sexta-feira, 8 de abril de 2016

Guia da repactuação: resgatar o espírito de 2002 em 2016



A repactuação que interessa faz da Constituição de 1988 um escudo da legalidade e a ponte retransmissora do espírito de 2002 para o futuro brasileiro.

por: Saul Leblon na Carta Capital
Fernando Frazão / Agência Brasil
Muitos dos que até há bem pouco tempo viviam um exílio de desinteresse político, hoje consultam a agenda das manifestações contra o golpe para incluí-las entre as prioridades da sua semana.

Inclua-se aí a megaconcentração prevista para o próximo sábado, dia 9, possivelmente com Lula já ministro chefe da Casa Civil de Dilma.


Estamos falando da ressurgência pública de democratas e progressistas; de cidadãos e cidadãs dotados de discernimento político, mas desvinculados de estruturas militantes; estamos falando de um pedaço da classe média que desmentiu a unanimidade vendida pelo Jornal Nacional e assemelhados. E o fez em espécie, na rua, oferecendo-se ao Datafolha para afrontar o monólogo conservador.



Isso não é pouco.


Na verdade, significa muito, ao revelar uma singular determinação de resistência no interior da sociedade  –sobretudo daquele segmento que parecia definitivamente prostrado e perdido para a vida política.


Ainda que crítica ao governo e ao PT, ao se reconciliar com a rua – onde já estavam os movimentos sociais e os sindicatos de trabalhadores-- a classe média democrática consolidou uma espécie de piso na luta política: a defesa da legalidade.


Qualquer degrau abaixo desse ela considera inaceitável, descabido e não pretende admitir.


‘Não vai ter golpe’ é o bordão que define essa linha vermelha da consciência democrática, viral a ponto de ter roubado o espaço do ‘fora Dilma’, nas últimas semanas.


Mais que isso.


A ponto de devolver à equação política brasileira  um elo de esperança em algo ainda maior.


Qual?


Uma frente ampla e ecumênica, que tenha a legalidade como norte, a pactuação do desenvolvimento como ferramenta e a democracia social como meta para superar essa que é uma das mais desafiadoras encruzilhadas do desenvolvimento do país.


Um ciclo se esgotou; a definição do próximo carece de um projeto hegemônico que o conduza.


O mergulho no abismo conservador não é um risco afastado. Mas ostenta hoje uma probabilidade inferior à de ontem e, ao que tudo indica, superior a de amanhã.


Ou não será isso que diz o grito histérico da ‘Folha de SP’ na primeira página deste domingo, onde estampou um editorial para admitir que o impeachment micou?


O golpismo ainda alardeia um consenso devastador na demolição da alternativa progressista. Mas a mudança no estado de espírito da classe média democrática altera rapidamente o perfil das ruas, praças, segmentos sociais etc


Há vetores por toda a parte. Não apenas em eventos no Palácio do Planalto, a causar estupefação à direita e a seus porta-vozes.


Na última sexta-feira, em São Paulo, por exemplo, o cantor Criolo desfraldou uma faixa no palco no meio do seu show. A mensagem  foi rapidamente endossada pela plateia que entoou em coro: ‘Não vai ter golpe; não vai ter golpe...’


Ninguém noticiou. Mas aconteceu.


Repetiu-se na mesma sexta-feira, em Brasília, no show da cantora Tulipa Ruiz, que abriu o microfone para a plateia engajada no mesmo verso.

Ocorreu algo semelhante no show de Caetano para 150 mil pessoas, no sábado, no Farol da Barra, em comemoração dos 467 anos de Salvador. Ao som do estribilho ‘Odeio’, o público respondia, ‘Cunha’. Ao final, parte da plateia puxou o grito "não vai ter golpe’. E Caetano sorrindo respondeu: ‘Não vai’.


Repita-se: é viral.


Assim também como o foi, guardadas as proporções, em 1964.


Enquanto o golpe permitiu certa liberdade, as mais expressivas figuras da classe artística e intelectual ergueram uma barragem de resistência democrática, que desembocou em enfrentamentos direto de rua, em 1968.


O passo seguinte foi a repressão violenta, a censura, a extinção dos partidos, a supressão das liberdades políticas e o fim das garantias individuais.


O golpismo parlamentar atual, dirigido por um condomínio da vigarice, com reacionários e endinheirados, terá que percorrer a mesma viagem ao inferno se quiser calar aquilo que já é incontrolável.


