sábado, 23 de abril de 2016

Denúncia na ONU apavora golpistas. Por quê?

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Foto: Mary Altaffer / AP

por Bajonas Teixeira de Brito Junior

A democracia brasileira, através do movimento Não Vai Ter Golpe, obteve nos últimos dias uma extraordinária vitória na opinião pública mundial. Após a votação do dia 17, cristalizou-se uma nova situação que, em resumo, é a seguinte:
1) os golpistas sofrem hoje a execração planetária; 2) todas as simpatias da comunidade política internacional afluem para os defensores da democracia no Brasil.
Nunca a imprensa conversadora, que representa as maiores e mais sólidas forças da opinião pública mundial (The New York Times, The Guardian, The Economist,  The Glob and Mail, Der Spiegel, Süddeutsche Zeitung, Le Monde, Libération, CNN, BBC, El País), se pronunciou numa uníssono tão compacto para condenar um golpe. Entender isso é fundamental para avaliar os ganhos obtidos.
Ao repassar a situação da opinião pública internacional, fica claro por que a Globo acaba de orquestrar ministros do STF (Dias Toffoli, Celso de Mello e Gilmar Mendes), mais a maleável Marina Silva, para engrossarem o discurso do senador Aloysio Nunes, do PSDB, que classificou a reação de Dilma ao golpe como “profundamente nociva aos interesses do povo brasileiro”. Vale a pena conferir quem de fato está envergonhando o Brasil no exterior. Vejamos.
Em uma votação que durou 9 horas e 47 minutos, os golpistas exibiram-se desinibidos diante das câmeras. O trauma causado à opinião pública mundial por essa visão foi profundo e será duradouro, muitos não a esquecerão até seus últimos dias. Basta ver o comentário do correspondente português Miguel Sousa Tavares, que acompanha o Brasil desde o início dos anos 80:
Devo dizer que nunca vi o Brasil descer tão baixo. O que ontem se passou no congresso brasileiro ultrapassa tudo que é descritível. Não existe. Foi uma assembleia geral de bandidos, comandada por um bandido chamado Eduardo Cunha. Fazendo a destituição de uma presidente sem qualquer base jurídica nem constitucional para tal, mas sobretudo com uma falta de dignidade que o atinge que é de arrepiar.
Essa denuncia do golpe pela TV portuguesa, é um retrato límpido do esplêndido isolamento, ou melhor, do isolamento abissal em que se encontram os promotores do golpe hoje. O comentador português não manifesta mera repulsa, mas algo bem mais incisivo, asco. Foi uma onda de asco que varreu as plateias mundo a fora durante o show protagonizado pelos defensores do impeachment. E mais que outros, por ser o supra-sumo de todos eles, o abjeto Jair Bolsonaro.
Mas aqui, nem a Globo nem o PSDB, nem o STF, viram qualquer coisa “profundamente nociva aos interesses do povo brasileiro”.
A coleira do cão no pescoço dos golpistas é o resultado do dia 04 de março, quando a condução coercitiva de Lula teve como efeito um imenso sentimento de revolta. De lá até o dia 17 de abril, a imprensa anti-golpe no Facebook, nos sites e blogs, os coletivos, os milhares de manifestos e notas, as inúmeras manifestações de rua, atos, assembleias, mostraram que a face moderna do país abominava o golpe e seus promotores (“O povo não é bobo, abaixo a rede Globo”). Mas também do apoio de renomados intelectuais como Noam Chomsky e Boaventura de Sousa Santos, ainda no mês de março.
Este estado de insurgência interna, alertou a imprensa internacional. E esta foi a grande vitória do “Não vai ter golpe!”, que ainda não conseguimos bem dimensionar. A primeira reação de peso, sob o efeito das grandes manifestações do dia 18, veio da conservadora revista Der Spiegel, a maior da Alemanha. No dia 19, apenas um dia após os grandes protestos, a revista faz a matéria Crise de Estado no Brasil: Golpe Frio (Staatskrise in Brasilien: Kalter Putsch). O argumento central do artigo foi de que, no Brasil, a democracia estava em risco e a foto escolhida não deixou dúvidas a respeito do partido que a publicação tomou:
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A consequência disso, foi um novo chute levado pela cambada do golpe. Na tentativa de reagir ao Der Spiegel, ou à nuvem de repulsa que ele sinalizava, Gilmar Mendes levou a Lisboa sumidades acadêmicas do quilate de Aécio Neves e José Serra para um “seminário” dedicado ao tema A constituição no contexto da crise política e econômica. Um dos renomados pesquisadores convidados era ninguém menos que o conspirador Michel Temer.
As autoridades portuguesas, contudo, percebendo o jogo tosco dessa delegação de alto nível, que pretendia usá-los para a legitimação europeia do golpe, debandaram em massa de um evento para o qual já tinham confirmado presença. Foi por isso que Temer, inventado uma mentira deslavada, não foi a Portugal. Nos dias que se seguiram ao lúgubre acontecimento, Gilmar Mendes travou a língua.
O ex-eurodeputado português Rui Tavares avaliou assim as intenções do seminário: "Parece uma tentativa de justificar a questão teórica de um golpe judiciário. Nas entrelinhas dá para ver uma tentativa de dar um verniz teórico e acadêmico àquilo que muito dos que participam [Gilmar, Serra, Aécio e Temer] seriam os principais beneficiários". Enfim, a escória pretendia usar Portugal, através de um seminário acadêmico fake, para legitimar um golpe de estado no Brasil, do qual seriam os maiores beneficiários. Falariam em nome da Constituição como estratégia para destruí-la. Mas a manobra, que aqui usam e abusam, lá foi ridicularizada.
Desde então, o repúdio internacional vem crescendo. Mas a percepção sobre o Brasil apenas ganhou a forma de estarrecimento após a “sessão histórica” da votação do impeachment. O jornalista Glenn Greenwald, fazendo a contabilidade dos efeitos da votação, aponta a despropósito chocante de os acusadores serem investigados ou processados por corrupção, enquanto Dilma Rousseff, a acusada, não tem qualquer acusação contra ela:
Os processos de domingo, conduzidos em nome do combate à corrupção, foram presididos por um dos políticos mais descaradamente corruptos do mundo democrático, o presidente da Câmara Eduardo Cunha (em cima, ao centro) que teve milhões de dólares sem origem legal recentemente descobertos em contas secretas na Suíça, e que mentiu sob juramento ao negar, para os investigadores no Congresso, que tinha contas no estrangeiro. O The Globe and Mail noticiou ontem dos 594 membros da Câmara, “318 estão sob investigação ou acusados” enquanto o alvo deles, a presidente Dilma, “não tem nenhuma alegação de improbidade financeira”.
Glenn Greenwald nos dá um belo quadro da situação ao apontar a reação unânime de repúdio em vários órgãos da imprensa em língua inglesa, destacando o mais importante dos EUA, o The New York Times, os ingleses  The Guardian e The Economist, e o canadense, The Glob and Mail.
O The Economist, nada simpático ao PT, como lembra Greenwald, foi também citado em matéria da BBC Brasil, que comenta a ironia da publicação com as dedicatórias de voto dos deputados brasileiros. Entre as mais de 50 citadas pelo The Economist, a BBC destaca essas aqui:
A posição do The Economist, do New York Times e dos outros citados, se baseia em um profundo enraizamento da noção de senso comum (common sense), algo como um mínimo consistente de conhecimento, julgamento, bom gosto que é mais ou menos universal e que cada um de nós possui sem precisar de reflexão ou argumentos. É a racionalidade elementar que habilita alguém a desempenhar um papel na esfera pública.  (van Holthoorn & Olson (1987, p. 9)
É justamente nesse nível elementar, que de certa maneira é a condição humana do homem moderno, que a turba de terno mostrou-se super desafinada. Ao praticarem tantos crimes e pretenderem condenar alguém sem faltas, violam brutamente o senso comum. E mostram assim que estão aquém dos protocolos mínimos exigidos para ingresso na modernidade. O pior é que a classe dominante brasileira, quanto mais injusta e egoísta se torna, mas regride para longe do mundo contemporâneo e mais canibal se torna.
