Entrevista com o antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas, realizada pela jornalista venezuelana María Fernando Barreto | Tradução e apresentação: Ricardo Cavalcanti-Schiel
Do site Outras Palavras
Em fevereiro de 2013, o reconhecido antropólogo Marshall Sahlins renunciou
à sua cadeira na Academia Nacional de Ciências (NAS) dos Estados
Unidos, e um dos motivos era seu protesto contra a instrumentalização,
pelos interesses das Forças Armadas norte-americanas, das pesquisas em
ciências sociais fomentadas por aquela eminente instituição.Esse contexto vinha sendo produzido nos Estados Unidos, com mais intensidade e sistematicidade, há alguns anos. Seus precedentes distantes remontam à colaboração de um grupo de profissionais, liderado pelas antropólogas Margaret Mead e Ruth Benedict, no esforço de guerra do Pacífico, durante o segundo grande conflito mundial, para “conhecer o inimigo”. Um dos clássicos da antropologia, o livro O crisântemo e a espada (daquela última autora), uma análise sobre a sociedade japonesa, foi produzido nesse contexto. E há quem repute a manutenção do imperador Hirohito no trono do Japão após a guerra aos conselhos desses assessores.
Os “area studies” (estudos regionais) na academia norte-americana, marcadamente a partir da Segunda Grande Guerra, acompanharam os movimentos e inflexões da política externa e da geopolítica dos Estados Unidos, recebendo financiamentos diretos, ora do Departamento de Estado ora do Departamento de Defesa. Foi com o patrocínio direto do Departamento de Estado norte-americano, por exemplo, que se publicaram, após a guerra, os volumes de um portentoso balanço analítico sobre os índios da América do Sul, o Handbook of South American Indians, que lançou um novo paradigma interpretativo sobre a paisagem etnológica do continente, que, como visão de conjunto, persiste até hoje, eclipsando a agenda intelectual anterior dos pesquisadores europeus, que vinha, até então, conquistando espaço entre os estudiosos locais. Quando, no Brasil, a Companhia Editora Nacional publica em 1942, pela coleção Brasiliana, a tradução de Sérgio Buarque de Holanda da suma etnológica alemã sobre o subcontinente (Ethnologia Sul-Americana), estava já dando à luz um natimorto.
No entanto, o vínculo direto e aplicado entre conhecimento sociológico (ou antropológico) sobre outras sociedades e táticas militares vinha sendo, até recentemente, objeto de escrúpulos severos por parte do meio acadêmico norte-americano, como o demonstrara, na metade dos anos 60, o escândalo produzido pelo Projeto Camelot, patrocinado pelo Exército dos Estados Unidos e voltado particularmente para o cenário social da América Latina.
O Projeto Camelot iniciou-se no Chile e, tal como hoje ocorre com a agenda do “neoliberalismo progressista” (como o chamou Nancy Fraser) ― qual seja, a da política de identidades, que caracteriza o multiculturalismo ―, ele se valeu de fundações norte-americanas para arregimentar cerca de 140 sociólogos chilenos, a maioria deles de esquerda, sem que soubessem quais eram os verdadeiros fins do programa.
E é exatamente nesse ambiente ideológico e sobre os rastros dos objetivos desse último projeto que se chega à atual conformação dos interesses militares norte-americanos pela instrumentalização das ciências sociais, consumando um percurso que o historiador argentino Juan Alberto Bozza sintetizou na expressão “do anticomunismo à contrainsurgência”.
O veterano antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas durante uma década investigou o ambiente institucional da Minerva Research Iniciative, do Pentágono, a partir da produção do Manual de Contrainsurgência do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, lançado em dezembro de 2006. Sobre esse manual, o general de brigada brasileiro da reserva Álvaro de Souza Pinheiro ― que, como capitão, participou da repressão militar à guerrilha do Araguaia e, mais recentemente, se recusou a colaborar com a Comissão Nacional da Verdade ― afirmou ser “o documento doutrinário de contra-insurreição mais bem elaborado que o mundo ocidental já viu até os dias de hoje”.
