Por que deixo o Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde depois de três anos à frente da Pasta
Minha
gestão à frente do DDAHV começou em Julho de 2013 quando o então
Ministro Alexandre Padilha me convidou para deixar meu trabalho de oito
anos no exterior, seis dos quais na Organização Mundial da Saúde, para
voltar ao Brasil e dirigir a vitoriosa política pública de DST/AIDS e
Hepatites Virais do país.
O dilema entre resistir dentro do
governo provisório em defesa do SUS ou encerrar um ciclo de gestão
arrojada chega ao fim em apenas 13 dias.
Os problemas que afetam a
política pública de saúde no Brasil não começaram neste governo
provisório, mas em poucos dias foram intensificados de maneira
alarmante.
Já convivíamos internamente, há certo tempo, com
inúmeras imposições político-partidárias, como a inclusão – ainda na
gestão do então ministro da Saúde Arthur Chioro – do ex-secretário de
saúde Municipal de Maringá, Antônio Nardi, na cota do Partido
Progressista, como secretário de Vigilância em Saúde, contrariando a
história dessa Secretaria – que, desde a sua criação, sempre foi
dirigida por profissionais de Saúde Pública altamente qualificados.
Também
na Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), o governo da Presidenta Dilma,
legitimamente eleita pelo voto popular, tolerou a inserção do psiquiatra
Valencius, contrariando toda a história da luta antimanicomial no
Brasil, liderada por governos do Partido dos Trabalhadores e aliados,
gerando uma manifestação inédita do movimento antimanicomial contra um
governo do PT.
Cortes de gastos na Saúde haviam sido impostos já
no governo Dilma em 2015 e 2016, mas nada que chegasse a comprometer os
princípios constitucionais, como a vinculação orçamentaria dos recursos
da Saúde.
O poema do brasileiro Eduardo Alves da Costa: No
Caminho, com Maiakowski, retrata bem esse processo de subtração
gradativa de conquistas: “Na primeira noite eles se aproximam, roubam
uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não
se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até
que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a
luz e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E como
não dissemos nada, já não podemos dizer mais nada”.
Chegamos
exaustos da batalha perdida em defesa da democracia, ao governo
provisório de Michel Temer – um governo que se inicia com uma composição
de ministros (homens, brancos e héteros, vários deles líderes
religiosos fundamentalistas) que em nada representam a diversidade da
população brasileira ou a inexorável conexão com o século 21 (como disse
o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, ao justificar o seu
honroso ministério, composto de 50% de mulheres).
No anúncio de
sua política econômica, o governo provisório já antecipou significativos
cortes na Saúde e na Educação – e começou a anunciar a futura
desvinculação do Orçamento da União.
Na política de direitos
humanos, esse governo acabou com o Ministério de Direitos Humanos –
colocando-o submetido ao Ministério da Justiça, sob comando do
ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Alexandre
Moraes, um notório repressor dos movimentos sociais, que há pouco tempo
dirigia as operações truculentas da Polícia Militar paulista,
responsável por boa parte do genocídio da juventude negra e,
seguramente, a que mais viola os direitos humanos no Brasil.
Esse
mesmo governo também extinguiu o Ministério da Cultura, desprezando a
atividade cultural do país, menosprezando sua historia e desvalendo seu
povo, voltando atrás pouco depois, graças à resistência dos movimentos
populares de cultura, de artistas e intelectuais, por todo Brasil.
Com
relação à política pública sobre drogas, o governo interino transferiu a
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) para o Ministério
do Desenvolvimento Social, sob a coordenação do ministro Osmar Terra,
que propõe a hegemonia das Comunidades Terapêuticas – diga-se de
passagem, já imposta secundariamente pela senadora do PT, Gleisi
Hoffmann, durante o primeiro governo de Dilma Rousseff .
Essa
proposição do Ministro Osmar Terra de política pública sobre drogas no
Brasil dá todo poder ao setor privado, ressaltando que não há nenhuma
evidência de que essas instituições funcionem, porque, em sua maioria,
são de caráter religioso e não são do ponto de vista técnico-científico,
nem comunidades, nem terapêuticas.
Voltemos então ao Ministério da Saúde, que é o meu lugar de fala.
