Por Márcio D´Amaral
A moça americana
tinha 19 anos e fez
duas mastectomias. Não tinha câncer. Não um real. Tinha era medo.
Dali a muito
tempo podia desenvolver um. Um tumor virtual, futuro e incerto,
foi o que
determinou uma tal brutalidade. O futuro, tempo totalmente
virtual, pulou sobre
o presente e determinou aí os seus efeitos. Ela, tudo indica, não
vai ter
câncer, não de mama. Seios reais, é certo, não os terá nunca mais.
Fez um
cálculo. Por enquanto, perdeu. O futuro, quando for um tempo real,
dirá se
também ganhou. Se a conta não deu resto.
A
cúpula nazista no final da guerra tinha um desafio. Precisava
fazer um esforço
de contenção de despesas desde que Stálin declarara a guerra e
abrira uma
frente oriental. Ficou então muito caro manter vivos os judeus,
ciganos,
homossexuais, católicos em condições de trabalhos forçados, corpos
destruídos,
morte rondando como abutres em longo jejum. Os nazistas deram a
essa situação
de desequilíbrio matemático entre receita e despesa o nome
igualmente
matemático de problema. ‘O
problema
judeu’. E encontraram uma solução
– a
‘solução final’ - para fechar a conta. Uma barata cápsula de gás
capaz de
matar, de uma vez, centenas de pessoas sem gastar uma só bala, tão
preciosa no
front russo. Problema quase de almoxarifado. Existe a ata da
reunião em que
essa decisão foi tomada. Conta feita, resultado sem resto. Houve,
graças a
Deus, o resto mais poderoso, a memória dos que escaparam e
resgataram para nós
essa história de pavor extremo. Hoje a conhecemos. A conta,
afinal, não fechou.
E foram seis milhões de mortos.
A
decisão de lançar a Bomba sobre Hiroxima e Nagasáqui teve por trás
das
sofisticadas física e engenharia uma equação desumanamente
simples. Os
japoneses continuavam a guerra no Pacífico, depois da rendição dos
europeus. A
guerra, desnecessária, era onerosa para os Aliados. Em dinheiro e
vidas. Então:
se houver guerra ainda por muito tempo, quantos de nós e quantos
deles? Muitos.
Precipitado o fim da guerra pelo uso de uma monstruosidade bélica,
quantos de
nós e quantos deles? Pouquíssimos Aliados. Os japoneses, todos.
Civis. A morte
deles é que encerraria a guerra. Conta feita, ato praticado,
rendição do
imperador. Sem resto. Resto houve, mas não foi na guerra. Os
Estados Unidos se
tornaram a nação mais poderosa do mundo e, como todos os impérios,
passaram a
ser invejados e odiados. A inveja e o ódio são violentos. A
violência contra os
vencedores foi um dos restos da guerra vencida. A conta, afinal,
não foi
perfeita.
É
pela imperfeição das contas que se introduz luz por baixo da
porta, a pequena
esperança. Porque depois do gás e do átomo enlouquecido o mundo
ficou outro. A
verdade deixou de ser relevante. Valores, morais, direitos –
obstáculos ao
progresso. O futuro passou a valer mais do que o presente e seu
passado. Um
futuro sonhado, desejado, caminhado desde já pelos pés do
presente? Não, esse,
o dos projetos e utopias, morreu com os judeus e os japoneses, a
bomba e o gás.
Já estava morto quando a moça arrancou seus seios. Os senhores da
Terra não
sonham: calculam. Seu futuro são cálculos e apostas. E cálculos
são neutros,
servem para tudo, indiferentemente. Sua eficácia tomou o lugar da
ética da
verdade. E da compaixão. Mas a conta sempre deixa resto. É dele
que se fazem
nossas vidas. E a resistência que elas possam, saibam e queiram
opor à barbárie
que calcula.
Os
senhores da Terra estão em toda parte. Erro grande é localizá-los
num povo, num
governo, num hemisfério. Sim, são mais visíveis em certas partes
do planeta.
Mas vivem em todos os lugares a que cheguem o império do dinheiro
e a potência
do terror, ambos sem sonhos. Cálculos, frieza movem drones e
decepam cabeças. E
dão-se em espetáculo. Invadem a casa dos pacíficos, riem
postumamente das
vítimas. Os que não lançam artefatos bélicos, no máximo balões que
queimam
árvores, nem degolam mais do que eventuais galinhas ficam
espantados.
Abismados. E podemos escolher o espanto e a vertigem como luzes
por baixo da
porta. O que o poder e o terror procuram é a sua naturalização.
Querem que aceitemos
como necessários um ou outro, segundo o lado da cerca em que
estejamos, e não
nos espantemos nem nos abismemos com o que vem desse lado, o
nosso. Seria um
erro catastrófico. Pois os pacíficos e sonhadores não estão em um
lado. Estão
no meio. Os drones voam sobre as nossas cabeças, as facas zunem
perto dos
nossos ouvidos. Espantarmo-nos e encararmos o abismo é necessário.
Esse é o
resto da conta. A esperança se alimenta desses restos. São eles a
casa da
verdade e da compaixão. Habitemo-la. Ainda é possível.
Tenho
enorme pena da moça americana, que não sabia que sua decisão
mutiladora já
vivia nesse mundo do cálculo frio, e pensou estar fazendo o
melhor. Deus
queira. É a única inocente nessa história toda.
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