Há dez anos, os esforços das forças armadas dos Estados Unidos para cooptar acadêmicos, em especial antropólogos, para pesquisa e ação sob a rubrica da contrainsurgência, produziu, como reflexo, o que alguns analistas (não se sabe se por ironia ou a sério) chamam de “cultural turn” (“giro cultural”) no âmbito da doutrina militar norte-americana. (Ricardo Cavalcanti-Schiel)
Eu gostaria de lhe pedir que nos explicasse, em termos gerais, o que é a Iniciativa Minerva, que perigo representa para a resistência latino-americana neste momento geopolítico e se você acredita que ela possa lançar seus tentáculos sobre a Venezuela a partir de outros países.
Bom, ao longo de todos esses anos como articulista do jornal La Jornada, pus-me a ler uma série documentos dos militares norte-americanos, e acabei esbarrando, em particular, com os manuais de contrainsurgência disponíveis desde os anos 2006-2007. Meu interesse se centrava de forma especial no uso das ciências sociais nas operações de contrainsurgência. É daí que vem o interesse por ver o envolvimento, não só das ciências sociais como também das universidades dos Estados Unidos e da América Latina, a cumplicidade com esse envolvimento da academia norte-americana, nos esforços contrainsurgentes. Isso me levou a estudar a fundo um programa que desenvolve uma antropóloga chamada Montgomery McFate.
É a “antropologia militar”, que você menciona nos seus artigos?
Correto, a “antropologia militar”, que é denunciada pelos seus pares na “triple A” (American Anthropological Association)... por conta da qual começo a ler diretamente os manuais de contrainsurgência. Montgomery McFate vende ao Secretário de Defesa [Robert] Gates a ideia de que a antropologia poderia ser tão efetiva quanto a artilharia [uma ideia que ela propagandeara no artigo “The military utility of understanding adversary culture” (“A utilidade militar de se entender a cultura adversária”), para a revista de divulgação Joint Force Quarterly, da National Defense University]. Estou lhe falando do ano de 2006. E então inicia-se o programa em que se dá esse envolvimento direto na guerra, no Iraque e, logo em seguida, no Afeganistão. Assim, Montgomery McFate prepara as “equipes humanas no terreno” (uma tradução direta do inglês [human terrain teams, veja-se também seu handbook vazado pelo Wikileaks]), onde a ideia é dotar os militares de olhos e ouvidos culturais, que ajudem as operações no terreno. Isso faz com que as 26 brigadas de combate no Iraque e as brigadas de combate no Afeganistão contem com essas equipes de “operadores culturais” a serviço dos militares e seus comandantes no próprio terreno. Então, o que há é um envolvimento direto e isso tudo se estabelece como nova doutrina militar, que passa rapidamente às demais escolas militares na América Latina.
Isso me levou a pesquisar de que maneira as universidades dos Estados Unidos estariam envolvidas nesse “esforço”. O mais famoso dos manuais foi coordenado por [David] Petraeus (esse general que foi defenestrado por conta de um caso extraconjugal com a sua biógrafa, mas não por crimes de guerra). Foi ele que escreveu o prólogo do Manual de Contrainsurgência. Esse manual tornou-se muito famoso, a ponto de que ―cito no livro― um general brasileiro afirmou que é o melhor que já existiu, no que se refere a contrainsurgência. E isso me levou à Iniciativa Minerva, que é diferente do Plano Minerva [de formação de pessoal], que foi implementado pelo exército da Colômbia.
