Najla Passos no site Carta Maior

Uma proposta de emenda à constituição de autoria do presidente da Câmara,
Eduardo Cunha (PMDB-RJ), se aprovada, poderá significar o mais duro
golpe contra uma das maiores conquistas civilizatórias da sociedade
brasileira no século XX: o Sistema Único de Saúde (SUS), universal e
gratuito, criado para atender aos brasileiros, sem distinção de classe
ou categoria profissional. Trata-se da PEC 451/2014, que obriga as
empresas a pagarem planos de saúde privados para todos os seus
empregados. E, consequentemente, desobriga o Estado a investir para que o
SUS garanta atendimento de saúde de qualidade para todos.
Reconhecido como um dos principais lobistas das empresas de telecomunicações no Congresso após sua atuação veemente contra a aprovação do novo Marco Civil da Internet, Cunha é também um dos mais legítimos representantes dos planos de saúde que, só nas últimas eleições, distribuíram R$ 52 milhões em doações para 131 candidaturas de 23 partidos, em todos os níveis. O presidente da Câmara foi o que recebeu o terceiro maior “incentivo”: R$ 250 mil, repassados à sua campanha pelo Saúde Bradesco.
Em contrapartida, desde mandatos anteriores, faz da sua atuação
parlamentar uma verdadeira cruzada em favor dos planos privados. Foi ele
o relator de uma emenda à Medida Provisória 653/2014, posteriormente
vetada pela presidenta Dilma Rousseff, que anistiava os planos em R$ 2
bilhões em multas. Também foi Cunha que, assim que assumiu a presidência
da casa, engavetou o pedido de criação da CPI dos Planos de Saúde, de
autoria do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), que já tinha parecer
positivo da consultoria da Câmara pela admissibilidade e contava com 201
assinaturas de deputados, 30 a mais do que o mínimo necessário previsto
pelo regimento.
Com a PEC 461/2014, ele amplia consideravelmente o mercado dos planos
privados, que têm crescido de forma vertiginosa e já alcança 50 milhões
de usuários, um quarto da população brasileira. Grosso modo, a matéria
legislativa propõe a privatização do sistema de saúde do trabalhador
brasileiro, em detrimento de maiores investimentos no SUS, que beneficia
não só àqueles que disputam atendimento médico direto, mas também a
criança que é vacinada contra a pólio ou mesmo o cidadão que compra um
simples pãozinho, que teve sua manufatura antes inspecionada pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“O SUS é o grande plano de saúde dos brasileiros. De todos os brasileiros.
Nós precisamos fortalecê-lo, aperfeiçoá-lo, discutir seu financiamento e
o pacto federativo que o mantém. E não acabar com ele. Isso significa
um retrocesso em todos os sentidos, porque reduz direitos”, afirma o
médico, professor e deputado Odorico Monteiro (PT-CE), membro titular da
Comissão de Saúde e Seguridade Social da Câmara e ex-secretário de
Gestão Participativa do Ministério da Saúde, para quem a caminhada
civilizatória brasileira já está muito mais avançada do que o debate que
o presidente da casa propõe com a PEC 451.
De acordo com o especialista, o Brasil virou a página do debate sobre a
necessidade da implantação de um sistema universal de saúde com a
promulgação da Constituição de 1988, que previu a criação do SUS. Ele
acrescenta que, ainda que com enorme atraso em relação aos países
europeus que investiram nas suas políticas de bem-estar social, o Brasil
conseguiu se tornar o único país do mundo com mais de 140 milhões de
habitantes a universalizar o atendimento integral à saúde, da prevenção à
alta complexidade. “Essa é uma conquista da qual a sociedade não pode
prescindir”, defende.
Odorico Monteiro relata que, na Europa, mesmo durante esta última crise
econômica, que afetou profundamente muitas economias do continente, o
fim dos sistemas universais de proteção à saúde sequer chegou a ser
incorporado ao debate, devido à importância que têm. “Na Europa, mesmo
durante a crise, não houve nenhum surto privatizador, porque os países
entendem a importância dos sistemas universais para a proteção do
trabalhador. Nem mesmo na Espanha ou na Grécia. Pelo contrário”,
explica.
Ele analisa que, caso a PEC de Cunha seja aprovada, o país retrocederá ao
que era antes da Constituição de 1988, quando o antigo Instituto
Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps), criado
pela ditadura militar, funcionava como uma federação de planos de saúde
das diferentes categorias profissionais, deixando à margem do
atendimento um grande número de cidadãos. “Essa PEC tenta criar um
grande Inamps privado, com planos de saúde cinco estrelas para alguns e
nenhuma atendimento para outros. Isso é retrocesso. O Brasil já virou
essa página”, insiste.
CPI dos Planos de Saúde
Autor do requerimento para a instalação da CPI dos Planos, o deputado Ivan
Valente também critica a postura de Cunha ao apresentar a PEC e operar
para beneficiar os planos privados, ao invés do conjunto da sociedade.
“Está muito claro que Cunha trabalha para ampliar a oferta de saúde
privada, enquanto o que o país precisa é fortalecer o SUS. Nós vamos
entrar com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF)
para viabilizar a CPI dos Planos de Saúde que ele engavetou”, afirma.
Valente lembra que ingressou com a CPI dos Planos no segundo dia deste período
legislativo, antes mesmo da entrada da CPI da Petrobrás, já instalada
com o objetivo explícito de desgastar o governo e está em pleno
funcionamento. Cunha, entretanto, afirmou que a CPI dos Planos não tinha
foco, desconsiderando o parecer da consultoria legislativa da própria
casa, que falava que todos os requistos para instalação estavam
contemplados.
“Quando nós fomos contestar a decisão dele em plenário, dizendo que ela era
política e que o interesse dele na causa era grande, porque tinha
recebido R$ 250 mil da Bradesco Saúde, houve um bate boca e meu
microfone acabou sendo cortado”, lembra o deputado. Agora, ele está
determinado a rever a decisão do presidente no STF.
“Nós vamos entrar no STF com base no parecer da consultoria da Câmara,
levantando a jurisprudência do própria corte que, por meio de uma outra
decisão da ministra Rosa Weber, prevê que a CPI, tendo foco, é um
direito inalienável das minorias e, como tal, deve ser instalada”,
esclarece.
Reforma política já
Para Valente, a negativa de Cunha de instalar a CPI dos Planos, somada à sua
atuação parlamentar em defesa do setor, mostra o quanto o financiamento
de campanha determina os rumos das discussões das políticas públicas no
Brasil. “Precisamos denunciar a que interesses ele atende ao tomar esse
tipo de medida, que só fortalece a necessidade de uma reforma política
que acabe com o financiamento privado de campanha”, aponta o deputado.
Odorico Monteiro, que também defende o financiamento público exclusivo das
campanhas políticas, ressalta que é lamentável que as discussões de
políticas públicas no país se deem sempre sob a tutela dos grandes
grupos econômicos. “Acabar com o financiamento privado das campanhas
eleitorais é outra página que precisamos virar na história deste país”,
defende.
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