terça-feira, 31 de maio de 2016

O paradoxo da Justiça em um governo Ilegal

Tatiana Carlotti, na Carta Maior

postado em: 31/05/2016
O novo ministro da Justiça, o advogado e jurista Alexandre de Moraes, terá de enfrentar um paradoxo: como representar a Justiça em um governo que só existe por causa da quebra da ordem constitucional do país?

Livre-docente da Universidade de Direito, do Largo São Francisco, uma das mais respeitadas do país, Moraes está entre os doutrinadores mais citados pelo STF, no que diz respeito ao controle de constitucionalidade, entre os anos de 1988 e 2012 (CJ, 06.07.2013).

Na prática, porém, no exercício de suas funções no comando da Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP) de Geraldo Alckmin, entre 2015 e 2016, foi notória a truculência contra os movimentos sociais e os abusos cometidos por policiais durante sua gestão no estado paulista. Fato que vem sendo matéria de análise, desde que ele assumiu a pasta da Justiça no começo do mês (leia a reportagem anterior: “Golpistas no Planalto: A nacionalização da truculência paulista”).

Há reportagens, inclusive, sobre suas atividades na advocacia. No site do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ), alertou O Estadão, o ministro ainda constava como advogado de várias ações que tramitavam na área cível. Havia um total de 102 ações representadas pelo escritório Alexandre de Moraes Advogados Associados. O ministro garantiu ter suspendido as atividades e ter se licenciado do escritório (OESP, 12.05.2016).

O mote da reportagem de O Estadão é uma repetição de outra matéria, publicada pelo mesmo jornal em 2015. Nesta, além de apontar que o então secretário constava como advogado em várias ações judiciais, o jornal citava o nome de um de seus clientes: a cooperativa Transcooper, suspeita de ter ligações com o Primeiro Comando da Capital, o PCC (OESP, 09.01.2015).

Na época, em nota divulgada pela SSP-SP, Moraes dizia que “não houve qualquer prestação de serviços advocatícios – nem pelo secretário nem pelos demais sócios – às pessoas citadas em possível envolvimento com o crime organizado, em 2014. O contrato se referia estritamente à pessoa jurídica da cooperativa” (OESP, 09.01.2015).

Sobre o episódio, em entrevista à Carta Capital, o jurista Marcelo Neves foi categórico: “o Ministério da Justiça não é indicado para um advogado que defendeu cooperativas suspeitas de realizarem lavagem de dinheiro para o PCC”.

Neves também se manifestou sobre o fato de Moraes ter advogado para o deputado Eduardo Cunha, em 2013. Cunha, defensor da nomeação de Moraes, era acusado de ter usado documento falso para suspender um processo contra ele, no Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (FSP, 21.04.2016).

Segundo Neves, “não é adequado que o advogado de uma pessoa que está envolvida em vários escândalos de corrupção e que está fora do exercício por decisão do Supremo seja o ministro da Justiça”, afirma Neves (CC, 18.05.2016).

“Governo de São Paulo é honesto”

Em entrevista recente à Folha, Moraes salientou as diferenças entre a corrupção dos governos tucanos e petistas. “A única diferença em relação ao governo federal, é que o governo de SP é honesto. E um governo honesto é menos investigado porque não tem escândalos”, afirmou (FSP, 16.05.2016). É difícil acreditar que o ministro desconheça as várias CPIs barradas pelos governistas na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (leia também “Operação Abafa”: como o tucanato se mantém no poder em SP).

Um desses “desvios”, Moraes acompanhou de perto quando advogou para o deputado Rodrigo Garcia (PSDB), atual secretário de Habitação e, na época, secretário de Desenvolvimento. Acusado de recebimento de propina no escândalo do Trensalão, enquanto estava à frente da Comissão de Transportes da ALESP, Garcia foi um dos nomes delatados pelo o ex-diretor da Siemens, Everton Rheinheimer (FSP, 07.02.2014).