A Iniciativa Minerva é um consórcio dos militares para premiar, digamos assim, 12 ou 15 projetos anualmente, com fundos que vêm diretamente do Pentágono. São apoiados projetos de interesse dos militares, e, entre eles, se outorgou uma bolsa, por exemplo, a Montgomery McFate para que escrevesse um livro sobre “antropologia militar” [com lançamento anunciado para este ano pela Editora da Universidade de Oxford]. A Minerva Iniciative tem uma página web que pode ser consultada, e na qual se oferecem apoios financeiros de até 3 milhões de dólares para a pesquisa de temas que os militares demandam em seus esforços de domínio mundial. Então, depois de alguns anos publicando artigos no La Jornada, decidi juntar todo o material para fazer meu livro Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos. Manuales, mentalidades y uso de la antropología.
Você é antropólogo de profissão?
Sim, sou antropólogo. No decorrer dos quase 11 anos que venho estudando isso, me deparei com o fato de que não somente os antropólogos estavam envolvidos na guerra de contrainsurgência, como também que, paralelamente ao uso de antropólogos na guerra direta no Iraque, se financiou também, através da Iniciativa Minerva, a pesquisa de um grupo de geógrafos da Universidade do Kansas. Esses geógrafos jogaram um papel muito importante no que se chamou de Expedições Bowman [no México, Colômbia e América Central ― elas visavam recopilar informações para a base de dados do Sistema de Terreno Humano ou, em inglês, Human Terrain System (HTS) (para uma versão em espanhol do verbete deste último link veja-se: aqui)]. É importante lembrar delas, porque elas surgem paralelamente ao uso dos antropólogos nas guerras do Iraque e do Afeganistão. As Expedições Bowman partem daquilo que os geógrafos chamam de cartografia participativa, e assim se introduzem diretamente nos territórios indígenas. É o estudo geográfico-antropológico-político das regiões que o Pentágono crê que possam se constituir como um inimigo à segurança nacional dos Estados Unidos.
Em várias reuniões dos grupos de inteligência, como as que produzem documentos denominados “Tendências globais”, que podem ser consultados, assegurou-se que os movimentos “indigenistas” são um inimigo a se combater. Em um hotel muito luxuoso, reúnem-se especialistas em inteligência, que publicam periodicamente as “tendências globais”, ou, traduzindo, ameaças ao sistema capitalista norte-americano, tomadas em termos de segurança nacional. E eles formulam as tais tendências globais para 2005, 2010, 2015, 2020, etc. Numa dessas reuniões se concluiu que os povos indígenas eram uma ameaça para a segurança dos Estados Unidos.
Por que consideram que os povos indígenas são uma ameaça à sua segurança?
Porque segundo os militares e os especialistas, as tendências coletivizantes dos povos indígenas os fazem lutar contra as corporações de origem diversa, como também as de origem norte-americana ou transnacional e, portanto, se convertem em uma ameaça, por meio de seus movimentos considerados “nativistas”.
Você vem denunciando essas coisas e, se bem me lembro, você mencionou intelectuais norte-americanos que também o denunciaram. É isso?
Sim. Os geógrafos Joe Bryan e Denis Wood publicaram Weaponizing maps. Indigenous Peoples and Counterinsurgency in the Americas, obra que está sendo traduzida para o espanhol para ser editada. Também há outro livro, Weaponizing anthropology, de um antropólogo chamado David Price, que denunciou esse uso mercenário da antropologia. Não enveredei no campo da psicologia, mas também existe a acusação ― e a aceitação tácita pela American Psychological Association ― de participação profissional na “assessoria” de efetivas sessões de tortura da CIA para a obtenção de confissões rápidas.
Entre as denúncias que você faz sobre a Iniciativa Minerva está o programa México Indígena. Em que consistiu esse programa?
México é o primeiro lugar onde os geógrafos das Expedições Bowman fizeram trabalho de campo, e esse projeto foi denominado México Indígena.
Essas expedições vão depois a Costa Rica e Colômbia?
