terça-feira, 31 de maio de 2016

Um filme chamado Brasil

Saul Leblon, na Carta Maior

  
Instale uma lente grande angular na sua angústia com o Brasil.

Abstraia contradições óbvias demais.

Essa, por exemplo:  um projeto econômico neoliberal que só se viabiliza com um golpe de Estado articulado por instituições que encarnariam o liberalismo --o congresso ‘representativo’, o judiciário ‘independente’, ‘a mídia ecumênica e isenta’...

Não restou um tijolo desse edifício no Brasil pós 11 de maio.

Afaste a tentação de condensar essa montanha desordenada de ruínas no riso de escárnio de Gilmar Mendes.

A toga partidária é um personagem por demais caricato, ainda que representativo do Supremo Tribunal do país.

Tome a mídia como referido, não como referência.

Para guardar alguma distância em relação ao país e ainda assim enxerga-lo melhor, imagine um enredo de Costa Gavras.

Não o óbvio ululante: o assalto ao poder por parte da cleptocracia de rentistas, banqueiros, proprietários dos meios de comunicação, escória política...

Vá além da borra tóxica que flocula na superfície pegajosa dos noticiosos.

Abra lentes para o mundo.

O mundo da grande estagnação que amassa o capitalismo global desde o colapso de 2008, no qual ano a ano as instituições internacionais revisam para baixo suas projeções de ‘recuperação’.

Sociedades subtraídas de seus pilares indivisos -- pujança industrial, empregos de qualidade, sindicatos representativos, Estados fortes e reguladores, direitos sociais universalizados— experimentam o longo inverno de uma encruzilhada histórica.

A incerteza é senhora.

O subemprego, permanente.  

Precariedade profissional e social, generalizadas.

O conjunto contamina as relações pessoais e coletivas, mastigadas nas mandíbulas de um sistema político incapaz de reinventar o futuro.

As estruturas produtivas mudaram à frente das estruturas políticas.

Mudaram para pior.

Ferrugem industrial e mal-estar social.

A polarização que opõe Sanders e Trump nos EUA decorre desse derretimento de um tempo capitalista que se despediu para sempre e levou consigo o espaço estrutural das camadas médias.

Sobrou a fricção crua dos interesses contrapostos.

Só mitigados pela manipulação midiática.

‘É isso que se vê nos EUA. Essa contraposição é algo muito sério e profundo, vai além da retórica de palanque’, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em meio a uma conversa sobre a natureza igualmente extremista do desmonte neoliberal promovido pelo golpe no Brasil.

O filme imaginário de Costa Gravas mostra a esquerda brasileira, como a de todos os lugares, perplexa.

Hesita-se em abandonar uma zona de conforto que aderna e  deixou de fazer sentido sob as novas condições globais, brutalmente internalizadas aqui pelo golpe.

O xeque-mate impõe-lhe repensar as bases do desenvolvimento.

E mais que isso: a correspondente arregimentação de forças para viabiliza-las, sem as velhas ilusões na indulgência dos mercados e da mídia.

Trata-se de reconstruir os canais de decisão da sociedade.

Mas sem esquecer os requisitos econômicos à vigência futura de uma verdadeira democracia social.

‘Sem indústria –ou hiperindustrialização, como se vê em setores de ponta, inclusive na agricultura’, pondera em off a voz do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ‘ uma sociedade não cria os requisitos de investimento, emprego, renda e receita para a convergência social. A desigualdade se impõe’.

Como se impôs nos EUA desguarnecido de zonas inteiras de industrialização  transferidas para o inalcançável padrão de eficiência e custo chinês.

Como reindustrializar um país caudatário nessas condições, sem resvalar no protecionismo cartorial?

‘O ponto de partida é que você não consegue decidir mais o seu desenvolvimento sem reverter a liberalização da conta de capitais, que removeu barreiras aos fluxos especulativos. Terá que fazer isso, sobretudo, com instrumentos de regulação das operações com derivativos, desvinculadas dos fluxos, mas de efeitos cambiais adversos sobre a competitividade industrial’, sinaliza o economista brasileiro.

O que o ele enfatiza, para horror da equipe do golpe, é endossado por alas do próprio FMI.