Embora o editorial da Folha de domingo conceda a existência de uma ‘minoria expressiva’ que atrapalha o impeachment (seja lá o que significa esse oxímoro político), o fato é que a coisa avança em espirais, tornando descabida a lógica do jornal, que passa a pedir a renúncia de quem já não acredita que se possa apear do poder.


Fosse mais jornalístico o veículo dos Frias admitiria o broto novo que viceja na aridez política do país.


A classe média democrática, que se imaginava aposentada para a rua, troca olhares cúmplices, sorrisos camaradas, lembranças afetivas no reencontro entre personagens que se conheceram e se perderam em algum ponto da linha do tempo, na luta por liberdade e justiça no país nas últimas décadas.


A traumática experiência de governar um capitalismo ainda sem condições de modifica-lo integralmente, iria acomete-la de um misto de prostração, cansaço e descrédito nos anos recentes.


Por todas as razões, erros, concessões e cercos sabidos  -- regularmente discutidos em Carta Maior-- isso se traduziu, primeiro, no afastamento da intelectualidade progressista em relação ao governo e ao PT. No campo despovoado de sentido e identidade progressista deu-se a fuga da classe média democrática.


Especialmente sensível à fiança de credibilidade que a arte e a inteligência exercem na sua relação com a política, é esse protagonista que refaz agora o caminho de volta, ajudando a lotar praças, desenrolando bandeiras, desenferrujando jingles, flertando com a esperança ao abraçar a defesa da legalidade.


Que projeto crível de futuro será capaz de entusiasma-lo a ir além?


Não qualquer ‘além’.


Mas aquele capaz  de unir  seu peso ideológico à força política de dezenas de milhões de outros personagens representados pelos movimentos sociais, os sindicatos e as centrais de trabalhadores do campo e da cidade.


Esse é o desafio de uma verdadeira repactuação, que não se confunde com a operação emergencial de juntar o rescaldo da governabilidade implodida para apagar o incêndio do golpe legislativo.


Sem o principal, o emergencial rapidamente será consumido na brasa dormida das conspirações.


Evitá-lo implica um inusitado  desassombro para agarrar a régua do tempo e restabelecer as pontes entre o espírito de 2002 --quando a esperança venceu o medo em gigantescas mobilizações eleitorais--  e a reinvenção do passo seguinte do país em 2016.


Não se negue as adversidades históricas superlativas que distinguem os dois momentos.


Aquele, favorecido pela ampla janela de oportunidade do início de um ciclo de alta das commodities no mercado mundial, agora em parafuso descendente. Sem esquecer o noviço entusiasmo com um projeto que até então não vivenciara, ainda, as fraquezas, tropeços e rendições no moedor de ossos e sonhos que é governar o capitalismo brasileiro com minoria no Congresso.


É desse mirante de adversidades, mas também de sangrento amadurecimento, que avulta a importância do ressurgimento do ‘espírito de 2002’ nas ruas de 2016.


A expressão  é emprestada de um documentário de Ken Loach, de 2013 (‘O Espírito de 45’), em que o cineasta britânico traça o painel da construção e do desmonte do Estado do Bem Estar Social na Inglaterra, desde a sua arrancada épica e esperançosa no pós guerra, à destruição promovida pelo neoliberalismo de Margareth Thatcher (leia a crítica de Léa Maria Aarão Reis em Carta Maior http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/O-Espirito-de-1945-hoje/39/29009).


Na montanha desordenada de ruínas que restou, Loach condensa o foco em uma idosa que vivenciou as duas pontas da história.


‘Não há mais nenhum país para os pobres’, desabafa essa heroína às avessas. ‘Estaremos acabados se o governo conseguir terminar com o Serviço Nacional de Saúde’, lamenta diante da última trava na porta despedaçada dessa que foi uma das  fortalezas da civilização.


Indagado por que fez esse filme, Loach adicionou subversão à geologia histórica: ‘Porque a sociedade hoje não funciona; é o caos. E para que as pessoas pensem no que pode ser feito, outra vez, na promoção do bem-estar social. Meu filme é para lembrar o que já conseguimos’.


O ‘45’ brasileiro foi em 1988, quando conseguimos estampar direitos sociais universais numa Constituição paradoxalmente  escrita na contramão do Zeitgeist da época.