Na Colômbia quem esteve foi Geoffrey Demarest, que é o intelectual militar e recentemente titulado doutor em geografia, obviamente, pela Universidade do Kansas (UK). Essa cidade é o lugar estratégico para estudar aqueles que nos estudam, porque aí está situado o Instituto de Estudos Estratégicos Estrangeiros, ou seja, o instituto de inteligência militar que o Pentágono possui para nos estudar. Então, a UK e esse Instituto são irmãos siameses, ajudam-se mutuamente. Kansas é também o centro de uma grande atividade econômica e origem de uma linha férrea que supre a rota para o Canal do Panamá e para o eventual canal da Nicarágua, como também comunica diretamente com o porto de Lázaro Cárdenas [costa do Pacífico do Estado de Michoacán, México], que é um porto de 80 metros de profundidade, de onde saem as mercadorias do leste e do oeste dos Estados Unidos pela rota que chamam de “Kansas-Xangai”. Esse entroncamento é também a causa da guerra entre cartéis de droga pelo controle de Michoacán, porque é o lugar das saídas estratégicas de aço, madeira fina e demais produtos para a China, e por onde chegam da China os produtos para fabricação de drogas sintéticas nos Estados Unidos. Há, portanto, uma conexão aí ― pode-se dizer ― com o espaço geográfico da UK e, em especial, com esses geógrafos. Um se chama Jerome Dobson; o outro, Peter Herlihy; além de Geoffrey Demarest: os três cavaleiros do apocalipse...
Algum desses diretores de pesquisa da Iniciativa Minerva é militar de profissão?
Demarest. É um tenente-coronel que escreveu um livro sobre contrainsurgência na Colômbia.
Quando escreveu esse manual de contrainsurgência?
Há algum tempo, depois de ter feito trabalho de campo na Colômbia. Sua hipótese é bastante singela e, até certo ponto, estúpida, mas é a que ele esgrime como sua “grande contribuição” aos estudos de contrainsurgência. E é a de que “a propriedade coletiva da terra é a matriz da criminalidade e da insurgência”. Ele vendeu isso para os militares e, em paralelo, os militares descobriram que os indígenas são uma ameaça, porque além de defender seu território, podem se unir a outros “subversivos” como os Sem Terra (MST) e os zapatistas, criando uma situação adversa para os interesses estratégicos dos Estados Unidos.
Também se dizem coisas ao revés, como por exemplo, de que há planos dos Estados Unidos para apoiar certas lutas para que as terras de nações latino-americanas, particularmente na Amazônia, uma vez entregues às comunidades indígenas, sejam por elas entregues à administração por organismos internacionais.
Sim, isso se diz, mas isso não é essa necessariamente a posição dos militares norte-americanos. Há algumas manifestações nesse sentido, mas isso não chega a constituir doutrina militar, tal como a que analisamos nos manuais de contrainsurgência ou nos documentos da Minerva ou mesmo no papel desempenhado pelas Expedições Bowman, que se acreditam... salvadores dos indígenas.
Mesmo porque, essas metodologias participativas estão na moda, soam amigáveis...
Completamente. E aí colocam anúncios em jornais de Honduras chamando jovens indígenas que conheçam a língua nativa, para que trabalhem com eles. Ensinam-lhes a usar equipamentos como GPS, para fazer os mapas participativos, lhes oferecem viagens a Kansas, naturalmente, e assim vão cooptando setores de variados povos indígenas, e vão penetrando nas comunidades.
A quais outros países da América Latina foram essas expedições?
