No Brasil, não é a corrupção, mas a necessidade de destruir um projeto estratégico que sonhava com modificar a relação de forças sem se arriscar a combater
Raúl Zibechi *, para El Clarín.cl.. Transcrito na Carta Maior.
O projeto Brasil Potência tem uma história longa, que começa talvez lá pelos Anos 50, durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). Na carta-testamento deixada antes do seu suicídio, Vargas sugere que estava sendo acossado por pressões de Washington, e que o norte não aceitava, entre outras, sua opção por um desenvolvimento autônomo da área nuclear. “Lutei contra a espoliação do Brasil”, dizia o escrito de 24 de agosto de 1954.
Anos depois, em 1959, o então presidente desenvolvimentista Juscelino Kubitschek (1956-1960) denunciou no FMI que os inimigos do Brasil independente tentavam forçar uma capitulação nacional, com o objetivo de fazer a indústria cair em mãos estrangeiras, segundo afirma Alberto Moniz Bandeira em sua obra Presença dos Estados Unidos no Brasil.
Na década seguinte, as ambições dos militares brasileiros, que governavam através da ditadura instaurada em 1964, foram plasmadas pelo general e especialista geopolítico Golbery do Couto e Silva. O militar escreveu uma obra decisiva (Geopolítica do Brasil) onde desenha o papel do seu país na região: aliança com Washington contra o comunismo, expansão interna em direção à Amazônia e externa em direção ao Pacífico, para cumprir com seu próprio destino manifesto.
Golbery defendia a ideia de que o Brasil deveria se engrandecer, ou pereceria. Essa política foi a bússola do principal think tank do Sul, a Escola Superior de Guerra (ESG), onde se formaram os maiores quadros da burguesia brasileira. Entre eles o próprio Marcelo Odebrecht, que há pouco mais de seis anos, em texto publicado pela revista da Associação de Graduados da ESG, agradecia a vocação e o compromisso das Forças Armadas na formação de líderes públicos e privados, ao mesmo tempo que destacava como suas doutrinas contribuem efetivamente com o desenvolvimento nacional.
Não é coincidência o fato de as grandes empresas brasileiras (Camargo Corrêa, Odebrecht, Gerdau, Votorantim, Andrade Gutierrez, entre outras) terem crescido debaixo das asas da ditadura militar, realizadora das grandes obras daquele período entre 1964 e 1985.
O principal projeto atômico do Brasil, o Programa Nuclear da Marinha, foi criado em 1979 e em apenas uma década conseguiu dominar o ciclo completo de enriquecimento de urânio com centrífugas desenvolvidas no país. A reação de Washington foi tão dura como a que propiciou a ofensiva contra Vargas nos Anos 50. O país foi colocado numa lista negra para impedir a importação de materiais para o seu programa nuclear.
O vice-almirante Othon era o principal gestor do programa, razão pela qual foi monitorado por agentes da CIA durante vários anos, segundo meios próximos aos militares. Seu prestígio era tão grande que obteve oito medalhas militares. Em 2015, foi preso pela Operação Lava Jato, acusado de corrupção e desvio de fundos através de seu cargo como diretor da estatal Eletronuclear, que constrói e opera as usinas nucleares.
O programa nuclear foi reativado sob o governo de Lula, após uma longa interrupção durante a década privatizadora. Em 2008, foram descobertos os enormes jazimentos de petróleo chamados Pré-Sal, que levaram o governo a estabelecer um acordo com a França para construir o primeiro submarino nuclear, destinado a resguardar a zona chamada Amazônia Azul (costa atlântica), de onde provém 90% da produção petrolífera brasileira
Odebrecht foi a empresa designada por Lula, sem licitação, para construir o estaleiro e uma base naval para os submarinos, na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro. A confiança de Lula na empresa se deve à extensa relação entre a família Odebrecht e o dirigente do PT, que se iniciou no final da ditadura, quando o líder sindical despontava como figura nacional.
Marcelo era o CEO da multinacional privada mais poderosa do país país, a mesma que estava destinada a cumprir os sonhos de uma defesa independente de Washington, quando foi preso, oito semanas depois do vice-almirante Othon. O empresário foi condenado a 19 anos, embora tenha negociado uma delação premiada para reduzir sua pena. Othon recebeu uma sentença mais dura que qualquer um dos 144 castigados pela Lava Jato: 43 anos de cadeia.
Durante os dois governos de Lula (2003-2010), o Brasil consolidou as bases da integração regional através da criação da Unasul (União de Nações Sul-americanas) e da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), entidades que se destacaram pela ausência dos Estados Unidos, além de investir em sua participação do bloco BRICS, junto com Rússia, China, Índia e África do Sul. Ademais, realizou enormes obras de infraestrutura, algumas baseadas na mesma visão estratégica dos governos militares – como a represa de Belo Monte – e potenciou a renovação das Forças Armadas como nenhum outro governo havia feito antes.
As três biografias (de Lula, Othon e Odebrecht) têm um ponto em comum: desde os seus distintos mundos, essas três pessoas participaram e ajudaram a impulsar um projeto próprio para fazer do Brasil uma grande potência, e era inevitável que isso terminaria molestando os Estados Unidos. Subestimaram o império provavelmente por confiar na democracia.
Os grandes empresários costumam ser corruptos, do contrário não chegariam a acumular tanta riqueza. Os militares são o pior aparato do Estado e sobre isso cabe pouca discussão, salvo para aqueles que sonham com milicos democráticos ou socialistas.
Não creio que nenhum presidente, em nenhuma parte do mundo, seja completamente inocente, pois por algo chegam ao lugar que chegaram. É possível ser corrupto roubando ou simplesmente fazendo promessas que sabem que nunca serão cumpridas.
No caso do Brasil, a questão não é a corrupção, mas sim a necessidade de destruir um projeto de grande potencial estratégico, que sonhava com modificar a relação geopolítica de forças sem se arriscar a combater.
* Jornalista uruguaio, especializado em temas ligados aos movimentos sociais da América Latina.
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