Corte para a matéria do Financial Times de 30/05/2016.

Voz radiofônica sobre imagens de plantas industriais e bairros decadentes do entorno de Detroit e favelas latinoamericanas: ‘...três dos principais economistas do FMI sugerem que a "agenda neoliberal" pode ter tido menos sucesso do que o pretendido - e que produziu um aumento da desigualdade (em consequência de dois elementos específicos do chamado cuore neoliberal):  liberalização da conta de capital, ou seja, a remoção de barreiras aos fluxos de capitais; e consolidação fiscal, hoje mais comumente denominada austeridade."

Volta à disjuntiva subjacente ao golpe brasileiro.

Qual Brasil?

O da industrialização sonhada por Vargas, Furtado, pelos nacionalistas, keynesianos e marxistas; ou o paraíso da arbitragem de juros, o entreposto dos especuladores, a terra de ninguenzada, com alfandegas livres, o reino da Alca, de FHC, e do entreguismo psicopata de José Serra, que subordina a nação ao seu ego?

A indiferença jornalística diante das determinações globais que dificultam a transição de ciclo do desenvolvimento brasileiro tem razões estratégicas.

O véu espesso lançado pelo noticiário cuida de sonegar a gravidade do desequilíbrio mundial para enfatizar a tese do “desgoverno petista”.

O recorte pavimenta a inexorabilidade do arrocho e empresta virtude à gororoba neoliberal que, finalmente, tomou o poder a contrapelo das urnas.

Ter a visão integral do jogo é decisivo para poder vencê-lo.

O enredo imaginário de Costa Gavras passeia agora pelas reuniões de pauta e de fechamento dos jornais e telejornais em que esse requisito é sonegado.

Ali se assa o pão aziago do fatalismo, da desventura, das impossibilidades, da prostração, da perda da autoestima pessoal, política, nacional, histórica.

Ali se desvela a usina que acua o imaginário social até leva-lo à catatonia.

Não há fato que resista a títulos, fotos, imagens e escaladas manipuladas pela lógica pré e pós golpe.

Exceto um deles: a rua.

Ainda assim, a narrativa justa das causas que dificultam a retomada do crescimento – seu componente interno e externo – é crucial para arregimentar a correlação de forças necessária a uma repactuação progressista do desenvolvimento.

Sem isso a rua pode ser exaurida pela dízima periódica dos enfrentamentos pulverizados.

As determinações estruturais invadem a tela numa sequência quase documental.  

Na raiz da crise global está o excesso de capacidade produtiva desprovida de demanda em cada nação e no conjunto das nações, motivo das desvalorizações cambiais em marcha.

As cenas rápidas dizem com todas as letras o que a mídia local oculta ou rebaixa às notas de rodapé: esse é o legado de um desequilíbrio estrutural instaurado por quarenta anos de hegemonia neoliberal no mundo, obra que o conservadorismo quer replicar no Brasil.

‘A diluviana sobra de capitais decorrente desse ciclo de fastígio das finanças e depauperação do mundo do trabalho’  -- resume exemplarmente Zygmunt Bauman em fugaz aparição no filme imaginário de Gavras, inaugurou uma era em que ‘a política teve as mãos decepadas’.

A crise do Estado-nação, sua subordinação aos mercados, está na raiz do descrédito na política.

Que força poderá rejuvenesce-la?

Eis a pergunta que as câmeras imaginárias de Costa Gavras pontuam em cada close, em cada rua, em cada imagem da angústia no mundo.

É esse também o conjunto de bloqueios que cerceia o passo seguinte da história brasileira nesse momento.

Explicitá-los é um requisito para o discernimento necessário ao enfrentamento.

A preciosa fatia da soberania nacional que restou é a repactuação da sociedade e do seu desenvolvimento em escrutínios de amplitude democrática renovada.

A democracia, sim, ainda é a grande questão política do nosso tempo. É o que se depreende das imagens estonteantes das mobilizações de rua na Europa em coma, sobretudo nos movimentos dos Indignados espanhóis.

Sem recorrer a esse trunfo derradeiro a sociedade, a nação e o seu desenvolvimento ficarão escravos de receitas e ajustes que agravam a sua fragilidade e aprofundam o seu descrédito na política.