Estabeleceram-se no México em 2007. Os dirigentes de povos indígenas de Oaxaca os denunciaram e eu reverberei isso no La Jornada. Saíram do México e um professor da Universidade Nacional Pedagógica Francisco Morazán, de Honduras, escreveu-me dizendo que haviam chegado a Honduras. Depois que denunciei sua entrada em Honduras, estudantes da Universidade da Costa Rica me escreveram dizendo que lá estava Peter Herlihy, como relações públicas das Expedições Bowman. Há uma distribuição de tarefas. Dobson ocupou a presidência da sociedade de geógrafos dos Estados Unidos, é um cara influente nas relações públicas do âmbito acadêmico. Peter Herlihy é como que o secretário executivo das Expedições Bowman, e se encarrega de estabelecer relações com as universidades locais. E Demarest é o militar contrainsurgente e ideólogo do grupo, o contato com o Instituto de Estudos Estrangeiros sediado em Kansas. Assim, forma-se uma relação estreita entre a academia, contrainsurgência, geógrafos e antropólogos. Para ter uma ideia do alcance e do peso desses entroncamentos, a editora de uma universidade prestigiosa como a Universidade de Chicago publicou uma edição especial do Manual de Contrainsurgência, para que os soldados pudessem carregá-lo para o terreno em uma jaqueta como a que estou vestindo agora.
Que manual de contrainsurgência é esse?
É o Manual 3-24 do Exército dos Estados Unidos, que pode ser lido na Internet. É um tijolo. A novidade desse manual, em particular, é sua ideia sobre o papel da antropologia. Trata-se de um documento institucional, numerado. No meu livro eu transcrevi as críticas do colega David Price a ele. Também repasso outros três ou quatro manuais e documentos a que tive acesso pelo Wikileaks. Quando comecei a escrever sobre o tema, colegas meus, cujo nome não revelo, começaram a me mandar documentos a que eles, como americanos, tinham acesso.
Qual a imagem transmitida por esses manuais? Pragmáticos e simplificadores?
Exatamente. E não se pode dizer que funcionem. São um péssimo exemplo de antropologia simplificada.
No meu livro, busco introduzir o conceito de “terrorismo global de Estado”. Creio que no estado atual da globalização capitalista, no que respeita a sua dimensão estritamente militar, o que se põe em prática é um terrorismo global de Estado, que é reapropriado pelos países subalternos, como Colômbia e México, que aplicam esse mesmo terrorismo de Estado no âmbito interno. Só que o grande hegemon dessa nova aplicação cultural da contrainsurgência, da sua aplicação à geografia e à psicologia são os Estados Unidos, que a conduzem sobre as nações hospedeiras.
O que são essas nações hospedeiras?
Pode ser a Colômbia, por exemplo, ao pedir aos Estados Unidos que controle sua insurgência interna. E então, “fraternalmente”, essa nação permite que as forças especiais intervenham.
Colocando sete ou mais bases militares, por exemplo?
Exato. Colocando bases militares, instrutores militares, doutrinas militares… aumentando a simbiose entre forças militares e de inteligência entre países subalternos e os Estados Unidos. E aqui entram as outras onze agências de inteligência, porque é hábito falar da CIA; mas o Exército tem uma; a Marinha tem outra; a Força Aérea, outra; além da DEA [Drug Enforcement Administration]... ao total são doze agências de inteligência, congregadas no Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos.
Voltando a Minerva, de que temas trata o programa? Por exemplo, a linguística faz parte?
Não, a linguística não. Houve uma reunião nos dias 11 e 12 de setembro de 2013 na Universidade da Califórnia, com o Comitê Diretor da Iniciativa Minerva, que incluiu o Subsecretário para Estratégia do Departamento de Defesa, Daniel Chiu, e o Coordenador do Conselho Nacional de Inteligência (que congrega todas as agências), e os temas que eles trataram foram: dinâmica estrutural das organizações violentas; liderança e sucessão em regimes autocráticos; insurgências e espaços ingovernáveis na África Ocidental ― aproveito para notar que 90% das nações africanas têm forças especiais dos Estados Unidos―; tecnologia, poder e segurança na China; mobilização para a mudança; quem se torna terrorista; energia e estabilidade; mudança climática e acesso aos recursos de segurança; e projeção de poder no mundo globalizado.
A Iniciativa Minerva é um programa do Pentágono fundado por Robert Gates em 2008, que administra um consórcio que recebeu, para começar, 50 milhões de dólares, fundo que, com o passar dos anos, foi sendo incrementando, e cujo destino são os acadêmicos das universidades norte-americanas, além dos especialistas de outros centros, para que trabalhem como analistas de temas que tenham incidência sobre as políticas de Estado e segurança nacional.
