quinta-feira, 21 de maio de 2015

Celso Amorim e o papel do Brasil no mundo

Transcrito da Rede Brasil Atual

Ex-chanceler durante o governo Lula relata momentos marcantes da diplomacia brasileira e da projeção do país no cenário internacional
por Vitor Nuzzi publicado 05/04/2015
Fotos: Wilson Dias / ABr
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Amorim defende maior aproximação com países da América Latina e África sem necessariamente ser pró ou anti EUA e faz críticas a mídia tradicional: 'Eu acho que não é só ideológico, é uma questão de ver o Brasil menor'
Antes de entrar na diplomacia, em 1963, com 21 anos, o jovem Celso Luiz Nunes Amorim ensaiou uma carreira cinematográfica. Apaixonado pelo tema, chegou a ser diretor do Grupo de Estudos Cinematográficos, o GEC, da União Nacional dos Estudantes. Trabalhou com Leon Hirszman em Pedreira de São Diogo (1962), um dos episódios do Cinco vezes Favela, e com Ruy Guerra, no clássico Os Cafajestes (1962). “Naquela época, final da década de 50 e início da década de 60, o Brasil era parte, digamos, de um movimento geral de renovação e de maior consciência em relação aos problemas do país. E isso me atraiu muito, como veículo”, lembra, citando uma passagem que, involuntariamente, juntou seus dois principais interesses.
“Se você notar a cena final de Os Cafajestes – não fui eu que bolei isso –, o personagem do Jece Valadão está se afastando do carro enguiçado – como a vida dele toda está enguiçada, o livro é mais pra existencialista do que político propriamente, embora o Ruy também tivesse muita consciência política – e no fundo tem o noticiário, que fica sempre alto, apesar de ele estar se afastando do carro... Muita gente achava que devia ir baixando. Não, o noticiário fica alto para contrastar com a realidade. E a principal notícia é o San Tiago Dantas em 1962 na conferência de Punta Del Este. É uma coincidência, mas interessante.”
O ex-chanceler Francisco Clementino de San Tiago Dantas – que naquela conferência discordou da posição dos Estados Unidos, que pretendia expulsar Cuba da Organização dos Estados Americanos – já atraía o interesse do futuro diplomata, que se interessava por política externa.
Tendo trilhado caminhos diversos, Celso Amorim deixou a vida levá-lo, como cantou Zeca Pagodinho, e tornou-se chanceler em mais de um governo. Acaba de lançar o livro Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva (editora Benvirá), em que narra episódios importantes sobre a atuação brasileira no exterior nos anos Lula. Ele evita fazer julgamentos. “Eu posso dizer o que aconteceu. As avaliações históricas não cabe a mim fazer. Faço algumas especulações, mas não seria correto e provavelmente seria muito enviesado.”
Mas reafirma algumas convicções, como a defesa de maior aproximação com países “similares”, na América Latina e África, sem necessariamente ser pró ou anti Estados Unidos. Amorim também faz ressalvas à mídia, com suas críticas à política externa. “Eu acho que não é só ideológico, é uma questão de ver o Brasil menor.”
O senhor entrou na diplomacia no período da Guerra Fria. Um ano depois, veio o golpe. Como isso influenciou a sua formação?
Naquela época foi um baque muito forte, também psicológico. Eu não tinha uma militância partidária propriamente, embora tivesse simpatias, relações na área artística, com outras pessoas também mais ligadas ao Centro Popular de Cultura. Inicialmente, eu não sabia nem como me orientar. Achava que ia ser muito ruim ser diplomata de um governo... Mas você vai se adaptando, tem família, filhos...
Mas todo o meu planejamento inicial de vida, se é que posso falar assim, era no sentido de estudar, ter um curso de pós-graduação no exterior, e com isso poder sair do Itamaraty. Mas a vida pode mais do que a gente, né? Por circunstâncias burocráticas muito complexas de explicar, acabei ficando um ano menos do que esperava poder ficar em Londres.
Fui para Washington, trabalhei na missão brasileira da OEA (Organização dos Estados Americanos), depois minha vida tomou outro rumo, totalmente diferente. Continuei a vida acadêmica, fui um dos cofundadores do departamento de relações internacionais da UnB (Universidade de Brasília) Fiquei sempre com essa dualidade, trialidade, interesse acadêmico, artístico, e a carreira.