A isso se dedica o mutirão vertiginoso de decisões anunciadas pelo golpe.

Corte para o desmonte em curso do aparato público brasileiro: manchetes, protestos, anúncios solenes, ruas em chamas.

O rame-rame do ajuste neoliberal consiste nisso: em demolir o que foi conquistado para instituir o retrocesso como limite do possível.

E a exclusão como sinônimo de estabilidade.

Atrelar o país à lógica mundial do neoliberalismo – como apregoa o golpe– significa corroer 12 anos de esforços distributivos e sacrificar um dos maiores mercados de massa do planeta, para abraçar a receita rentista que está na raiz da polarização derivada da grande estagnação global.

Quatro décadas de neoliberalismo esfarelaram a classe média dos EUA e desmontaram o estado do Bem-Estar europeu.

A renda real da outrora afluente classe média norte-americana encontra-se estagnada no nível de 1977, tendo o PIB crescido 50% no período.

Nunca a desigualdade foi tão extremada como agora na sociedade mais rica da terra.

Para recorrer novamente a Bauman: a tese neoliberal de que a concentração em cima, vazaria a riqueza por gravidade para baixo, comprovou-se uma grande mentira.

O que sobreveio foi o apogeu da desigualdade.

Cenas documentais:

A fatia da renda nas mãos dos 20% mais ricos nos EUA hoje chega a 55%; declinando na base da pirâmide.

Não é menos regressivo o quadro europeu.

Pesquisas mostram que a diferença entre um rico e um pobre na sociedade europeia era de 1 para 12, em 1945.

Em 1980, passou a 1 para 82.

Após o desmonte das bases da democracia social, atinge a desconcertante vastidão de 1 para 530.

Não por acaso, a disputa presidencial nos EUA repõe em cores ainda mais vivas o confronto entre políticas fiscais para engordar os ricos ou investimentos públicos para resgatar os pobres.

Volta ao professor Luiz Gonzaga Belluzzo: ‘A polarização que se assiste nos EUA sintetiza o nosso tempo; se Sanders fosse o candidato democrata teria chances reais de derrotar Trump; o mesmo não acontece com Hillary, que nada tem a contrapor ao populismo direitista do republicano’.

‘Trump não é um fascista mas carrega nuances dos anos 30’, admite a The Economist diante do apelo popular que a xenofobia e o protecionismo bélico do republicano exercem nas massas desamparadas da outrora afluente sociedade do Norte.

Quem considera simplismo descrever assim a polaridade incrustrada pelo neoliberalismo na carne das nações, talvez mude de opinião diante das estatísticas divulgadas há dois anos pela consultoria Wealthx, de Cingapura (http://www.wealthx.com/home/).

Um analista da assessoria expõe o mapeamento feito em 2014, enquanto as câmeras passeiam no planeta por ele descrito:

– 185.759 endinheirados dos quatro continentes detêm uma fortuna calculada em US$ 25 trilhões, nada menos que 40% do PIB mundial;

– o seleto clube comporta acentuada divisão interna de camarotes: o nível A é ocupado por 1.235 megarricos que controlam uma dinheirama quase igual a dois PIBs brasileiros: US$ 4, 2 trilhões.

A distribuição da riqueza nunca foi o forte do capitalismo.

Mas as últimas décadas de supremacia das finanças desreguladas conseguiram dar envergadura inédita à palavra desigualdade.

Quarenta anos de arrocho sobre o rendimento do trabalho nas principais economias ricas, associados a mimos tributários que promoveram o fastígio dos endinheirados, premiaram o capital celibatário que se autorreplica na especulação, sem agregar riqueza real à sociedade.

O conjunto enlouqueceu a engrenagem da desigualdade, corroeu a fatia do trabalho na riqueza, tornando-se o principal obstáculo à recuperação da economia mundial.

Oito anos após o colapso de 2008, o dinheiro ocioso transborda dos caixas das empresas, bancos já cobram para guarda-lo, com juros perto de zero, mas o investimento produtivo patina.

Sem investimento a conta da sociedade do bem-estar e a da democracia social não fecha.

A alternativa conservadora é clara: arrocho e opressão.