A Carta Cidadã afrontaria a ascensão das reformas neoliberais em marcha, desde a Inglaterra de Thatcher (e antes ainda, do Chile, de Pinochet, em 1973), oferecendo-se aos ‘refugiados’ do país como um bote para remar seu anseio por pátria e cidadania.


Com as virtudes e defeitos sabidos ( a hesitação com a reforma agrária entre elas), a Constituição promulgada em cinco de outubro de 1988 esticou o pontão dos direitos sociais ao ponto mais avançado permitido pela correlação de forças que derrubou a ditadura.

Conduziu-a um impulso gigantesco de ondas sobrepostas. Da resistência heroica à ditadura, aos levantes operários surpreendentes registrados no ABC paulista nos anos 70/80; às ruas tomadas pela avassaladora campanha das ‘Diretas Já!’, impondo o fim da opressão militar ao país.

Trincou ali o mar glacial da desigualdade que a censura e a tortura protegiam.

O degelo esticaria a fronteira da democracia com a repactuação da sociedade a cargo da Constituinte de fevereiro de 1987.

‘Não é a Constituição perfeita, mas será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados’, profetizou então Ulysses Guimarães, na promulgação da carta, dezenove meses depois.

A lamparina dos desgraçados teve no ciclo de governos do PT seu reconhecimento como bússola da democracia e guia do desenvolvimento.


Avanços podem ser contabilizados no cumprimento de políticas sociais, na aplicação de direitos trabalhistas, no acesso ao crédito, à escola, à moradia, no direito à segurança alimentar, na recomposição do poder aquisitivo do salário mínimo, na soberania nacional, na defesa das riquezas nacionais –tudo como previsto no espírito da Carta Cidadã.

Os que viviam na soleira da porta, do lado de fora do país, atravessaram a fronteira do mercado e bateram na porta da cidadania.

Hoje formam 53% da população e 46% da renda nacional.

O conjunto de certa forma soldou em um só destino a sorte da Carta, a do partido que dela divergiu em 1988, mas se tornou seu mais fiel escudeiro, e a das gentes que ela dignificou na lei.

Um dos elos mais importantes desse entrelaçamento foi o ganho real de  70% no poder de compra do salário mínimo desde 2002, com extensão plena aos aposentados do campo e aos beneficiados por idade e invalidez.

Estamos falando de um contingente de 18 milhões de brasileiros. Multiplique-se isso por quatro dependentes: temos aí um universo de 70 milhões de pessoas.

Não é preciso validar integralmente o ciclo de governos iniciado em 2003 para admitir que a obediência ao espírito de 1988 sacudiu placas tectônicas do apartheid brasileiro.

Acrescente-se ao degelo, o alcance de outras políticas pertinentes à promoção da segurança alimentar, caso do Bolsa Família, por exemplo.

O bote inflável passa a abarcar um contingente adicional de doze milhões de famílias –  mais de 48 milhões de pessoas que viviam exiladas em seu próprio país.

No meio do caminho eclodiu uma crise mundial.


A mediação dos conflitos do desenvolvimento perdeu o amortecedor do bolo em expansão.


À ‘fase alegre dos consensos’ sucedeu-se a espiral de acirramento da luta de classes, até atingir o capítulo atual de guerra aberta das elites, aquarteladas para o golpe ‘saneador’.


O tripé formado pela ‘lamparina dos desgraçados’, por eles próprios e pelo PT tornou-se intolerável aos olhos do dinheiro grosso.


Deriva daí o ódio de classe hoje justificado pelos ‘desmandos do lulopetismo’, que transborda para as ruas na caça aos vermelhos, até alcançar sua síntese explosiva no caso da médica que recusou atendimento a uma criança cuja mãe é vinculada ao ‘inimigo’: o PT de Lula.

Aquilo que latejou em banho maria dentro das caçarolas francesas no período de alta do ciclo econômico, borbulha agora na violência clássica que ‘as classes produtivas’ dispensam aos que dependem dos fundos fiscais e das políticas públicas para almejar a dignidade pactuada na Carta de 1988.


Dissimulado em responsabilidade orçamentária e cruzada ética, está em curso uma guerra social dos muito ricos contra os muito pobres e os trabalhadores remediados.


A Constituição de 1988 não cabe no equilíbrio fiscal, os pobres não cabem na sociedade, o mandato de Dilma não cabe numa almejada restauração neoliberal, o PT não cabe na paz social que o livre capitalismo requer.