Para
ele, o presidente interino convidou um engenheiro e deputado federal do
Partido Popular, Ricardo Barros, para ocupar o posto de ministro da
Saúde.
Essa negociação político-partidária – que rifa o
Ministério da Saúde – já havia de fato ocorrido também no governo Dilma,
mas Marcelo Castro que teve um curto mandato, era um parlamentar médico
e um ser humano extremamente decente.
Para começar, foi um dos únicos aliados da base governista que não traiu Dilma Roussef durante as votações do impeachment.
Além
disso, deu suporte a todas as ações do DDAHV, prestigiando e celebrando
suas conquistas e tendo uma postura ética com os funcionários, mesmo
quando em eventual discordância técnica.
Ricardo Barros, por sua
vez, já chegou anunciando que ia diminuir o SUS e incentivar o aumento
de planos de saúde; se propôs a cortar os médicos cubanos do programa
Mais Médicos; e passou a dar voz aos setores mais reacionários de minha
categoria profissional.
Recentemente, em sua primeira missão
internacional na Assembleia Mundial de Saúde da Organização Mundial da
Saúde, na Suíça, seus assessores argumentaram que precisava viajar com
uma delegação menor – provável justificativa para a ausência da
diretoria do DDAHV na delegação, apesar de estarem sendo votadas as
estratégias quinquenais de DST, AIDS e hepatites virais – mas sua
esposa, inexplicavelmente, compôs a delegação oficial.
E mais, em
onze dias após a sua posse – no dia 24 de maio de 2016 –, houve a
nomeação apenas da Secretaria Executiva: o coração político e de gestão
do dinheiro do Ministério.
Apesar das gravíssimas epidemias de
zika, dengue, chikungunha e H1N1 não houve, até o momento (agora 13 dias
após a posse), nomeação de nenhum outro secretário, nem mesmo para a
Secretaria de Vigilância em Saúde, responsável pelo controle dessas
epidemias.
O único nomeado até agora, foi o ex-secretário de
Vigilância em Saúde, Antônio Nardi, promovido a secretário-executivo,
que é a mesma coisa que ser um vice-Ministro.
Desde então ele tornou-se responsável pelo manejo da maior fatia do orçamento do Ministério da Saúde.
Já
não era tarefa fácil suportar os desmandos de Nardi durante este
último ano de minha gestão – pelo constante assédio moral dirigido aos
trabalhadores do SUS; pela arrogância de, mesmo sem formação adequada,
ou sensibilidade necessária, portar-se como se fora um profundo
conhecedor de um campo tão vasto quanto a Vigilância em Saúde; e pela
deselegância, no trabalho; de seu constante uso de gritos e xingamentos,
por vezes destinados a funcionários de menor posição.
Conduta
evidentemente inadequada particularmente a alguém que ocupa cargo tão
relevante no serviço público, e que está à frente de um setor que prima,
entre outras coisas, pela promoção dos Direitos Humanos.
Há hoje incontáveis exemplos de suas frases memoráveis circulando pelos corredores do Ministério da Saúde.
Em
uma das reuniões do Colegiado de Diretores da SVS, contrariado com um
dos Diretores que buscou apoio do Gabinete do Ministro para solucionar
um problema que ele se negou a resolver, bateu na mesa e com uma
palavra de baixo calão, se disse o dono da SVS para espanto de todos.
Essas posturas inadequadas, no entanto, são detalhes, diante de seu mais recente arroubo de truculência.
Enquanto
o ministro estava em Genebra, Nardi, atuando interinamente, despachou
um documento PROIBINDO a participação do diretor ou de qualquer outro
funcionário, consultor ou colaborador do Departamento de DST, AIDS e
Hepatites Virais do Ministério da Saúde no Encontro de Alto Nível das
Nações Unidas em HIV/AIDS, que será realizado entre os dias 8 e 10 de
junho, em Nova York.
Trata-se de um importante encontro sobre
AIDS, e sobre o que fazer para garantir o controle da epidemia de AIDS
até 2030, meta dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, do qual o
Brasil é signatário.
Em 31 anos de existência formal da resposta
brasileira à epidemia de AIDS, essa será a primeira ausência dos
técnicos que trabalham com o tema em um fórum tão crucial, se esta
sandice prosperar.
