são aqueles que necessitam dos hospitais
públicos ou de planos de saúde mais baratos. Esse balanceio instável entre os
serviços públicos e as possibilidades privadas mais “em conta” se reproduz em
outras esferas: habitação, transporte, segurança, alimentação, cultura, lazer,
entretenimento etc.
Por
esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida que se queixa dos
impostos inadvertidamente, a nova classe trabalhadora percebe com contrariedade
o aumento de impostos, taxas e tarifas pois sua elevação lhe afeta mais
diretamente o poder de compra, mas ela também reconhece a importância e a
necessidade dos serviços públicos pois depende deles mais frequentemente.
Essa
nova classe trabalhadora, em grande medida, trabalha de 10 a 14 horas por dia,
tem dois ou mais empregos, trabalha de dia enquanto estuda a noite, e nas
grandes cidades enfrenta horas de transporte público enquanto se desloca entre a
casa e o trabalho. Também por esses motivos, ao contrário da classe média
tradicional que tudo atribui ao mérito individual, a nova classe trabalhadora
percebe sua ascensão como fruto do esforço individual e de privações, mas sabe
que precisa contar frequentemente com alguma rede de solidariedade e laços
fraternos entre os amigos e os vizinhos.
Mais
do que outros estratos, esse grupo se beneficia da expansão do crédito ao
consumidor e está satisfeito com a possibilidade de adquirir novos bens
considerados indispensáveis para o conforto doméstico e para a melhora na
qualidade de vida na cidade, esse grupo está disposto a encontrar sua
sociabilidade pelos caminhos do consumo.
Idéias
e preferências políticas
Esse
conjunto de ambiguidades leva a crer que a nova classe trabalhadora não
necessariamente tem uma consciência conservadora. Pelo contrário, esse setor
está potencialmente disponível e aberto a visões mais progressistas, seus
valores e seu voto podem ser conquistados pela esquerda.
Para
compreender a relação entre as preferências econômicas e políticas dessa nova
classe trabalhadora é fundamental considerar que o aumento do poder de compra
possibilitou o acesso a novos canais de formação e informação, mais do que isso:
tais canais têm sido ocupados, sobretudo, por um número significativo de jovens
e é a partir desse grupo que se irradiam certas opiniões políticas e
eleitorais.
A
progressiva ampliação do acesso à educação e à internet tem promovido uma
importante mudança em suas exigências e interesses políticos. No atual contexto,
o eixo da formação de opinião se deslocou dos pais ou de velhas lideranças
locais (representantes comunitários, padres e pastores) para os filhos.
A
maior parte desses jovens tem níveis de escolaridade mais elevados do que os dos
pais, estão conquistando uma melhor inserção profissional e seguem atentos para
as mudanças tecnológicas, por isso eles são ouvidos com maior atenção dentro das
suas famílias e comunidades, atuando como referências prioritárias para a
formação de opinião, de forma mais incisiva do que as propagandas e a própria
televisão.
Os
pais dessa nova geração enxergavam o mundo pela ótica da carência que marca a
periferia, observavam os políticos considerando aquilo que não havia sido feito
e permaneciam mais suscetíveis a promessas de campanhas eleitorais. Já essa nova
geração - ao circular por novos espaços como a universidade e as redes sociais -
enxerga o mundo por uma ótica mais ampla, dispõe de um maior número de
referências para operar comparações, avalia os políticos e os partidos
considerando aquilo que deveria ter sido feito e nutre maior desconfiança com
relação a promessas de campanhas eleitorais. Vale ainda notar que, se por um
lado, eles não desejam o estilo de vida da elite, por outro, eles desejam
continuar ascendendo socialmente.
Essa
disposição para a mudança, entretanto, passa por marcos ambivalentes: esses
jovens acreditam na política, mas não crêem em partidos; reconhecem a
importância da coletividade, mas almejam crescer individualmente; buscam
transformações, mas são pouco afeitos a rupturas; anseiam por novas ideias, mas
são também pragmáticos. Em suma, esse novo caldo cultural exigirá renovações
tanto na forma como se realiza a política partidária quanto no conteúdo das
políticas públicas que se implementam.
A
mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo
trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas
relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da
inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe
trabalhadora.
A
nova classe trabalhadora entendida como um novo sujeito político pode fazer toda
a diferença nos embates sociais, políticos, ideológicos e eleitorais que serão
travados de agora em diante.
(*)
William Nozaki é Sociólogo e Economista, professor da Universidade Mackenzie e
doutorando em desenvolvimento econômico
(IE/Unicamp).
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