Não é só o impeachment, portanto.


O que está em marcha é um acerto de contas histórico, uma espécie de conjura do filé mignon (que a literalidade da Fiesp serviu às barricadas do golpe, na Paulista), cujo cardápio é a rejeição esférica da elite à vasta maioria de brasileiros que reivindica fazer parte da nação.


Esse é o espírito do golpe de 2016.


A tarefa da repactuação progressista, portanto, consiste em agarrar a Constituição Cidadã com as duas mãos, transformando-a de estorvo dos endinheirados, em ponte retransmissora do espírito de 1988 e 2002 para o futuro brasileiro.


A exemplo da resistência ao impeachment, trata-se de unir o país em uma frente pela legalidade constitucional, opondo a ‘lamparina dos desgraçados’ à conjura do filé mignon.


Há requisitos organizativos para que isso tenha sucesso.


Promove-los, ao lado de frear a recessão e o desemprego, é a razão de se lutar pela integralidade do mandato da Presidenta Dilma Rousseff.

A ninguém ocorre fazer das milhões de famílias, trabalhadores e jovens beneficiados pelas muitas políticas e programas sociais e setoriais do governo, uma correia de transmissão de conveniências políticas e ideológicas.

Mas a construção do Estado social brasileiro prevista na Carta de 1988, e a do desenvolvimento que ele requer, não avançará se menosprezar a organização dos interesses catalisados pelas políticas populares dos últimos dez anos.


Esse foi –ao lado da omissão na regulação da mídia, o pecado capital do ciclo de  governos do PT.


A despolitização da agenda do desenvolvimento explica boa parte da encruzilhada atual do país.


Uma mistura equivocada de economicismo e busca de indulgência junto aos detentores da riqueza cimentou o pragmatismo cego que creditou às gôndolas dos supermercados a tarefa de promover a consciência  popular na defesa das conquistas acumulados desde 2003.


O PT e uma parte de seus dirigentes – mas também círculos de seu entorno aliado- deixaram-se hipnotizar pela miragem do boom de commodities, como se capitalismo fosse o consenso e não a tensão na história.


Durante um período longo demais, muitos dentro do governo e do partido acharam que essa era uma ‘não-questão’.


Que tudo se resolveria com avanços incrementais no consumo, que se propagariam das geladeiras abastecidas para a correlação de forças da sociedade, em uma espiral ascendente e virtuosa.


O absenteísmo em relação às bases, às ruas e à luta ideológica; a inexistência de canais de comunicação próprios com a sociedade, tudo parecia tangencial diante do persuasivo poder de compra do tíquete médio, numa gincana em que todos ganhariam.


Ganharam, de fato. Mas era um ciclo, não o ’novo normal do capitalismo’


A eclosão da desordem neoliberal em 2008 sacudiu esse interregno de conforto expondo com virulência o reduzido grau de tolerância conservadora à construção da democracia social prevista na Carta de 1988.


Daí para o enfrentamento bruto entre arrocho ou tributação da riqueza dos endinheirados, foi um pulo que levou ao olho do furacão em que nos encontramos.

Uma primeira pista para sair dele é não atribuir à economia aquilo que compete à correlação de forças decidir.


Em outras palavras, a repactuação de um novo ciclo de investimento com distribuição da riqueza é indissociável do avanço da democracia participativa no país.


Uma Conferência Nacional das mães do Bolsa Família, por exemplo, que fazem do Brasil a referência mundial na luta contra a fome e a miséria, por certo adicionaria nervos e musculatura nessa equação.

Conferências nacionais dos bolsistas do Fies e do Prouni; bem como conferencias extraordinárias da reforma agrária, da saúde, da educação, da cultura, do petróleo, da comunicação etc deveriam fazer parte da ferramentaria democrática nesta hora decisiva da repactuação nacional.


Ou será que apenas a família Frias tem direito de expor na primeira página o que advoga como futuro para a sociedade e o desenvolvimento?


Se a ideia for apenas respirar, basta de fato contrapor ao dikitat  midiático a redivisão do butim com partidos nanicos da base esfacelada no Congresso.
'Mas se o objetivo for mais amplo do que apenas respirar por aparelhos, então a resistência à lógica regressiva dos ‘gastadores de gente’, como dizia o saudoso Darcy Ribeiro, terá que ir além.
Ir além significa fazer do espírito de 1988 e 2002 o guia para o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.


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