*José
Álvaro de Lima Cardoso
O Brasil atravessa a mais grave recessão
da história, no contexto da maior crise da história do capitalismo, e em plena
execução de um golpe de Estado. O impacto desta conjuntura sobre a arrecadação
pública, em todos os níveis, é dramático e inevitável. O debate é bastante
complexo, pois, além da queda da arrecadação, em si, nele está presente com
muita força a questão político ideológica, que leva à uma leitura de que o
Estado brasileiro estaria quebrado em função dos salários e dos direitos
sociais. Assim, além da queda da arrecadação em si, decorrência da mais grave
recessão da história do país, temos uma narrativa, dada de barato pelos “formadores
de opinião”, de que o déficit público decorre dos direitos trabalhistas e
sociais. O desdobramento do raciocínio é automático: a solução do problema
passa pela liquidação dos salários, demissões, implosão da Previdência Pública,
redução de gastos com saúde e educação, e assim por diante. Essa leitura,
equivocada e calcada no senso comum, é hegemônica no interior da sociedade.
A crise fiscal afetou todos os níveis
da administração pública. Em vários municípios, que também vivem o drama da
queda da arrecadação, os prefeitos vêm tentando resolver a crise com o desmonte
de direitos conquistados à duríssimas penas, e ao longo de décadas. Em alguns
dos principais municípios catarinenses, não fosse a
organização sindical e a disposição de luta dos servidores, os direitos já
teriam sido completamente raspados, o que abriria a “temporada de caça aos
direitos” nos demais (essa possibilidade não está descartada, aliás, pois o
jogo está em andamento).
Em alguns estados a situação beira a insolvência,
com salários atrasados e elevadas dívidas, com grave crise política e
institucional. Mas há razoável heterogeneidade na situação dos estados, que
devem ser consideradas, sob pena de uma “nivelação por baixo” dos salários e
direitos existentes. Por exemplo, no referente à dívida pública, o problema é grave
em quatro estados: Rio de Janeiro (232% da Receita Corrente Liquida - RCL), Rio
Grande do Sul (213%), Minas Gerais (203%) e São Paulo (175%). Nesses casos, os
três primeiros já possuem dívidas acima do limite legal de 200% da Receita
Corrente Líquida, definido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas esta
situação não é a de todos os estados. No ano passado, dos 27 entes federados, 22
encerraram o ano com dívida inferior a 100% da Receita Corrente Líquida,
portanto, muito abaixo do limite permitido para endividamento (200% da RCL).
Obviamente, é central o fato de que a crise se faz mais grave em estados com
grande peso no PIB nacional e na população nacionais, fenômeno que aumenta o impacto
sobre o problema, ao nível nacional, tanto econômica quanto politicamente.
Com exceção de alguns estados, pode-se
afirmar que o problema das contas públicas estaduais, não é o estoque da
dívida. A rigor a questão central é a de que a recessão afetou a arrecadação em
geral, e o cobertor ficou curto para muitos estados e municípios. Há um
crescimento vegetativo das despesas, inclusive de pessoal, e, num momento de queda
significativa na receita as contas se agravam. Um dos efeitos da queda da
arrecadação real dos estados, foi a queda nos investimentos, bastante grave. Frente
a 2014, ano em que teve início a trajetória de queda da atividade econômica, os
estados reduziram os investimentos em R$ 34,8 bilhões em 2016, queda de 53,4%
em termos reais. O resultado foi que, em 2016, o investimento médio dos estados
chegou ao menor patamar dos últimos nove anos, 5,3% da RCL (dados do estudo da
Firjan: Situação Fiscal dos Estados
Brasileiros, abril de 2017).
Apesar do problema fiscal ser muito
grave apenas em alguns estados, como
vimos, (ainda que sejam os grandes estados), acabou de ser aprovada na Câmara
Federal o PLP 343/2017, que trata da renegociação da dívida dos estados. O PLP
343 foi enviado pelo governo golpista, após ter sido derrotado em diversos
pontos do PLP 257/016, em dezembro de 2016. Com o PLP 343/17 os golpistas
reintroduziram uma série de condições, que foram retiradas do projeto anterior,
para renegociação das dívidas dos estados com a União. Para os estados que renegociarem
suas dívidas através desse PLP, haverá uma série de contrapartidas, como:
1) Proibição, por dois anos, de reajustes salariais acima
da inflação e de novas contratações;
2) Aumento de 11% para 14% da contribuição previdenciária
dos funcionários públicos (com possibilidade de mais 8% e 6% extraordinárias);
3) Possibilidade de redução da jornada dos servidores
estaduais, com corte nos salários (medida que depende do aval do STF);
4) Privatização das empresas de saneamento, energia e
bancos estaduais.
A lógica do PLP 343 é a mesma do
conjunto de ações do governo como um todo: aproveitar para privatizar o filé das
estatais, reduzir salários reais e direitos. A ideia embutida nesses projetos é a de que os direitos atuais não
cabem no orçamento. Daí os programas de privatizações, concessões e venda de
ativos. Está se tentando repassar o ônus da crise para os trabalhadores,
empurrando goela abaixo do povo um programa ultraliberal, fundamentalista, que
não foi praticado em parte nenhuma do mundo. As medidas têm objetivos bastante
ousados e definidos: a) reduzir salários reais nos setores público e privado;
b) implodir a Carta Magna de 1988; c) transformar direitos sociais em serviços
pagos; d) destruir a CLT (o projeto de reforma trabalhista não deixa dúvidas);
e) privatizar o que restou de patrimônio público (CEF, BB, BNDES, Petrobrás);
f) reduzir ao mínimo a Seguridade Social (de preferência, acabar); g) entregar o
mais importante, a jazida do pré-sal, o passaporte do Brasil para o desenvolvimento.
Se atribui a crise fiscal à existência
dos direitos, e se promove um ataque inédito aos mesmo, sem sequer mencionar o
principal problema fiscal do Brasil, que é a dívida pública. É como se o ganho
dos rentistas estivesse escrito nas estrelas, e em detrimento dos direitos de
toda a população. Para exemplificar, segundo trabalho recente da Subseção do
DIEESE no Setor Público, Santa Catarina fez um empréstimo de R$ 5,42 bilhões,
pagou até dezembro de 2016 R$ 13,26 bilhões e terminou 2016 com uma dívida de
R$ 10,21 bilhões. Essa é a característica geral das dívidas estaduais e da
dívida pública brasileira. São impagáveis, servindo apenas de mecanismo de
dragagem de dinheiro público, para os bolsos de uma elite rentista. Este é o
verdadeiro problema fiscal brasileiro. Se sacrifica toda uma população para
pagar serviços de uma dívida que não tem legitimidade, e que não resistiria a
uma auditoria.
*Economista.
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