Anos depois (em 1979), o senhor foi para a Embrafilme.
Foi um momento muito importante da minha vida, muito difícil, um grande treino para funções que eu viria a ter no futuro. Muito envolvido no momento político que o Brasil vivia. Confiei na abertura, apostei na abertura, paguei um precinho, mas valeu a pena. Porque eu financiei o Pra Frente Brasil (1982), que foi considerado provocativo, digamos, apesar da abertura. E eu tive de sair da Embrafilme.
Por causa do filme?
Sem a menor dúvida. Naquela época, o Golbery (do Couto e Silva, general e político brasileiro) falava das "sístoles e diástoles". Vários filmes que íamos produzindo as pessoas achavam que iam dar problema. Por exemplo, o filme do Leon Hirszman, Eles Não Usam Black-Tie, mas que ele chegou a querer dar o nome de Segunda-feira, Greve Geral, foi bem na época das greves do Lula, justamente...
Acho que o episódio do Riocentro, o Golbery chamaria de uma sístole no governo. Houve um refluxo autoritário. Tanto que o próprio Golbery saiu nessa época. Fui instado a sair, sob pressão, ou teria sido demitido e aí não poderia nem voltar à carreira diplomática. Depois, com outros percalços, acabei voltando para o Itamaraty.
O senhor fala no livro que o Brasil tem uma “relação especial” com os Estados Unidos. Essa relação teve muitas idas e voltas. Um período de um alinhamento quase automático à política norte-americana, depois uma fase de “demonização”. E hoje?
Complexa, porque são os maiores países do continente americano. Obviamente, os Estados Unidos, não porque são maus, não têm como Estado interesse de que tenha alguém nem para desafiar, mas que possa contrabalançar a hegemonia que eles tinham. O Brasil sempre era o país potencialmente que podia ter esse papel.
Mesmo durante o governo militar, o Brasil manteve uma política bem independente. Foi o primeiro a reconhecer Angola, antes de Cuba, que era um governo acusado de ser comunista. Tivemos uma política de abertura em relação à Palestina, pela primeira vez. O governo Geisel também reconheceu a República Popular da China. Claro que era tendência mundial, mas ele foi rápido. Mesmo assim, não esteve isento de conflitos.
Os Estados Unidos, principalmente, depois que o Carter foi eleito, se opôs muito ao programa nuclear e também teve uma política muita ativa na área de direitos humanos, incomodou os que governavam na época. Sempre foi uma certa oscilação.
Acho que não há razão nenhuma pra gente pensar que o Brasil tem de ser pró-americano, antiamericano, tem de defender o seu interesse, o seu povo, e na medida do possível, e eu acho que é, ser solidário com outros países similares, a começar da nossa região, da América do Sul, da América Latina, africanos.
Há muita gente nos Estados Unidos hoje, em posições de destaque, que reconhece que o Brasil tem de ter um tratamento diferenciado mesmo, que não pode ser visto só no conjunto da América Latina. Houve um relatório interessante em 2011, do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos (recomendando uma revisão da política norte-americana em relação ao Brasil), até me motivou a escrever um artigo para a CartaCapital, sobre o complexo de vira-latas, como os de fora nos veem com mais importância.
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Eles querem que o Brasil tenha uma projeção internacional, porque isso ajuda a manejar alguns problemas. Eles sabem, hoje em dia, que não podem impor sozinhos a liderança deles, têm de trabalhar com alguma pluralidade. Por outro lado, não querem que a hegemonia seja desafiada. Enfim, é ambivalente.
Temos uma parceria estratégica com a China, mas acho que temos de problematizar a nossa relação com o Mercosul(...) O Brasil tem de defender o seu interesse, o seu povo, e ser solidário com outros países similares, a começar da nossa região
Na parte comercial, por exemplo, os embates iniciais na OMC (Organização Mundial do Comércio), na Alca, foram muito fortes. Mas isso não impediu que passado algum tempo, o representante comercial Bob Zoellick (ex-vice-secretário de Estado e ex-presidente do Banco Mundial), que disse que o Brasil devia negociar com a Antártida, me ligasse: ‘Estou querendo montar um grupo pequeno de países que possam ter influência, e o Brasil é fundamental’. E nós conseguimos fazer negociações da Rodada (Doha, sobre comércio mundial) andarem, até que em 2008 houve outros problemas.