É essa receita do golpe que derrubou a Presidenta Dilma Rousseff.

A democracia terá que intervir contra o despotismo do capital para deter uma lógica que não saciará enquanto não abater, eviscerar e desossar integralmente o espaço do desenvolvimento e da soberania popular no Brasil do século 21.

Reduzir essa conflagração de interesses a um “esgotamento do desenvolvimentismo”, ou, mais rastejante ainda, “aos erros da nova macroeconomia lulopopulista”, como quer o sociólogo FHC –em aparição gelatinosa no filme imaginário de Costa Gavras--  pouco agrega à agenda do desassombro requerida pela encruzilhada brasileira.

O país, insista-se à exaustão, está diante de provas cruciais.

É preciso dar à crise o seu nome: o enredo de Costa Gavras pega a esquerda pelos ombros e a sacode diante da incontornável realidade capturada pelo cinema.

O nome da crise é capitalismo.

Em seu estágio de supremacia financeira; é a desenfreada ferocidade com que os capitais fictícios exigem um mundo plano de fronteiras livres e desimpedidos , por onde possam transitar à caça de fatias reais de uma riqueza, para a qual não se dispõem a contribuir, apenas se apropriar em espirais de bolhas recorrentes.

Quem vê no capitalismo apenas  um sistema econômico, e não a dominação política intrínseca a sua encarnação social, derrapa, ajoelha e se rende incapaz de reagir porque perde a centralidade que a democracia ocupa nessa disputa.

Não a democracia liberal.

O cinema imaginário de Gavras fala da democracia contra o capitalismo, a democracia que civiliza, barra e impede o capital regressivo de devolver a  sociedade ao estágio de comer carne humana.

A dificuldade principal é refletir sobre o colapso fora da receita conservadora de arrocho e desemprego ante qualquer ameaça à remuneração do capital a juro.

A ditadura intelectual do pensamento único é pincelada em cores vibrantes pelo cinema político de Gavras.

Em 2011, em plena curva ascendente da crise, o Escritório de Avaliação Independente do FMI analisou 6.500 trabalhos escritos produzidos ou contratados nos últimos dez anos, portanto na chocadeira da crise mundial.

Praticamente todos afiançavam as boas condições do comboio capitalista que rumava em alta velocidade para se espatifar na desordem neoliberal.

Pior: 62% dos economistas do Fundo afirmaram que se sentiam pressionados a alinhar as conclusões de suas pesquisas econômicas ao pensamento dominante no órgão.

A indiferenciação entre direita e a esquerda no manejo da crise persiste como parte constitutiva da encruzilhada atual.

O filme imaginário desfila economistas de cepas variadas balbuciando platitudes à beira do abismo.

O que chamamos de crise hoje é também a fotografia de corpo inteiro da longa captura da esquerda e da democracia pelo cânone neoliberal.

A trinca aberta entre a base da sociedade e aqueles que deveriam vocalizar o conflito, mas, sobretudo, a negligência deliberada com a organização dessa base, redundou no paradoxo infernal dos dias que correm.

Vive-se uma crise sistêmica do capitalismo que não gerou forças de ruptura para supera-la.

O fosso é proporcional à virulência do que se busca despejar nos ombros da sociedade.

O déficit de democracia emerge, assim, como o mais importante desequilíbrio revelado pelo filme da crise.

A contrapartida é a dominância capilar, estrutural, midiática e institucional acumulada pelo capital financeiro.

Apenas um governo parece ter assumido a coerência equivalente ao desafio que ameaça a tudo vergastar.

Os letreiros do filme começam a descer vagarosamente sobre uma paisagem gelada de metafórico isolamento.

Ali, perdido no branco da neve, o presidente da Islândia, Ólafur Grímsson, explica a decisão de devolver ao poder plebiscitário da sociedade a escolha que levou o país a sacrificar bancos em defesa da população na bancarrota de 2009:

‘Somos uma democracia, não um sistema financeiro’.

A imagem de Ólafur Grímsson e sua frase resistem enquanto a câmera se afasta acentuando o isolamento dessa ousadia que pode, ainda, devolver aos cidadãos a responsabilidade pelas escolhas do seu destino e o destino do desenvolvimento em nosso tempo.



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