O mundo está horrorizado porque descobriu que de 513 deputados federais, 299 tem inquéritos, processos ou condenações nas costas. Agora, o que diria esse mundo se soubesse, por exemplo, que esses 299 políticos, 60% da Câmara Federal, tem em média não uma “ocorrência judicial” mas sim várias? Se soubesse que esses 299 deputados somam sozinhos 1.131 ocorrências, como levantou a revista Piauí?  Ágeis e viscosos como enguias, escorregam deliciosamente pela maioria dos parágrafos do Código Penal como num tobogã de parque de diversões. A Constituição para eles é um brinquedo.  Esses indivíduos são uma afronta ao senso comum.
Numa rápida consulta à França, se lê no Libération a mesma indignação com a incongruência, já que os criminosos são os que acusam, não a acusada: Michel Temer, o possível sucessor de Dilma, é “suspeito de estar implicado em contratos ilegais de etanol” e Eduardo Cunha, o arquiteto do impeachment, é “ele mesmo indiciado por receber milhões de dólares de corrupção nos quadros do escândalo da Petrobras”. O mesmo vamos ver no Le Monde, ainda no dia 17. E ainda na principal TV pública francesa, a TVARTE, que reproduziu rigorosamente, em matéria sobre o golpe em 31 de março, a narrativa dos defensores da democracia no Brasil. E até o Le Figaro, conservador e gaullista, se lê em matéria do dia 15, dois dias antes da votação:
Contrariamente às principais figuras políticas brasileiras, Dilma Rousseff não é suspeita pessoalmente de corrupção, motivo que desencadeou o procedimento de destituição do antigo presidente Fernando Collor de Mello em 1992.
Acusações contra  mesmas acusações apareceram, como mostrou matéria do Brasil 247, no dia 18, no jornal Süddeutsche Zeitung e novamente na revista Der Spiegel, que chamou a votação de “insurreição dos hipócritas” e mencionou a inqualificável dedicatória de Bolsonaro de seu voto a um torturador e assassino serial.
A expansão das ondas de choque geradas pelas imagens dos nobres deputados partilhadas no planeta em tempo real, por um lado, e das poderosas manifestações de massa no Brasil, explicam a cristalização de todos esses apoios no exterior. A principal força renovadora da política na Espanha, o Podemos, acaba de declarar seu repúdio ao golpe exatamente nos termos acima:
Na mesma linha expressa pelo Secretário-Geral da Organização de Estados Americanos (OEA), nós, de Podemos, compartilhamos a preocupação ante essa grave situação, em que a Presidenta democraticamente eleita está sendo condenada por um Congresso doente de corrupção e claramente orientado por intenções espúrias. Não existe hoje nenhuma acusação de caráter penal contra a presidenta.
Esta posição do Podemos e da OEA expressa o apoio que a opinião mundial dá hoje à democracia no Brasil. Ela viu claramente que os golpistas, que vivem ainda sob a guerra fria, e denunciam o perigo comunista um quarto de século após o fim da União Soviética, não entraram e nem tem condições de entrar no século XXI. São zumbis de uma galáxia extinta, sem direito à cidadania na sociedade contemporânea. Se furarem as barreiras do tempo e tomarem o poder, o Brasil será extinto junto com eles. Já o estão destruindo com a crise econômica que provocaram. Pelos meios legítimos e democráticos do século XXI, as eleições, eles já estão ciente de que não vencerão.
Nos últimos 25 anos, após o fim da URSS (1991), a democracia tornou-se o valor básico e geral da comunidade internacional moderna. Ao lado disso, o surgimento da sociedade em rede, deu novo estatuto às imagens – hoje as imagens criam fatos e, por isso, podem ser fatais. É por isso que, no fundo, ao se exibirem para o mundo todo, a turba engravatada da Câmara cometeu uma espécie de selfiecídio coletivo. Esse foi o saldo do dia 17 de abril.
O senador Aloysio Nunes, representando Temer, foi aos EUA e voltou muito preocupado com o clima na opinião pública mundial. Se foi alertado sobre isso por lá, é coisa que nunca saberemos. Mas sabemos que, ao chegar aqui, lançou a palavra de ordem contra a denúncia do golpe no exterior. Dilma agora falará na ONU. Se for feliz, será uma nova volta da corda em torno do pescoço dos golpistas, que só precisam de corda para se enforcar.

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