O senhor faz algumas críticas em relação ao presidente Obama e fala de uma relação franca, até, entre os presidentes Bush e Lula...
O Bush era muito direto, e o Lula também é muito direto. Não têm subterfúgios. No primeiro encontro que eu presenciei, em junho de 2003, já como presidente, a primeira coisa que o Bush disse foi: ‘Nós divergimos em vários pontos, mas vamos trabalhar naquilo que a gente concorda e pode fazer juntos’. Foi uma coisa muito pragmática, foi criado um grupo de energia, sobre desenvolvimento econômico, coisas muito práticas que resultaram numa melhora da relação.
Em termos políticos delicados, como o grupo de amigos da Venezuela, claro que tinha oscilações. Nós tivemos uma cooperação e eles, de certa maneira, confiaram muito na maneira de o Brasil agir, que na época resultou no referendo, o Chávez ganhou... Enfim, equilibrou a relação de alguma forma.
Eu tive um excelente diálogo com a Condoleezza Rice (secretária de Estado do governo norte-americano na gestão de George W. Bush), a ponto de termos sido um dos três únicos países em desenvolvimento, não islâmico, a ser convidado para aquela grande conferência de Anápolis (em 2007, sobre a relação dos Estados Unidos com o Oriente Médio). A própria relação com a OMC.
O Brasil se tornou um ator tão importante, não pelo peso, que oscilou em torno de 1% do comércio internacional. Mas o peso do Brasil era de não só determinação da diplomacia, não só meu, dos diplomatas em geral, tanto que um deles (Roberto Azevêdo) agora é diretor-geral da OMC, mas também a capacidade de articulação com outros países
O Brasil liderou o movimento do G20 com participação de outros, liderou o movimento que juntou o G20 com o G90, e isso foi responsável pelo resultado –, que ainda não se concretizou, porque a Rodada tem que acabar –, mas o passo realmente fundamental, que foi a decisão de eliminar os subsídios de exportação com data certa, graças a essa união.
Uma vez veio aqui uma missão de parlamentares japoneses, o Roberto Azevêdo que me contou. Um deles disse, ‘Eu quero entender uma coisa: in world trade, Japan big, Brazil small, in WTO, Brazil big, Japan small (no comércio internacional, Japão grande, Brasil pequeno. Na OMC, Brasil grande, Japão pequeno).’ Como pode? (risos) É a força da diplomacia, se você não ficar com medo de defender suas posições.
Houve um diálogo mais duro com a Hillary (Clinton, ex-secretária de Estado norte-americana), que de certa parecia torcer pelo fracasso (das negociações com o Irã)...
Não posso julgar a Hillary Clinton, essas coisas oscilam. Há pouco tempo agora, já nessa negociação do Obama, do Irã, até pouco tempo antes do livro ter sido terminado, a Hillary não tinha se manifestado a favor do acordo com o Irã, já fora do governo. Mostra que não tinha grande entusiasmo. Depois apoiou, não sei com que entusiasmo.
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Capa do livro de Celso Amorim: sem medo de ser grande
A verdade é que senti uma diferença de tom. O Obama foi quem se aproximou do Lula e, resumidamente, disse lá, ‘eu preciso de amigos que possam falar com países que eu não posso, estendi a mão e não fui correspondido’.
A Hillary sempre teve uma posição mais reticente... É uma questão de como você coloca ênfase. A história da xícara meio cheia e meio vazia. A Hillary via sempre meio vazia, digamos assim. Claro que o Irã não facilitou, sempre querendo flexibilizar um pouco mais, um pouco mais. Isso serviria como pretexto ou de motivo para pessoas como a Hillary Clinton, não estou questionando os motivos dela, achassem que eles queriam nos enganar.
Já o Obama, mesmo depois de essas dificuldades todas, nos mandou uma carta reiterando quais eram os objetivos, que se fossem alcançados aquilo contribuiria para ganhar confiança para alcançar outras negociações.
Fomos lá, conseguimos exatamente o que está na carta do presidente Obama, e aí, antes que fosse possível pensar um pouco mais, a Hillary, não com essas palavras que estou dizendo, ‘não li e não gostei’. Poucas horas depois, ela falou não. Não lembro que palavra usou, revelando uma certa contrariedade, e disse: ‘Nós vamos continuar defendendo as sanções’. E com isso, se perderam três, quatro anos.