Na época, Moraes apontava que a denúncia contra seu cliente não passava de uma delação: "O único indício existente até agora é a delação. O inquérito será arquivado porque as testemunhas não vão confirmar nada". Dizia, também, que pediria a acareação com o delator e urgência na tramitação do inquérito. Naquele ano, Garcia seria candidato a deputado federal. (FSP, 26.11.2014 e 7.06.2014).

O processo, aliás, foi arquivado em fevereiro de 2015 (VALOR, 10.02.2015) a partir do voto decisivo do ministro Luiz Fux (STF). Vitorioso nas eleições, Garcia é hoje deputado federal licenciado e assumiu, em 2015, a Secretaria de Habitação de São Paulo do Governo Alckmin (G1, 19.03.2015).

Foi no gabinete de Garcia, aliás, que o ex-prefeito Gilberto Kassab afirmou a Moraes que “acabaria com ele” um dia. O episódio foi registrado pela jornalista Renata Lo Prete em sua coluna naquele ano. (FSP, 17.06.2011). Na época, Moraes era presidente estadual do DEM (antigo PFL) em São Paulo. Em dezembro de 2015, ele se filiou ao PSDB (FSP, 16.12.2015).

O supersecretário de Kassab

Em 2005, ao sair da secretaria de Justiça de São Paulo, onde presidiu a Fundação Casa (antiga Febem), Moraes foi alçado pela oposição para compor o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o que representou, na época, uma derrota para o então Governo Lula. Na votação do Senado, porém, sofreu um revés: seu nome foi recusado pela maioria dos senadores.

Foi salvo por dois requerimentos apresentados pelos senadores, na época, Romeu Tuma (PFL-SP) e Álvaro Dias (PSDB), que permitiram uma segunda votação e sua aprovação para o CNJ (Agência Senado, 24.05.2005). Saiu do CNJ em 2007, voltando à gestão pública, agora, na condição de supersecretário do então prefeito Gilberto Kassab, acumulando as secretarias de Transportes e a de Serviços, além da CET, SPTrans e do Serviço Funerário.

Na época, o nome de Moraes aparecia como forte candidato a sucessor de Kassab. A parceria, porém, foi interrompida em 2010. Reportagem do Estadão, publicada naquele ano, destacava os alguns pontos da gestão de Moraes nessas secretarias, dentre eles, a construção de apenas um corredor de ônibus, entre os cinco prometidos; e o corte nos contratos de varrição causando acúmulo de lixo nas ruas, o que agravaria as consequências das chuvas naquele ano. (OESP, 08.06.2010).

Segundo a imprensa, a ruptura foi tempestuosa. Em junho de 2011, Moraes esteve à frente das contestações judiciais que visavam o impedimento do recém-criado PSD (de Kassab) disputas as eleições de 2012 (FSP, 05.08.2011). Daí o episódio registrado pela jornalista Renata Lo Prete, segundo a qual, o ex-prefeito teria se indignado e dito ao antigo supersecretário e ao deputado Garcia: “vocês querem acabar comigo, mas sou eu que vou acabar com vocês” (FSP, 17.06.2011).

Hoje, ambos são “colegas” de Ministério Temer.

Em campanha pelo golpe

O episódio que ilustra a veia política do atual ministro da Justiça não é o único. Durante sua gestão à frente da SSP-SP do governo Alckmin ele expressou várias vezes os “dois pesos, duas medidas” durante as manifestações pró e contra o impeachment. Recentemente, utilizando o jargão da ditadura militar, chegou a criminalizar os protestos contra o golpe que tomaram as ruas em todo o país:

“Eu não diria que foram manifestações. Foram atos que não configuram uma manifestação porque não tinham nada a pleitear. Tinham, sim, a atrapalhar a cidade. Eles agiram como atos de guerrilha”. E mais: “eu tenho absoluta certeza que é fogo de palha isso, até porque o pequeno número de manifestantes demonstra isso, e , se eles se tornarem violentos, serão tradados como criminosos, não como manifestantes” (FSP, 10.05.2016)

Em abril de 20015, Moraes chegou a solicitar à Federação Paulista de Futebol que antecipasse o jogo entre Corinthians e Ponte Preta, pelo Campeonato Paulista, para às 11h, por conta da manifestação (FSP, 08.04.2015). Neste ano, inovou. Em 13 de março, anunciou sua expectativa para o ato pró-golpe, prevendo 1 milhão de pessoas nas ruas.

