Assim
como não calaram Mandela, Moro não calará um Lula armado de um projeto
arrebatador de futuro
por: Saul Leblon, no site Carta Maior
Em menos de 24 horas, entre a noite
de terça-feira (11/07) e a tarde desta quarta-feira, 12/07, o golpe
jogou a cartada com a qual pretende virar uma página dupla da história
brasileira.
Encerrar a era Vargas e o ciclo Lula.
Estripou
os direitos trabalhistas conquistados e defendidos ao longo de 74 anos,
desde a criação da CLT, por Getúlio, em 1943; ato contínuo, condenou ao
cárcere, por uma década, o maior líder popular brasileiro, Lula, de 71
anos, presidente duas vezes, favorito inconteste nas sondagens
eleitorais para 2018.
Quis
o destino que o conjunto acontecesse na mesma data em que, há 55 anos,
Jango criava o 13º salário para os trabalhadores brasileiros, recebido
com manchetes aterrorizantes pela mídia que dois anos depois festejaria o
golpe de 1964.
A apoteose das últimas horas de certa forma esgota o repertório da ‘progressão’ golpista em 2017.
O da resistência democrática, ao contrário, pode enrijecer.
Longe
de ser o fim, a tentativa conservadora de inocular prostração na
sociedade, poderá inaugurar uma escalada de mobilizações e impor maior
clareza programática no projeto de futuro capaz de unir a frente popular
e arrebatar o país.
A prefiguração do futuro preconizado pelo golpismo é medonha.
Com certa soberba histórica nem se disfarça a pindaíba social reservada à nação brasileira.
A
sofreguidão reflete de certa forma o escaldado retrospecto das oito
vezes em que essa ofensiva foi interrompida, em meio século de luta de
classes.
Em
1954, pelo levante popular após o suicídio de Vargas; em 1961, na
campanha da legalidade pela posse de Jango; em 1984, na luta pelas
Diretas Já! -- derrotada, mas que levou à conquista superior da Carta
Cidadã, de 1988 e, finalmente, nas quatro vitórias presidenciais
sucessivas de Lula e Dilma em 2002, 2006, 2010 e 2014.
Era demais o risco de um novo revés em 2018.
Era demais o risco de um novo revés em 2018.
Derrubar
Dilma para inviabilizar Lula fazia parte do ciclo político da
tolerância conservadora em nossa história. Erros na condução da crise
econômica serviram apenas de lubrificante: a engrenagem já fora acionada
quando as urnas de 26 de outubro de 2014 refugaram, pela quarta vez
sucessiva, o projeto antissocial e antinacional ora imposto à nação.
A
ofensiva revanchista culminada nas últimas horas calcifica as
representações dos trabalhadores (sindicais e partidárias), sangra sua
estrutura financeira, ataca sua credibilidade e busca encarcerar sua
principal voz.
Se o nome disso não é golpe será preciso inventar um outro para defini-lo.
A
existência altiva de uma organização de trabalhadores constitui um
freio inestimável às arremetidas da barbárie capitalista em qualquer
época, em qualquer sociedade.
Dispensar
à destruição do PT e de Lula uma centralidade equivalente a atribuída
pelos mercados à revogação do direitos sociais e trabalhistas explicita a
funcionalidade de Moro.
O
seletivo afinco do juiz da praça de Curitiba em atender à demanda
política número um do conservadorismo -- calar a única voz ouvida por
aqueles aos quais a Globo gostaria de falar sozinha-- é um requisito
para viabilizar a restauração do trabalho avulso diante da coesão
patronal.
Descortina-se
–mesmo aos olhos antes distraídos—a natureza do futuro que se reserva à
sociedade brasileira: uma nação feita de gente barata, um país entregue
ao abismo da desigualdade abissal, sem laços compartilhados no
trabalho, na velhice e no ganha pão.
Esse
Brasil mexicanizado, de vidas ordinárias, entregues ao arbítrio do
mercado e das gangues, mimetiza, num país de carências bíblicas, as
incertezas e vicissitudes do voo turbulento do capitalismo global, em um
estágio de mutação desordenada.
