José de
Souza Martins*
A referência à
preocupante cifra de
11 milhões de desempregados no Brasil não explica o que é próprio
da situação
social de desempregoe do drama que é na vida de quem o padece.Ele
incide mais
sobre os jovens. Na região do ABC paulista, em 2015, 39,4% dos
desempregados
estavam na faixa de 16 a 24 anos de idade e 33,7% na de 25 a 39
anos de idade. Nas
famílias de trabalhadores, 25% dos desempregados eram os chefes da
casa e 50%
os filhos.
O desemprego torna os
jovens mais
dependentes da família num momento da vida em que mais carecem de
independência.Incide mais no setor de Serviços, aquele que tem
sido o de
confirmação da ascensão social da classe trabalhadora. Ascensão
que está sendo
anulada pelo desemprego. Além disso, os limites mínimos e máximos
de ganhos dos
ocupados e assalariados tem sofrido redução, de ano para ano,
fazendo cair os
ganhos tanto dos que ganham menos quanto dos que ganham mais. Um
desdobramento
do crescente desemprego: mais gente procurando trabalho e menos
trabalho
procurando gente.
Desemprego é
socialmente mais
complicado do que um número, um índice que sobe e desce. Seus
dados mais
ocultam do que revelam. Transformam o drama social em mero indício
de crise
econômica, a crise dos outros, dos que podem, não a crise de quem
precisa de
trabalho. Economizam palavras e verdades,
tornam
calculável o que calculável não é: a privação de condições de vida
para ter tranquilidade,
para ser feliz, para ir à balada; namorar, passear, ler um livro,
encontrar
amigos, viver a paz da família. O desemprego priva suas vítimas
até do que não
tem preço nem pode ser comprado, do que não depende do salário que
se paga a
quem trabalha. É nesse sentido que o desemprego é cruel e muito
maior do que um
índice negativo de problemas econômicos, omero dado estatístico.
Quem nunca ficou
desempregado não
sabe o que é o desemprego. Quem nunca peregrinou pelas portas das
fábricas para
espiar a tabuleta de “Precisa-se” da portaria, “para ver se estão
precisando de
gente”, que é a comum expressão proletária dos que buscam e não
acham trabalho,
não tem condições de avaliar o que é “ficar desempregado”. Quem
nunca passou
horas lendo as letras miúdas de anúncios de emprego em jornal,
como em famosa
fotografia de German Lorca, fotógrafo brasileiro, procurando o que
não está lá,
não sabe o que é procurar trabalho em vão.
Há poucos dias, saindo
de uma
consulta no Hospital Universitário, vi duas mocinhas tímidas,
relutantes, encostadas
à cerca do jardim da frente, sem saber o que fazer. Fui até elas e
lhes
perguntei se estavam procurando emprego. Balançaram a cabeça
afirmativamente,
olhando para o chão. Explicaram-me que moram no bairro do Jaraguá.
Souberam que
uma empresa terceirizada contratada para os serviços de limpeza do
Hospital estava
recrutando empregados. Não sabiam com quem falar. Sugeri-lhes que
falassem com
o porteiro de uma porta ao lado, funcionário da terceirizada. Ele
lhes
indicaria o caminho. Vinham de longe. Sair de casa com o dinheiro
contado,
muitas vezes ficar sem comer o dia inteiro, para a peregrinação
infrutífera, as
humilhações descabidas, o desalento que abate, a depressão que não
é rara.
Essa busca é um
calvário. Lembro
nessas horas de um poema do poeta alagoano Judas Isgorogota,
radicado em São
Paulo, na época das grandes migrações de nordestinos, dos anos
1950, que vinham
para o Sudeste de pau-de-arara, arrastando a família, em busca de
emprego,
expulsos da terra pela seca: “Vocês não queiram mal aos que vêm de
longe,aos
que vêm sem rumo certo, como eu vim;as tempestades é que nos
atiram para as
praias sem fim...”
Quem quiser entender o
que é esse
naufrágio, o que é o desemprego, deve vasculhar as estatísticas
para descobrir
os rostos que se escondem envergonhados por trás delas. E, não
raro, as
lágrimas. Somos uma sociedade em que a modernidade se constituiu à
custa do
suor de migrantes e de imigrantes mal pagos, adultos e crianças,
homens e
mulheres, que valorizavam e valorizam o trabalho como fundamento
da decência e
da vida, em que não ter trabalho envergonha e demorar a
encontrá-lo envergonha
mais ainda. Desemprego estigmatiza, aniquila a esperança com o
passar das horas
e o passar dos dias sem fim da busca e das portas fechadas.
Não é o trabalhador
que inventa a
crise, que fecha fábricas e lojas. Satanás tece em silêncio até em
recintos
remotos, com as agulhas de ouro da especulação e da
irresponsabilidade, às
escondidas, a trama que enreda as vítimas da falta de trabalho. Os
que tem
poder e não compreendem que o mando político é missão social e não
privilégio,
é dever para com todos e não só com alguns, é mandato e não mando,
os que
administram mal a economia e alimentam ou agravam as crises
econômicas, que distribuem
dividendos negativos e embolsam os positivos.
É justo que se queira
emprego e
também justiça porque é moralmente delito destruir a possibilidade
do trabalho
dos que só tem como alternativa a faina em terra alheia, em tear
alheio, em máquina
alheia, em casa alheia, para ter à mesa o pão nosso de cada dia.
*José de Souza
Martins é
sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros
livros, autor de A
Sociabilidade do Homem Simples
(Contexto)
e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34).
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