Existem denuncias de que, por exemplo, o Facebook teria colaborado com pesquisas no âmbito da Iniciativa Minerva [o pesquisador da Universidade de Cornell, Jeffrey T. Hancock, que participou do famoso experimento do Facebook sobre “contágio emocional”, foi um dos favorecidos com recursos da Iniciativa Minerva]. Isso é possível?
Pode ser que Minerva tenha dado dinheiro para essa pesquisa. Pelas denúncias feitas sobre o Programa Pegasus, a respeito das redes manipuladas pelos governos para fins de vigilância, eu poderia até lhe assegurar que a espionagem em nossos computadores e celulares é permanente.
E isso está em sintonia com o que Minerva se propõe, não?
Exato. É bastante provável. Mas sempre se deve fazer o que os jornalistas do caso Watergate recomendaram: “follow the money!”. O que aconteceu comigo é que, quando segui o dinheiro, cheguei a Minerva. No que diz respeito a questões de inteligência, não há casualidades. Nesse caso, há um projeto geoestratégico de controle do mundo através das academias. E aqui é preciso denunciar a cumplicidade das universidades latino-americanas. Há casos como o de intelectuais destacados que assinaram manifestações contundentes contra a Venezuela, encabeçados por Boaventura de Sousa Santos, que achou por bem se retratar mais recentemente em um artigo intitulado “Em defesa da Venezuela”. Todo mundo pode cometer um erro. Mas o problema, e disso trata [Néstor] Kohan no seu livro Marx y la Teoría Crítica Latinoamericana, é que a academia norte-americana tem consideráveis ramificações nas universidades da América Latina. Assim, as publicações, as bolsas, os congressos… se alguém da academia se põe a investigar certas coisas, seguramente não vai mais receber bolsas, vistos para viajar ao paraíso, nada disso.
O Projeto Camelot foi denunciado no seu devido momento por [Roberto] Fernández Retamar. O rastreio que Kohan fez sobre esse projeto o situa na Argentina, Chile…
México.
E também na Venezuela. Você acredita numa continuidade entre projetos como esse e a Iniciativa Minerva?
Veja bem, o envolvimento mais sistemático dos cientistas sociais surge na Segunda Guerra Mundial. A primeira agência de inteligência contemporânea se chamava Escritório de Serviços Estratégicos, e nela se envolvem duas renomadas antropólogas chamadas Margaret Mead e Ruth Benedict. Era época da luta contra o fascismo e, assim, foi uma entrada politicamente bem vista. Mas esse não deixa de ser o primeiro envolvimento do período contemporâneo. A Agência Central de Inteligência surge em 1947, e arrola toda a doutrina da guerra fria. Minha hipótese é que a ligação com a academia, na verdade, jamais se rompeu, da Segunda Guerra até hoje.
Além disso tem a Fundação Ford e a Rockefeller, não?
Evidentemente, a Ford e a Rockefeller, mas também há outras corporações que nomeio no meu livro, e que recrutam agentes nas universidades para os serviços de inteligência. Eu dei aulas nos Estados Unidos por dois anos e era comum que chegasse ao campus a Agência Central de Inteligência para recrutar estudantes. Ela se interessava por aqueles que falavam outros idiomas, por exemplo, e uma das primeiras tarefas que lhes dava a CIA ou o FBI ao recrutá-los era investigar seus próprios professores e colegas de classe. Tornavam-se, ou melhor, tornam-se ―porque isso não é passado― informantes no campus, e assim delatam professores que ensinam a partir de uma perspectiva marxista, por exemplo.
Você acredita possível que a Iniciativa Minerva esteja diretamente envolvida com o que está acontecendo na Venezuela agora?