O
discernimento do futuro inscrito na apoteose golpista pode gerar no
eleitor de 2018 o efeito que se quer prevenir com a eliminação de Lula
da urna. É ostensivo o anseio conservador pela condenação ‘célere’ do
candidato que lidera as sondagens, como pede o editorial da Folha no dia
seguinte à sentença de Moro.
A
tentativa da destruição gêmea de Lula e dos direitos sociais e
trabalhistas desnuda perigosamente a virulência dos marcos do projeto
conservador para o país.
A
literalidade dos impactos na vida cotidiana, sobretudo dos mais
humildes que perdem a proteção da lei e a voz que poderia representa-los
pode ser a tocha de uma espiral de conflitos de consequências
imprevisíveis.
O golpe de 1964 levou quase cincos anos para encontrar um chão ‘institucional’ baseado no terror, na tortura e na censura.
A
manipulação midiática e a farsa de um parlamento contra o povo não
serão suficientes para sustentar a reordenação conservadora atual, se
for escancarada a sua âncora de des-emancipação social.
A
verdade é que o esgotamento da ordem neoliberal no mundo requisita um
poder de coordenação econômica e de planejamento democrático inverso ao
que se desenha aqui.
Reduzir
o país a uma dívida pública paga em dia, a juros suculentos, às custas
da agonia falimentar dos serviços públicos, dos direitos, da renda e do
emprego só é viável no imaginário de quem já se dissociou até
fisicamente do destino da sociedade e da sorte do seu desenvolvimento.
Quem?
A
minoria rentista que da escada do avião acena recomendações de uma
dantesca ‘purga’ na Constituição de 1988 para equilibrar ‘o fiscal’, às
favas o povo, esse estorvo da boa finança (leia nesta pág. http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FBye-bye-Brasil%2F38336).
O jogo, portanto, atingiu o ápice da violência de classe.
Não é temerário prever um aguçamento do conflito social no período que se abre.
Com um agravante.
Inabilitadas
pela ruptura da legalidade, as instituições mediadoras, a exemplo de
uma parte ostensiva do judiciário --sem falar da mídia e da escória
parlamentar de despachantes do mercado-- perderam sua credibilidade ao
se acumpliciarem na demolição do pacto da sociedade sem consulta-la.
Após
quatro derrotas presidenciais sucessivas, sendo a última, de outubro de
2014, com seu quadro mais palatável, as elites decidiram queimar as
caravelas e os escrúpulos que supostamente ainda carregariam.
Fizeram-no,
como se constata na escalada do cerco ao PT e à Carta de 88 convictas
de que só escavando um fosso profundo na ordem constitucional teriam o
poder necessário para a demolição requerida.
Aquela
capaz de transformar a construção inconclusa de um Brasil para todos,
na recondução da ordem e do progresso para os de sempre.
Não deixam dúvida as encomendas e as entregas: o golpe veio apunhalar a democracia para atingir o interesse popular.
Vem aí um vergalhão de privatizações e abastardamento de serviços essenciais.
Reafirma-se
a rigidez recorrente da velha fronteira histórica onde acaba a
tolerância do dinheiro e do mercado e começam as bases da construção de
uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta.
‘A
democracia prometeu mais do que o capitalismo pode conceder sem
mergulhar a economia em uma crise fiscal desestabilizadora’, martelam
diuturnamente os colunistas do jogral midiático que não cogitam jamais
de uma reforma que estenda, por exemplo, a coleta de tributos aos R$ 334
bilhões em lucros e dividendos –isentos de IR—apropriados em 2016 por
pessoas físicas das faixas de renda mais altas da sociedade.
Ao contrário.
O
que se enxergou do esgotamento de um ciclo de expansão, agravado pela
crise econômica global, foi a oportunidade para um acerto de contas
capaz de fazer o serviço completo.
Cortar o ‘mal’ pela raiz.
Explica-se
assim a sanha do assalto às fontes originárias da universalização de
direitos na sociedade, desde a CLT de 1943, à Constituição Cidadã de
1988 e o partido que deles se tornou o principal promotor.