Até mesmo o Estadão registrou o episódio como “a primeira vez que a Secretaria de Segurança Pública falou em expectativa de público antes de uma manifestação” (OESP, 12.03.2016). Dias depois, o jornal destacava: “Governo de SP dá tratamento diferenciado para ato contra impeachment e não faz estimativa de público” (OESP, 17.03.2016).

A repentina postura democrática do Estadão se explica. Naquela semana, o juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, divulgava a conversa telefônica do ex-presidente Lula e da presidenta Dilma. O país se mobilizava contra o golpe, após a condução coercitiva do ex-presidente à sede da PF em Congonhas, promovendo uma série de atos e protestos em defesa da legalidade democrática.

Foi também, a semana em que PM apareceu em uma plenária de apoio ao ex-presidente Lula, na subsede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em Diadema. Moraes justificou a ida dos policiais por conta de uma informação de que no local haveria uma manifestação. Sobre os alertas e as acusações que resultaram do episódio, foi categórico: “se também ficar comprovado que esses fatos são mentirosos [acusações], isso é denunciação caluniosa”, ameaçou. (OESP, 14.03.2016).

Várias imagens do comportamento “diferenciado” da PM durante as manifestações pró e contra o governo Dilma circularam nas redes sociais, de continência da PM aos manifestantes pró-impeachment (OGLOBO), passando por manifestações de policiais nas redes sociais e até mesmo uma paciência extrema antes de reagir a um desacato (confira o vídeo).

Em entrevista ao El País, Ignácio Cano, especialista em segurança pública, salientava que "em São Paulo, o Governo estadual tem claramente uma disposição favorável a esses manifestantes [pró-impeachment]", o que levaria os policiais a agirem de acordo com essa posição. (El País, 28.03.2016)

No Governo Alckmin, Moraes cumpriu à risca sua missão. Dias antes de sair do governo, copiando o formato das ações midiáticas de Curitiba, ele deu início à operação Cartão Vermelho, da Polícia Civil, realizando 69 mandatos: 32 de busca e 37 de prisão (dez temporárias e 27 preventivas) em sete cidades de São Paulo e de Uberaba. No centro das investigações: a violenta briga das torcidas do Corinthians e do Palmeiras no começo do mês.

Sob o lema “ou as organizadas escolhem o lado da lei, ou vão acabar” (FSP, 15.04.2016), Moraes conseguiu destaque, acompanhando, pessoalmente, os policiais durante a operação. Reportagem da Folha denunciava que se tratava de uma ação com cunho político (FSP, 16.04.2016).

A presença da torcida corinthiana nos atos contra o golpe não passaria incólume, como destacou o advogado da Gaviões da Fiel, Davi Gebara: “eu trabalho há décadas e sei de uma coisa. Não existe coincidência. Não existe. É claro que se trata de uma ação política” (FSP 15.04.2016).

Dias depois da operação, mais um ato de Moraes. Em meio aos comentários sobre sua escolha para a pasta da Justiça, ele publicou uma nota afirmando não ter sido sondado, reiterando seu compromisso em permanecer na SSP, “enquanto puder ser útil ao povo de São Paulo” (OESP, 20.04.2016). A autopromoção deu certo, dias depois, o ministro seria empossado.

Pelo visto, as ambições de Moraes não param por aí. Em março de 2012, a jornalista Vera Magalhães destacava: “em sua posse na Academia Paulista de Letras Jurídicas, na semana passada, o advogado Alexandre de Moraes anunciou que pretende disputar vaga no STF. Dirigente do DEM, ele falou, de cor, datas de aposentadoria de sete ministros que deixam a Corte até 2018” (FSP, 11.03.2012).

O atual ministro da Justiça conta com uma credencial ao cargo: a capacidade de fingir legalidade onde há golpe, apesar de todo o seu conhecimento jurídico.










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