CLÓVIS ROSSI | COLUNISTA DA FOLHA
Folha.com.br
– quinta-feira, 20/07/2017 18h48
Sempre que
precisava de informações sobre política externa brasileira e/ou sobre o que
estava acontecendo nas vizinhanças, telefonava para Marco Aurélio Garcia e
brincava: “Aqui é da mídia golpista. Vamos conversar?”
E conversávamos,
porque Marco Aurélio tinha não apenas informações, uma preciosidade para
jornalistas, mas também inexcedível bom humor. Às vezes, nos perdíamos em
brincadeiras ou sobre o Internacional, seu time, e o Palmeiras, o meu, ou sobre
a “mídia golpista” e o “governo fracassado”.
Gosto de
gente que não faz pose, que não se leva demasiado a sério, mas que leva muito a
sério o seu trabalho. Marco Aurélio era assim. Conheci-o muito antes de que
Luiz Inácio Lula da Silva fosse uma perspectiva de governo. Foi em 1992, em um
seminário na Espanha.
Daí em
diante, mantivemos contato quase permanente e eu lucrei sempre na troca de
ideias, porque recebia informações – do que vivemos os jornalistas – e ele
ganhava em troca farpas sobre o governo Lula.
Cito um
exemplo concreto: em 2006, o presidente boliviano Evo Morales desembarcou em
Viena para uma cúpula União Europeia/América Latina disparando criticas à
Petrobras, acusada de contrabandista, e ao governo Lula, cujos colaboradores
teriam “bloqueado” as tentativas de Morales de se comunicar com Lula antes da
nacionalização do gás, no dia 1º de maio daquele ano.
Quando Lula
chegou, Marco Aurélio me puxou para um canto e me deu todas as informações de
bastidores sobre as negociações Brasil/Bolívia, em torno do gás, muito mais
complicadas do que a capitulação de Lula ante o “companheiro” Evo, versão que
acabou predominando.
No dia
seguinte, Lula, ao sair do hotel, parou diante do bando de jornalistas que o
aguardam sempre que se movimenta e me disse: “Sua matéria está corretíssima.
Quem foi sua fonte?”.
Respondi, na
lata: “Você sabe que foi você mesmo, Lula. Não adianta disfarçar diante dos
colegas”.
Era uma
maneira de dizer que Marco Aurélio falava por Lula, era a alma da política
externa brasileira do período, ao lado, sempre, do chanceler Celso Amorim.
O paradoxal
é que essa política foi muito criticada por ser supostamente anti-americana, o
que é completo erro de enfoque. Aliás, um interlocutor frequente de Marco
Aurélio no governo dos Estados Unidos foi o general Jim Jones, assessor de
Segurança Nacional durante boa parte do governo George Walker Bush.
Essa
interlocução ajudou para que o relacionamento com os Estados Unidos, no governo
Lula, se tornasse o melhor de todos os tempos, depois de ter sido já bastante
incrementado na gestão de Fernando Henrique Cardoso.
Uma vez
comentei com Marco Aurélio que achava estranho que um intelectual de esquerda
brasileiro se relacionasse tão bem com um general norte-americano, conservador
por formação, ainda por cima em posto chave em um governo de direita.
O então
assessor de Lula deu uma aula de pragmatismo e de sentido comum: disse algo
como “nem o Brasil, em qualquer governo, pode ter más relações com Washington
nem Washington pode desprezar o Brasil, qualquer que seja o seu governo”.
O resultado
dessa avaliação ultra-realista viu-se em dois momentos do relacionamento entre
presidentes americanos e o chefe de Marco Aurélio: primeiro, o então
primeiro-ministro português Durão Barroso me contou em Lisboa que, em encontro
que tivera com Bush, o mandatário americano lhe dissera sobre Lula: “Ele é de
esquerda, mas é meu amigo” (Marco Aurélio já havia me contado essa história,
mas só me animei a publicá-la quando a ouvi da boca de Barroso).
Depois, foi
o famoso episódio de um G20 em Londres em que Barack Obama chamou Lula de “o
cara”.
Outro
exemplo de bom senso: em dezembro de 2002, às vésperas da posse de Lula, Marco
Aurélio foi enviado a Caracas para ver como podia ajudar em uma crise provocada
por uma greve da PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana, a galinha dos ovos
de ouro do país.
A missão
resultou na criação de um grupo de amigos da Venezuela, que incluía, sim, os
Estados Unidos, que ainda não eram o demônio preferido de Hugo Chávez.
O grupo foi
instrumental para desarmar uma crise que tinha ingredientes para desaguar em um
confronto não muito diferente do que está ocorrendo agora na Venezuela.
A propósito:
os únicos momentos em que Marco Aurélio desconversava era quando eu criticava
governos de seus amigos de esquerda na América Latina.
Por falar em
grupo de amigos, meu último contato com ele ainda no governo (agora, no de
Dilma Rousseff) foi durante reunião no Itamaraty do grupo de amigos do processo
de paz na Colômbia, para cuja seção brasileira ele me convidou.
Creio que
ninguém em sã consciência pode ser contra um processo de paz, que foi capaz de
pôr fim a um conflito de mais de 50 anos e mais de 200 mil mortos.
São
histórias que testemunhei diretamente, não um balanço da política externa do
período Lula, que fica para os especialistas. Quanto ao governo Dilma, a melhor
demonstração de quanto ela menosprezava as relações internacionais deduzi de
uma frase casual de Marco Aurélio, quando nos encontramos durante a visita da
então presidente à Índia: “Agora que não tenho muito para fazer, estou lendo
bastante”.
[Extraído de http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/07/1902986-memorias-de-marco-aurelio-garcia-uma-inesgotavel-fonte-de-informacoes.shtml em 20/07/2017]
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