Não é que o acordo seja igual àquele. É mais amplo, é diferente. Só que o ponto de partida é muito pior do que seria quatro ou cinco anos atrás. O Irã tinha 2 mil quilos de urânio levemente enriquecido, mais ou menos. E hoje tem 7, 8 mil.
Se é verdade que aquilo daria para fazer bomba, e eu não acho, hoje daria para fazer quatro. Está negociando numa posição menos favorável. E também teria poupado a população iraniana de sanções, de efeitos econômicos desfavoráveis. Tem gente que acha até que cada vez que entram as sanções, em vez de solucionar, reafirma o desejo do Irã de ter um programa nuclear.
O maior desencontro nesse período com os Estados Unidos foi a deposição do presidente de Honduras (Manuel Zelaya, em 2009)?
Acho que em várias questões tivemos diferenças. A própria Declaração de Teerã não deixa de ser. Um pouco depois da declaração e de eles terem adotado sanções e nós votado contra, não foi um gesto pequeno, o Brasil, pela primeira vez, votou contra uma resolução que foi aprovada... Porque tinha de fazer isso, senão desacreditava o próprio trabalho que havíamos feito. Nós e a Turquia votamos contra.
Achamos que obviamente o que aconteceu lá (Honduras) foi ilegítimo, ilegal, e não podíamos tolerar uma situação decorrente de uma deposição de um presidente que saiu com uma carabina encostada na testa. Mas, mesmo com isso, nunca paramos o diálogo. Eu não acho...
Os Estados Unidos são um país muito complexo, muita gente atuando em linhas diferentes. Mas digamos, como política do Departamento de Estado, não creio que foi naquele momento derrubar o Zelaya. Mas uma vez que caiu, eles tiveram uma posição muito menos condenatória do que se fosse o contrário, se tivesse caído um líder mais à direita e um golpe mais à esquerda. Seriam os primeiros a condenar.
Quatro dias antes da votação do Conselho de Segurança sobre sanções ao Irã, o senhor escreveu que “a arrogância dos P5 (grupo formado por China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia), inclusive China e Rússia, que negociaram isenções de seu interesse exclusivo, terá prevalecido sobre os esforços pacifistas de dois outsiders (referência a Brasil e Turquia)”. Como é a relação com esses parceiros de Brics?
Gasto boa parte dessa narrativa sobre a Declaração de Teerã para tentar explicar, compreender, o comportamento da Rússia e da China. Há interesses nacionais que pesam muito. Primeiro, uma grande preocupação com qualquer coisa que diga respeito a outros países se tornarem nucleares, mesmo que não esteja provado que eles querem ter arma nuclear. Segundo, interesses estratégicos. Terceiro, que houve na época também interesses econômicos.
Na realidade, de alguma forma, a Rússia e a China, sobretudo a Rússia, se beneficiaram das sanções. Havia sanções unilaterais dos Estados Unidos, e eles isentaram empresas russas de algumas dessas sanções, e isso possibilitava a eles assumir um mercado que podia ter sido de outros países. Então, pesou também esse interesse econômico.
Para a China, era importante continuar recebendo o petróleo iraniano, e as sanções unilaterais, que eram as mais pesadas, abriram essa porta. Do ponto de vista lógico, em termos da não intervenção, de direitos internacionais, não seria razoável que a China e a Rússia tivessem apoiado as sanções. Era, aliás, a expectativa que tínhamos, de apostar nisso. Erramos a aposta naquele momento.
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Óbvio que, depois da Guerra Fria, parecia que os Estados Unidos iam ter uma hegemonia absoluta, hoje sabem que não pode ser assim. Pode ser o sócio maior do clube, mas não o único, e tem de compartilhar as decisões
Mas eu costumo dizer o seguinte, tem aquela frase: na história, o erro é o momento da verdade. O fracasso ali, se é que se pode chamar de fracasso, rendeu frutos mais tarde. Porque mostrou que, sim, era possível negociar. Ao contrário do que diziam algumas pessoas, como a secretária de Estado. Mostramos que com paciência, com confiança, não sendo impositivamente, era possível persuadi-los a ver que o melhor caminho era de uma negociação.
Principalmente depois da Guerra Fria, outros países se tornaram agentes importantes. O senhor acha que os países desenvolvidos, os impérios, ainda resistem a aceitar esses novos parceiros?