Pode dar errado.
Ter
um Estado que trata encargos sociais como estorvo do mercado, por mais
que gere uma euforia inicial nos donos do dinheiro, não resolverá as
grandes pendências nacionais emolduradas por um pano de fundo
desafiador.
O capitalismo revira os nós de suas tripas em uma transição épica de padrão tecnológico.
O
salto da industrialização 4.0 baseada na robótica, na integração e
digitalização dos processos vai ralear e atomizar o mundo do trabalho e
desse modo toda a sociedade.
A
indústria continuará vital como núcleo irradiador de produtividade e
tecnologia na sociedade. Mas será cada vez menos o núcleo ordenador do
emprego e dos direitos.
A
dispersão laboral que a esperteza conservadora quer acelerar aqui com a
implosão da CLT e o barateamento da previdência aponta para uma
fragmentação social de consequências imponderáveis.
Só a ação planejadora da democracia e do Estado pode impedir que isso transborde em anomia conflitiva, violenta e desesperada.
Eis o paradoxo da política de estabilização golpista.
A
coesão social hoje passa a depender cada vez mais –e não menos-- de
políticas públicas amplas, massivas, inclusivas que a sabedoria fiscal
dos ‘reformistas’ aqui trata de desossar.
O modelo atual de previdência social de fato se esfumou num horizonte de emprego instável e escassos vínculos trabalhistas.
Mas a miopia ideológica do conservadorismo extrai daí a oportunidade de apagar o incêndio social com o maçarico da exclusão .
A alternativa ao caos existe.
A
seguridade social do futuro terá que ser financiada com um imposto
geral, progressivo, cobrado de toda a sociedade. O contrário é o
apartheid da velhice –e não apenas dos pobres, mas também da classe
média-- em privação, abandono, desespero familiar e depósitos de
barbárie.
O mesmo vale para os demais bens e serviços.
No
dizer do professor Luiz Gonzaga Belluzzo (que recomenda o filme de
Roberto Andó, ‘As confissões’, de onde deriva a enunciação de um
personagem para adaptá-la à hora do Brasil) --‘Se queremos reaver a
esperança, não podemos mais oferecer ilusões’.
A
esperança capaz de levantar a rua e redimir os laços sociais em nosso
tempo não nascerá da nostalgia de um padrão de desenvolvimento
irrecuperável.
Nem do seu ‘ajuste’ pelas mãos dos alfaiates das crises humanitárias.
A
reforma estabilizadora e crível virá de políticas públicas que inovem
diante das incertezas sociais e laborais, e respondam com justiça
tributária ao desamparo que estilhaça e subordina a sociedade à ganância
financeira.
Não
por acaso, o que mais se evidencia nessa ciclópica transição emendada à
crise de 2008, é a falta que faz agora tudo o que foi subtraído do
Estado e da democracia no ciclo neoliberal anterior à explosão das
subprimes – regulações, direitos, soberania, garantias trabalhistas,
tributação da riqueza --que cedeu lugar ao endividamento paralisante do
Estado, salários dignos, indução pública do investimento, amparo social
enfim, laços de pertencimento e solidariedade fiscal e humana.
A
virulência anacrônica do golpe brasileiro quer nivelar o país nesses
quesitos, implodindo estruturas que o ciclo de governos progressistas
preservou e ampliou.
Sua vitória pode estar fadada a ornamentar o cemitério da estagnação e o inferno da desigualdade.
A
volta da fome ao país, denunciada agora à ONU, é um sinal da combustão
social que arde com rapidez assombrosa. O quadro falimentar do estado no
Rio de Janeiro velado por uma procissão de corpos que cresce à razão de
um assassinato a cada duas horas é outro grito de alarme.
A conclusão explode aos olhos de quem não foi contaminado pela cegueira tóxica do jornalismo isento.
Falta investimento público, falta demanda, faltam oportunidades, inclusão e sentido de esperança no capitalismo do século XXI.
