sexta-feira, 27 de maio de 2016

Escárnio

Por Vladimir Safatle
 
vladimir_safatleEsta é a melhor palavra para descrever as duas primeiras semanas de governo provisório. Escárnio produzido por ministros com declarações bombásticas de reformas absurdas e desmentidas no dia seguinte, como se fôssemos obrigados a viver em um estado contínuo de desorientação e desgoverno.
Escárnio de outros ministros grampeados em conversas nas quais o apregoado impeachment moralizador se mostra como a cortina de fumaça para livrar seus pescoços da guilhotina da Lava Jato. Escárnio de um governo que terceirizou sua política econômica para o sistema financeiro.
Governando o país como um açougueiro, seu ministro-banqueiro apresentou ao país um plano de cortes que visa conservar intacto os lucros de seus amigos banqueiros e os rendimentos de seus sócios rentistas.
Diante dos desafios da economia, não passou na cabeça de sua equipe utilizar reservas internacionais, aumentar impostos para os ricos, recriar a CPMF, taxar lucros bancários ou auditar a dívida pública brasileira. Nunca na história recente deste país alguém teve a coragem de apresentar um plano que penalizasse tanto a população mais pobre, que sofrerá nos próximos anos o resultado da limitação dos gastos em educação e saúde, além da retração do Estado como agente indutor de investimentos.
A viabilidade do SUS, um sistema universal para 180 milhões de pessoas e que cobre um território quase do tamanho de toda a Europa, encontra-se ameaçada.
Não por outra razão, seu "ministro da Saúde" afirmou, em um lapso de honestidade, que considerava a manutenção de sua universalidade inviável. Da mesma forma, aqueles que saíram às ruas em 2013 exigindo uma "educação padrão Fifa" terão que se contentar com uma "educação padrão restos a pagar", marcada até mesmo pelo risco de eliminar o piso nacional de salário para professores.
Enquanto isso, seu ministro da Educação produzia mais um escárnio à comunidade educacional utilizando seu tempo, que deve estar bastante livre, para receber "propostas" de grandes estudiosos da educação nacional como o senhor Alexandre Frota e seus amigos do Revoltados Online. Ao ser questionado sobre a pertinência de tal encontro, o referido ministro saiu-se com a afirmação de que "esse ministério comporta a pluralidade e o respeito humano a qualquer cidadão".
Então que tal começar por explicar por que um dos primeiros encontros do senhor ministro é com pessoas que nunca pisaram em uma sala para dar aulas, mas que, com uma discussão esdrúxula de "escola sem partido", visam exatamente impedir que a pluralidade seja ensinada a nossos alunos?
Pessoas que não querem que nossos alunos sejam confrontados a diferentes leituras do mundo, a processos que questionem suas certezas e a representações e opiniões que desenvolvam sua capacidade crítica.
Segundo esses pilares da educação nacional, nossas escolas estariam infestadas de marxistas doutrinando nossos alunos. Não por acaso, esse era o discurso que ouvíamos no início da ditadura militar. Pois foi diretamente de lá que essa discussão retornou.
No entanto, qualquer um que realmente leu os livros que nossos alunos recebem nas escolas públicas sabe que eles conhecerão tanto a visão liberal quanto a visão marxista, descobrirão tanto quem foi Marx quanto quem foi Locke e Adam Smith. Eles terão visões distintas sobre fatos históricos complexos e poderão compor um quadro no qual várias matrizes se apresentam.
Mas talvez essas sumidades queiram mais. Por exemplo, talvez elas queiram que não se fale da tortura na ditadura militar, que se mostre que há também "um outro lado" para o qual torturador é herói.
Bem, segundo essa lógica, poderíamos então ensinar os "dois lados" do nazismo e do "antisemitismo", por que não? E se é para retirar toda "ideologia" da escola, que tal aproveitar e começar por fechar as escolas confessionais? Afinal, tem algo mais "ideológico" do que religião?
Sugiro também impedir toda discussão sobre ética e moral. Pois conceitos como "liberdade", "autonomia", "diversidade", "igualdade", "respeito à alteridade" são necessariamente carregados de "ideologia".
Saint-Just afirmou, no calor da Revolução Francesa: "Aquele que brinca ao ocupar o coração do poder tende à tirania". Vendo o que o governo interino ofereceu ao país nessas duas primeiras semanas, a única coisa a dizer é: "Eles só podem estar brincando"
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo

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