Bom, isso é justamente o sentido da frase que você leu. Mas eu não digo “foi”, mas “terá sido”, entra alguma noção hipotética nisso... Acho que há uma certa resistência. Varia de país para país, também não diria que todos ajam da mesma maneira, nem que não haja flutuações em relação ao tema...
Acho que num caso como esse dois países-membros não permanentes (do Conselho) vão a Teerã e conseguem um acordo que os P5, junto com a Alemanha, não conseguiram, é um pouco desafio à ordem estabelecida Não sei, é uma questão quase psicológica. Acho que os outros fatores são mais importantes. Mas levanto isso como uma hipótese também.
Ainda há muito imperialismo nas relações internacionais? É um clube ainda muito fechado?
Essas palavras muito carregadas eu prefiro evitar, mas evidentemente há uma luta permanente por uma hegemonia, às vezes com matizes diferentes. Óbvio que, depois da Guerra Fria, parecia que os Estados Unidos iam ter uma hegemonia absoluta, hoje sabem que não pode ser assim. Pode ser o sócio maior do clube, mas têm de compartilhar as decisões.
Às vezes compreendem, às vezes parece que não compreendem. Mas como é que vai se comportar a China daqui a 20, 30 anos? Temos uma parceria estratégica, mas acho que na nossa relação com a China temos de problematizar a nossa relação com o Mercosul. É uma relação estratégica, mas a China quer entrar aqui e tomar todos os nossos mercados? O que é que vale? Em certos momentos é a solidariedade de países em desenvolvimento, como na questão do clima? E na hora do comércio e outras coisas é o salve-se quem puder?
É uma relação complexa a ser resolvida. Como houve no passado com outros. Mas, para o Brasil, interessa um mundo mais multipolar, é uma tese subjacente de todas as narrativas. Mais do que as narrativas, das ações que são narradas.
Achamos que obviamente o que aconteceu lá (Honduras) foi ilegítimo, ilegal, e não podíamos tolerar uma situação decorrente de uma deposição de um presidente que saiu com uma carabina encostada na testa. Mas, mesmo com isso, nunca paramos o diálogo
O senhor faz comentários sobre a mídia. Acha que a mídia tem conhecimento sobre o tema, faz críticas justas?
É muito difícil generalizar... Mas a mídia é um personagem importante. O que mais chama a atenção é a diferença de avaliação da mídia brasileira, por exemplo, da mídia internacional... Ações que eram valorizadas (fora), aqui eram colocadas em segundo plano e até criticadas. A facilidade com que eram compradas teses... Isso aconteceu em relação a Teerã, ao Oriente Médio.
As teses que eram às vezes colocadas por alguns setores dos países mais ricos, que, às vezes não eram nem aceitas pela mídia daqueles países, aqui viravam verdade absoluta. Desde a oferta agrícola da União Europeia, como na questão do Irã, do nosso relacionamento com países árabes. Você vê o seguinte, para pegar uma coisa atual: porto de Mariel. Estavam falando mal sem parar.
Os Estados Unidos foram lá e começaram a ter uma relação com Cuba, esse assunto sumiu. A própria Declaração de Teerã. Uma revista brasileira publicou uma foto minha, não com ele, mas do lado do Ahmadinejad (Mahmoud Ahmadinejad, ex-presidente do Irã), como se fôssemos grandes inimigos de Israel, o que é um absurdo. Fui cinco vezes a Israel, sempre com o melhor diálogo possível.
Claro que divergi de muita coisa, mas nunca rompendo o diálogo, a ponto de o ministro agora reeleito, o Netanyahu, ter pedido ao presidente Lula para intermediar uma tentativa de conversa com a Síria sobre as colinas de Golan. Havia uma relação de confiança. Voltando ao Ahmadinejad, nunca tivemos afinidade especial com o Irã, fizemos isso para resolver um problema que ameaça a paz e a segurança internacionais. Acho que essa falta de percepção, aí você pode especular.
Não quero entrar nos detalhes, estudei um pouco sociologia de política, mas não é minha função, se é por causa de interesses, se é por falta de informação, se é uma mistura das duas coisas às vezes, se é uma precipitação de dar a notícia de uma maneira mais sensacional... Veja bem: essa questão com a mídia existe no mundo inteiro. Mas chama a atenção. Para mim, já foi dito por um embaixador estrangeiro: ‘Nunca vi uma mídia tão hostil ao governo como é no Brasil’. A qualquer governo.