Os ataques de Antônio Nardi à política
brasileira de DST, de AIDS e de Hepatites Virais foram incontáveis ao
longo desse último ano, no entanto, até o presente momento, eram sempre
superados através da intercessão da Secretaria Executiva do Ministério
da Saúde ou do próprio gabinete do Ministro.
Por esse motivo,
muitas dessas tentativas de ataque e retrocessos passaram quase que
imperceptíveis aos que estão de fora do Ministério da Saúde, mas foram
motivos para muito desgaste, stress e desânimo por parte da equipe à
frente do Departamento.
Portanto, diante desse governo provisório
lamentável e conservador – e diante desse ministro da Saúde e de seu
secretário executivo – e especialmente diante dos mais recentes ataques à
independência e autonomia técnica que sempre gozei ante meu trabalho
com os quatro Ministros que trabalhei anteriormente, infelizmente me dou
conta de que resistir de dentro do DDAHV, neste governo provisório,
não será mais possível.
Certamente, continuarei a defender o SUS
que ajudei a construir (ainda como parte do Movimento da Reforma
Sanitária) nos anos 1980, com tantos companheiros e companheiras de luta
e, com certeza, jamais deixarei de combater as infecções sexualmente
transmissíveis, a AIDS e as hepatites virais; e a lutar pela vida das
pessoas que dependem dessas políticas públicas.
Enquanto estiver
vivo, dedicarei a minha vida para a promoção dos Direitos Humanos de
homens e mulheres transexuais, bissexuais, gays e lésbicas, pessoas que
usam drogas, profissionais do sexo, jovens, negros, indígenas, mulheres e
às pessoas vivendo com HIV e aos portadores de hepatites virais e
IST’s, consistentemente com a minha história.
Estes são os
irmãos de jornada aos quais tive orgulho de escolher para serem meus
companheiros, amigos e cúmplices nessa estrada, e que são a expressão
maior dos motivos que me levam a dedicar minha vida pessoal e
profissional a essa causa.
Seguirei lutando a partir de outro endereço.
Não importa qual, mas não mais como diretor do Departamento que tive a honra de dirigir durante quase três anos.
Peço
exoneração amanhã, dia 27 de maio de 2016, torcendo para que essa
política do Estado Brasileiro seja preservada por quem quer que assuma
esta diretoria, e enquanto durar esse governo provisório.
Sigo no
Departamento até a publicação de minha exoneração no Diário Oficial da
União, e sigo na luta pelo SUS com o qual sonhamos, onde quer que eu
esteja.
Por fim, agradeço a todos aos funcionários e agregados do
Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais por seu trabalho
incansável e militante; aos trabalhadores e trabalhadoras da SVS e do
Ministério da Saúde que dedicam suas vidas à construção do SUS; a todos
(as) os (as) pesquisadores (as) e profissionais de saúde que trabalham
no tema no Brasil, com destaque à Sociedade Brasileira de Infectologia
(SBI), à Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) e à Sociedade
Brasileira de Medicina Tropical (SBMT).
Agradeço à sociedade
civil organizada, incluindo todas as entidades de pessoas vivendo com
HIV, pessoas vivendo com Hepatites Virais, jovens, mulheres, negros,
indígenas, populações trans, de gays, lésbicas e bissexuais, pessoas que
usam drogas, profissionais do sexo e de varias outras organizações que
contribuíram de maneira destacada para o aprimoramento da luta por
diretos humanos, pela diversidade e por um SUS de qualidade, inovador e
baseado em evidências científicas.
Agradeço ainda à parceria
sempre presente dos (as) colegas do Itamaraty, de agências da ONU como a
OMS, UNAIDS, UNICEF, UNFPA, UNESCO, UNODC, PNUD, ONU Mulheres, Banco
Mundial dentre outras, bem como às agências bilaterias como o CDC dos
Estados Unidos da América.
Agradeço ainda a todos (as) os (as)
coordenadores (as) municipais e estaduais de DST, Hepatites Virais e
HIV/AIDS de todo o país por seu compromisso com as causas comuns e
alinhamento com o DDAHV.
Parafraseando Darci Ribeiro “eu sinto de
não ter sido vitorioso em todas as minhas causas, mas os fracassos são
minhas vitórias e eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Fábio Mesquita
Médico – Doutor em Saúde Pública
Militante do SUS
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