Não acredito. Eu estou completamente seguro disso. Veja bem, Bush conseguiu que em 75 países do mundo operassem forças especiais. Obama duplicou esse número. [Tudo isso sob a lógica da contrainsurgência]. A imagem da CIA como única agência de ingerência acabou nos fazendo esquecer do resto das agências de inteligência e das que operam sobre o terreno, que são aquelas das forças armadas. A estrutura militar e de inteligência norte-americana é muito mais ampla que a CIA. Ela é não mais que uma parte ― e eu diria até minúscula ― da grande máquina que atua sobre nossos países.
No meu último artigo, considero a hipótese de que uma intervenção militar norte-americana na Venezuela não será direta, mas faria uso da Colômbia. Qual a sua opinião sobre isso?
Veja bem, há dois traumas que parecem presentes na doutrina militar norte-americana e que podem ser vislumbrados nos manuais. Um é a derrota no Vietnam, e o outro é a derrota relativa no Iraque. A única coisa que a invasão desse último país, que não tinha armas de destruição em massa, conseguiu foi sua completa destruição e a imposição de um governo fantoche, a troco das mortes americanas, mais os feridos e os afetados mentalmente. Então, a tendência dos manuais é a de propugnar pela ação de exércitos por procuração, para buscar alguém que se encarregue das tarefas que os garotos americanos não podem fazer ― mesmo que quase sempre estejam aí os pobres, latinos e negros. Então há uma tendência a buscar não envolver tropas americanas, e assim eles parecem apostar nas forças locais e seus sucedâneos, como no caso do paramilitarismo colombiano. No meu livro sustento a hipótese de que há duas maneiras de intervir militarmente em um país. Uma é por meio da intervenção direta, colonial, como no Iraque ou Afeganistão; e a outra é por meio da intervenção indireta, neocolonial, através da “guerra contra o narcotráfico e o terrorismo”. O México e a Colômbia são exemplos desse segundo caso. Os Estados Unidos não precisam de tropas no México porque já têm dois braços convenientemente armados: o crime organizado, por um lado, e as forças armadas mexicanas, cada vez mais a seu serviço e a serviço do mundo corporativo.
O mesmo poderia acontecer com o uso das forças militares colombianas agindo na Venezuela?
Exatamente. De fato, acontecimentos como o de Sucumbíos e vários outros incidentes fronteiriços, que Chávez resolveu de maneira bastante inteligente, têm a ver com a ideia de usar a Colômbia como força de intervenção. Essa, para mim, é a possibilidade mais próxima: a do não emprego de forças dos Estados Unidos e do não envolvimento direto. A doutrina militar norte-americana, que seus manuais fazem transparecer, se baseia antes de tudo nas nações hospedeiras, que levam a efeito o trabalho sujo.
A partir da sua perspectiva geopolítica, o que está realmente em jogo na Venezuela hoje? É tão apenas o seu destino ou de algo maior para a América Latina?
Guardando as devidas distâncias e os resultados do que já aconteceu, a Venezuela é para nós hoje como a Espanha de 1936. Quer dizer, mesmo que a Espanha tenha sido derrotada, demonstrou que a luta contra o fascismo era possível. A resistência antifascista e o Exército Vermelho finalmente derrotaram o fascismo. Não foi o desembarque da Normandia ou alguma das outras histórias que Hollywood conta. A derrota dos fascistas se deveu à experiência espanhola. A Espanha acabou legando ao mundo a ideia de que a luta antifascista era possível. Hoje estamos diante do fascismo do século XXI, esse terrorismo global de Estado, essa Iniciativa Minerva, esses intelectuais a serviço do império. Venezuela é a Espanha de 36. Por isso, não se trata de apoiar a Venezuela por ela mesma, mas por todos os povos da Nossa América. É isso sobre o quê uma certa esquerda, sobretudo venezuelana, intelectualizada, acadêmica, extrativista, está confusa e não entendeu.
Confusa? Ou se poderia buscar algo mais na atitude de alguns intelectuais?
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