Celso Amorim
Uma imagem vale mais que cem palavras, diz o provérbio chinês; e
uma ação vale por cem imagens, poder-se-ia complementar. E, no entanto,
na diplomacia, as palavras podem ter grande peso.
A combinação das palavras com as ações em matéria de política externa, que se ouviram ou viram até aqui, inspira preocupação.
É até compreensível que o novo chanceler do governo interino
defenda o processo que o guindou ao cargo, amplamente criticado no
mundo, ainda que uma grande parte da população brasileira considere tal
processo ilegítimo.
E não estamos falando apenas dos militantes do PT e do PC do
B, mas de artistas e intelectuais, que, de maneira intuitiva,
interpretam a alma do povo. Certamente, a imagem da equipe do filme
“Aquarius”, estampada pela Folha em sua primeira página da edição de
quarta-feira (18), contrasta, inclusive por sua diversidade, com as
figuras cinzentas que aparecem na cerimônia de posse do presidente
interino.
Por um momento, ao vê-las, com os áulicos de ontem e de
sempre, fui transportado aos eventos palacianos do tempo do governo
militar, quando não se viam mulheres, negros ou jovens.
O que assistimos no Itamaraty guarda semelhança com esse quadro mais amplo.
Em suas primeiras ações, o novo chanceler disse a que veio: com
palavras incomumente duras, que fazem lembrar os comunicados do tempo
da ditadura, como a acusação de que governos de países da nossa região
estariam empenhados em “propagar falsidades”, as notas divulgadas
(aliás, estranhamente atribuídas ao Ministério das Relações Exteriores e
não ao governo brasileiro, como de praxe, com o intuito provável de
enfatizar a autoria) atacam governos de países amigos do Brasil, ameaçam
veladamente o corte da cooperação técnica a uma pequena nação pobre da
América Central e acusam o secretário-geral da Unasul (União das Nações
Sul-Americanas), um ex-presidente colombiano, eleito pela unanimidade
dos membros que constituem a organização, de extrapolar suas funções.
Um misto de prepotência e de arrogância pode ser lido nas
entrelinhas, como se o Brasil fosse diferente e melhor do que nossos
irmãos latino-americanos.
Talvez, por prudência (ou temor do sócio maior dessa
entidade), as notas evitaram palavras equivalentes sobre a OEA
(Organização dos Estados Americanos), a despeito das expressões críticas
do seu secretário-geral e da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Até o momento, eximiu-se de manifestar-se sobre as preocupações
expressadas pela pequena, mas altiva Costa Rica, insuspeita de
bolivarianismo.
Mas o que mais preocupa é o afã em diferenciar-se de governos
anteriores, acusados de ação partidária, como se esta só existisse na
esquerda do espectro político. Quando o partido é de direita, e as
opções seguem a cartilha do neoliberalismo, não haveria partidarismo.
Tratar-se-ia de políticas de Estado.
Há muito que “especialistas”, cujos discursos são ecoados pela
grande mídia, acusam de “partidária” a política externa dos governos
Lula e Dilma, esquecendo-se que muitas de suas iniciativas foram objeto
de respeito e admiração pelo mundo afora, como a própria Unasul
—aparentemente desprezada pelos ocupantes atuais do poder— os Brics
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul; sem os quais não teria
havido a primeira reforma real, ainda que modesta, do sistema de cotas
do FMI e do Banco Mundial) e o G-20 da OMC (Organização Mundial do
Comércio), que mudou de forma definitiva o padrão das negociações em
nível global.
Ao mesmo tempo, busca-se derreter o Mercosul, retirando-lhe
seu “coração”, a União Aduaneira (para tomar emprestado uma metáfora do
presidente Tabaré Vasquez).
Em matéria comercial, o afã em aderir a mega-acordos regionais
do tipo do TPP (a Parceria Transpacífico ) denota total ignorância das
cláusulas, que cerceiam possibilidades de políticas soberanas (no campo
industrial, ambiental e de saúde, entre outros).
Chega a ser espantoso que alguém que se bateu, com coragem e
firmeza, pelo direito de usar licenças compulsórias para garantir a
produção de genéricos, não esteja informado da existência de cláusulas,
intituladas enganosamente de Trips plus (na verdade, do nosso ponto de
vista, seriam Trips minus), que, de forma mais ou menos disfarçada,
reduzem a latitude para o uso de tais medidas, no momento em que
comissões de alto nível criadas pelo secretário-geral da ONU alertam
para o risco de debilitar a Declaração de Doha sobre Propriedade
Intelectual e Saúde, consagrada pelos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável, aprovada pelos chefes de Estado na 20ª Assembleia Geral da
ONU.
A África, de onde provém metade da população brasileira e onde
os negócios do Brasil cresceram exponencialmente —sem falar na
importância estratégica do continente africano para a segurança do
Atlântico Sul- ficará em segundo plano, sob a ótica de um pragmatismo
imediatista. Sobre os Brics, o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), as
relações com os árabes, uma menção en passant. Esqueça-se a
multipolaridade, viva a hegemonia unipolar do pós-Guerra Fria. Nada de
atitudes independentes.
A Declaração de Teerã, por meio da qual o Brasil, com a
Turquia (e a pedido reiterado do presidente Barack Obama, diga-se de
passagem) mostrou que uma solução negociada era possível, completou seis
anos, no dia 17 de maio. Na época, foi exaltada por especialistas das
mais variadas partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Porém
causou horror aos defensores do bom-mocismo medíocre em nosso país.
Mas as elites não terão mais nada a temer. Nenhuma atitude
desassombrada desse tipo voltará a ser tomada. O Brasil voltará ao
cantinho pequeno de onde nunca deveria ter saído.
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