Esse
corner humano e macroeconômico que o golpe mimetiza para barrar
reformas e retificações de privilégios --requeridas pelo esgotamento do
ciclo anterior de expansão-- é justamente o desafio ao qual o projeto
progressista terá que responder com o desassombro histórico.
A resposta conservadora é a ‘noite de São Bartolomeu’ em marcha que instaura a paz salazarista dos cemitérios.
Graças
ao monopólio midiático, interditou-se o debate das alternativas à
delicada transição de ciclo econômico (local e global) para a qual não
existe saída fora da repactuação da sociedade em torno de políticas que
fortaleçam, não esmaeçam, as dimensões compartilhadas do presente, do
futuro e do passado da cidadania.
A
manipulação midiática logrou assim avalizar ‘soluções’ que na verdade
radicalizam a contraposição de interesses unilaterais, privilegiam os
mercados e não os cidadãos, impõem uma regressão civilizacional
inconciliável com a manutenção do Estado democrático e, por fim, corroem
aquilo que tão arduamente se reconquistou, a autoestima brasileira.
Sobra o quê?
Uma ruptura mais profunda do que a mera destituição de um Presidente da República.
De diferentes ângulos da economia e da sociedade já emergem avisos de saturação estrutural.
Em
1964, a transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar abriu
uma válvula de mobilidade momentânea –às custas de uma urbanização de
periferias conflagradas-- para as contradições violentas de uma
sociedade que já não cabia no seu modelo anterior.
Mesmo
com essa válvula de escape, a repressão do regime foi brutal. Hoje não
há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer a panela de pressão da
nova encruzilhada do desenvolvimento turbinada pela finança e a
tecnologia poupadora de empregos e direitos.
As
legiões que não couberem aí serão escorraçadas, como estão sendo, pela
explosiva segregação que se anuncia, atiradas a uma periferia
constitucional e, assim, coagidas a reagir de forma explosiva ou
perecer.
Erra
esfericamente quem imagina que esse estirão pode ser mitigado com a
maciça entrega do que sobrou do patrimônio público depois do governo do
PSDB.
Privatizações
não agregam força produtiva nem vagas; apenas concentram ainda mais a
renda; definham adicionalmente o já enfraquecido poder indutor do
investimento público, reduzem o fôlego do Estado com remessas descasadas
de receitas exportadoras.
Radicalizam , enfim, o que o país mais precisa superar.
A
reedição de um novo ‘1964’ exigiria, desse modo, uma octanagem fascista
drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do
poder de coerção necessário à devolução da pasta de dente social a um
tubo que na verdade nem existe mais.
Não há uma terceira escolha.
É
voltar às urnas na esteira de forte mobilização da sociedade; ou
entregar a nação a uma ‘longa noite de exceção’ de desdobramentos
incontroláveis.
Essa é a disjuntiva.
Moro se empanturrou da ração midiática na qual foi cevado nos últimos anos.
A
sentença com a qual pretende ‘limpar esse terreno’, interditando o nome
de quem pode barrar a imissão de posse violenta, não vai mudar, nem
resolver a encruzilhada estrutural da qual Curitiba é um simples adereço
de mão do conservadorismo.
A opção à deriva imponderável cabe à resistência democrática progressista --se cumprir certos requisitos.
Ela terá que ser construída nas ruas, a partir de um desassombrado aggiornamento de sua visão de futuro.
A esperança capaz de levantar as ruas –repita-se—não admite mais ilusões.
A
repactuação do desenvolvimento brasileiro só deixará de ser uma miragem
flácida se calcada em amplas políticas de infraestrutura e inclusão
social –inclusive dos filhos de uma parte expressiva da classe média que
terão que se inserir em sistemas públicos de educação, saúde e lazer.
O
novo é o que é público e comum. Assim como as escalas se ampliam na
economia das grandes corporações, elas terão que ser magnificadas também
na esfera dos acessos e direitos consagrando o bem comum.
Moro
não calará Lula, assim como não silenciaram Mandela, se ele se tornar
desde já o porta-voz desse arrebatador projeto de futuro compartilhado.
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