sexta-feira, 21 de julho de 2017

Memórias de Marco Aurélio Garcia, uma inesgotável fonte de informações






CLÓVIS ROSSI | COLUNISTA DA FOLHA
Folha.com.br – quinta-feira, 20/07/2017  18h48
Sempre que precisava de informações sobre política externa brasileira e/ou sobre o que estava acontecendo nas vizinhanças, telefonava para Marco Aurélio Garcia e brincava: “Aqui é da mídia golpista. Vamos conversar?”
E conversávamos, porque Marco Aurélio tinha não apenas informações, uma preciosidade para jornalistas, mas também inexcedível bom humor. Às vezes, nos perdíamos em brincadeiras ou sobre o Internacional, seu time, e o Palmeiras, o meu, ou sobre a “mídia golpista” e o “governo fracassado”.
Gosto de gente que não faz pose, que não se leva demasiado a sério, mas que leva muito a sério o seu trabalho. Marco Aurélio era assim. Conheci-o muito antes de que Luiz Inácio Lula da Silva fosse uma perspectiva de governo. Foi em 1992, em um seminário na Espanha.
Daí em diante, mantivemos contato quase permanente e eu lucrei sempre na troca de ideias, porque recebia informações – do que vivemos os jornalistas – e ele ganhava em troca farpas sobre o governo Lula.
Cito um exemplo concreto: em 2006, o presidente boliviano Evo Morales desembarcou em Viena para uma cúpula União Europeia/América Latina disparando criticas à Petrobras, acusada de contrabandista, e ao governo Lula, cujos colaboradores teriam “bloqueado” as tentativas de Morales de se comunicar com Lula antes da nacionalização do gás, no dia 1º de maio daquele ano.
Quando Lula chegou, Marco Aurélio me puxou para um canto e me deu todas as informações de bastidores sobre as negociações Brasil/Bolívia, em torno do gás, muito mais complicadas do que a capitulação de Lula ante o “companheiro” Evo, versão que acabou predominando.
No dia seguinte, Lula, ao sair do hotel, parou diante do bando de jornalistas que o aguardam sempre que se movimenta e me disse: “Sua matéria está corretíssima. Quem foi sua fonte?”.
Respondi, na lata: “Você sabe que foi você mesmo, Lula. Não adianta disfarçar diante dos colegas”.
Era uma maneira de dizer que Marco Aurélio falava por Lula, era a alma da política externa brasileira do período, ao lado, sempre, do chanceler Celso Amorim.
O paradoxal é que essa política foi muito criticada por ser supostamente anti-americana, o que é completo erro de enfoque. Aliás, um interlocutor frequente de Marco Aurélio no governo dos Estados Unidos foi o general Jim Jones, assessor de Segurança Nacional durante boa parte do governo George Walker Bush.
Essa interlocução ajudou para que o relacionamento com os Estados Unidos, no governo Lula, se tornasse o melhor de todos os tempos, depois de ter sido já bastante incrementado na gestão de Fernando Henrique Cardoso.
Uma vez comentei com Marco Aurélio que achava estranho que um intelectual de esquerda brasileiro se relacionasse tão bem com um general norte-americano, conservador por formação, ainda por cima em posto chave em um governo de direita.
O então assessor de Lula deu uma aula de pragmatismo e de sentido comum: disse algo como “nem o Brasil, em qualquer governo, pode ter más relações com Washington nem Washington pode desprezar o Brasil, qualquer que seja o seu governo”.
O resultado dessa avaliação ultra-realista viu-se em dois momentos do relacionamento entre presidentes americanos e o chefe de Marco Aurélio: primeiro, o então primeiro-ministro português Durão Barroso me contou em Lisboa que, em encontro que tivera com Bush, o mandatário americano lhe dissera sobre Lula: “Ele é de esquerda, mas é meu amigo” (Marco Aurélio já havia me contado essa história, mas só me animei a publicá-la quando a ouvi da boca de Barroso).
Depois, foi o famoso episódio de um G20 em Londres em que Barack Obama chamou Lula de “o cara”.
Outro exemplo de bom senso: em dezembro de 2002, às vésperas da posse de Lula, Marco Aurélio foi enviado a Caracas para ver como podia ajudar em uma crise provocada por uma greve da PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana, a galinha dos ovos de ouro do país.
A missão resultou na criação de um grupo de amigos da Venezuela, que incluía, sim, os Estados Unidos, que ainda não eram o demônio preferido de Hugo Chávez.
O grupo foi instrumental para desarmar uma crise que tinha ingredientes para desaguar em um confronto não muito diferente do que está ocorrendo agora na Venezuela.
A propósito: os únicos momentos em que Marco Aurélio desconversava era quando eu criticava governos de seus amigos de esquerda na América Latina.
Por falar em grupo de amigos, meu último contato com ele ainda no governo (agora, no de Dilma Rousseff) foi durante reunião no Itamaraty do grupo de amigos do processo de paz na Colômbia, para cuja seção brasileira ele me convidou.
Creio que ninguém em sã consciência pode ser contra um processo de paz, que foi capaz de pôr fim a um conflito de mais de 50 anos e mais de 200 mil mortos.
São histórias que testemunhei diretamente, não um balanço da política externa do período Lula, que fica para os especialistas. Quanto ao governo Dilma, a melhor demonstração de quanto ela menosprezava as relações internacionais deduzi de uma frase casual de Marco Aurélio, quando nos encontramos durante a visita da então presidente à Índia: “Agora que não tenho muito para fazer, estou lendo bastante”.

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