Um pouco ideológico...
Pode ter... Meus amigos do PT às vezes não concordavam muito comigo quando eu dizia isso. Mas eu acho que não é só ideológico, é uma questão de ver o Brasil menor. Que é um complexo de vira-lata, sim. Mas o complexo de vira-lata serve a algum interesse ou é uma mera fixação?
No governo Fernando Henrique, em um dos momentos eu era embaixador em Genebra quando houve disputa com o Canadá em torno da Bombardier e a Embraer. Houve o episódio da vaca louca. Claro que (o Canadá) não relacionou uma coisa com outra, mas quando levou pancada num dos aspectos da questão entre a Embraer e Bombardier, resolveu acusar o Brasil de ter vaca louca.
Sabia que não tinha nenhuma razão aquilo. Pedi para convocarem uma reunião do comitê fitossanitário. Falei criticando, algumas delegações nos apoiavam... Manchete de um grande jornal brasileiro no dia seguinte: ‘Brasil criticado na OMC’. Uma reunião que nós convocamos, que nós criticamos, fomos apoiados por quatro ou cinco países, e o único país que falou mal do Brasil foi o país que era criticado...
Isso foi no governo Fernando Henrique. Acho que no governo Lula isso piorou, esse antagonismo, esse viés ideológico também pesou. Mas acho que há uma preocupação de evitar que o Brasil se sobressaia, passe dos seus limites... Esses gestos todos foram apreciados. E aqui, não, a visão foi totalmente contrária.
Não houve, no pós-Lula, certa desmobilização da política externa para a África e América Latina?
Não creio que tenha havido desmobilização como política. Houve diminuição de intensidade por motivos diversos. Isso é perfeitamente recuperável. O ministro Mauro Vieira já anunciou que realizará nas próximas semanas visita a cinco países africanos. É um recomeço. Mas é claro que, em algum momento, será necessário reativar os contatos em nível de chefe de governo.
E a OEA, perdeu relevância? É melhor apostar em organismos como Mercosul, Unasul, Celac?
Não diria que a OEA se tornou irrelevante. Orgãos sobre direitos humanos e condição da mulher, por exemplo, são ainda valiosos. A OEA também é o grande foro, em que os países da América Latina e Caribe dialogam com os dois países desenvolvidos nas Américas.
Mas é importante que nesse diálogo os países da ALC apresentem frente unida, para que o diálogo seja frutífero. Evidentemente, essa unidade não ocorre de forma idêntica em todos os níveis (Mercosul, Unasul e Celac). Mas quanto mais for possível obter posições comuns, mais efetivo será o diálogo. Mas o papel político da OEA tende a se reduzir frente a essas outras entidades, cujo processo de institucionalização ainda deve desenvolver-se.
É muito importante, por exemplo, que o CDS (Conselho de Defesa da União de Nações Sul-Americanas) assuma progressivamente o papel que tem sido exercido pela JID (Junta Interamericana de Defesa) e que a Escola Sul-Americana de Defesa sirva de contraponto ao Colégio Interamericano.
Em determinado momento, o senhor comenta um momento difícil nas relações com a Argentina, e, curiosamente, fala que a situação poderia estar melhor se o papa fosse argentino...
Sabe que eu mesmo, relendo essa nota, fiquei surpreso? É verdade que havia morrido o papa e falavam vários nomes, antes de ser escolhido o cardeal Ratzinger. Puxa vida, é difícil a gente agradar, estamos fazendo o possível para não criar um problema para a Argentina, mas sempre encontrando muita dificuldade. Aí fiz essa especulação.
Tinha o problema do Conselho de Segurança. A gente sabia que era um fato que erradamente, na minha opinião, mas compreensivelmente se você for olhar a história, de certa forma poderia, digamos, de alguma forma afetar a autoestima não digo dos argentinos em geral, mas acho que sobretudo na chancelaria, que guardava valores muito de antes, era visto como uma diminuição da Argentina...
E tinha também umas diferenças na OMC. O que a gente pode fazer para ver se agrada? ... Depois eles vieram apoiar com muita força, o (Néstor) Kirchner foi o primeiro secretário da Unasul. Então, essas coisas não são permanentes. Era uma coisa muito momentânea, muito conjuntural. O que se pode fazer mais? Só se o próximo papa fosse argentino! (risos) Só que nunca podia imaginar que tinha acertado o alvo.

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