quinta-feira, 22 de junho de 2017
Barroso, negros de primeira linha e a reforma trabalhista
Os experimentos de Milgram explicam
Por Rodrigo de Lacerda Carelli *
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, durante discurso de homenagem a Joaquim Barbosa, chocou a muitos ao afirmar que o ex-colega era um “negro de primeira linha”.[1] O próprio ministro Barroso se disse chocado com o que ele mesmo disse, pedindo desculpas “às pessoas a quem possa ter ofendido ou magoado, (…) sobretudo, se, involuntária e inconscientemente, tiver reforçado um estereótipo racista que passei a vida tentando combater e derrotar.”[2]
O pedido de perdão do ministro Barroso é tão revelador quanto a sua primeira afirmação. Ele tem razão em dizer que a dor que causou nos outros foi involuntária e inconsciente e reforça um estereótipo de violência a todo um grupo de pessoas. E que é necessário combater e derrotar esse modo de pensar, que orienta as pessoas a realizá-lo sempre e sempre.
O trabalho do psicólogo social norte-americano Stanley Milgram é bem ilustrativo do mal que padece o ministro Barroso e, segundo os estudos desse pesquisador, atinge a maior parte das pessoas. Dois estudos, em particular, são ilustrativos: em um deles, uma pessoa é colocada junto a outras cinco, para realizar um teste, que consistia em responder a perguntas a todos igualmente dirigida. Uma só pessoa era testada a cada vez, pois não sabe que as demais eram, em verdade, participantes instruídos do projeto. Em determinado ponto, os participantes instruídos passam a escolher respostas que claramente estavam erradas, sendo que a pessoa testada também, na maior parte das vezes, a escolher essa alternativa, somente para acompanhar o grupo. A experiência demonstrava que as pessoas poderiam ser capazes de dizer coisas que contrariam seu próprio senso de realidade.[3]
No entanto, o estudo mais impactante de Stanley Milgram foi o da possibilidade de que a maior parte de pessoas possa infligir dor em outra, obedecendo a uma autoridade que entende legitimada, mesmo sabendo que está cometendo um mal. Nesse experimento, Stanley colocava uma pessoa que acreditava estar dando choques a outra quando esta dava respostas erradas a um teste de múltipla escolha. 65% das pessoas continuavam seguindo a autoridade – o pesquisador – mesmo quando a pessoa que supostamente recebia os choques gritava de dor.[4] Milgram entendeu que “pessoas comuns, que estão apenas fazendo seu trabalho e não apresentam qualquer tipo de hostilidade, podem tornar-se agentes de um processo terrível e destrutivo.”[5]
Outras falas do ministro Barroso vão na mesma direção, assumindo o discurso, talvez de igual forma involuntárias e inconscientes, da autoridade que entende legítima – neste caso, o chamado Mercado -, mas que pode causar sofrimento a muitos. Por exemplo, o ministro Barroso foi a Londres participar de evento denominado “Brazil Forum” e realizou firme defesa da reforma trabalhista. Barroso teria afirmado que o “Brasil, sozinho, é responsável por 98% dos processos trabalhistas de todo o planeta”, enquanto tem 3% da população mundial.[6] Causa espanto um dado tão agressivo a qualquer razoabilidade e tão distante dos fatos tenha saído da fala do ministro Barroso, membro da cúpula do Poder Judiciário, que supostamente deveria conhecer seus ramos. Em 2015, o Brasil teve 2.619.867 casos novos na Justiça do Trabalho. [7] No mesmo ano, a França teve 184.196 novos casos trabalhistas,[8] a Alemanha teve 361.816 ações[9] e, somente a Espanha, 1.669.083 casos.[10] Não precisamos fazer cálculos profundos de matemática para só com essa pequena amostra a fim de verificar quão afastados da realidade estão os dados apresentados pelo ministro.
O ministro teria afirmado também que o Citibank decidiu deixar de operar no Brasil quando detectou que obtinha no país 1% de suas receitas, mas sofria 93% das ações trabalhistas.[11] Mais uma vez estamos diante de fala assustadora do ministro Barroso, sem aparente base na realidade, pois os próprios informes do banco e as análises do mercado financeiro, antes, durante e depois do encerramento das atividades da citada instituição bancária no varejo brasileiro, davam conta que o Citibank deixou não só o Brasil, mas também a Argentina e a Colômbia, estando tal decisão vinculada ao planejamento estratégico da instituição realizado em 2014, quando houve a deliberação de deixar os países nos quais o banco não tinha presença relevante, com o fim de concentrar suas atividades em clientes corporativos e institucionais nesses países, não havendo qualquer menção à questão trabalhista. Aliás, os analistas inclusive expressamente indicaram que a decisão não tinha nenhuma ligação com as características inerentes a esses mercados.[12]
Barroso creditou ao presidente da Riachuelo, Flavio Rocha, os dados inverossímeis sobre o percentual de ações trabalhistas brasileiras em relação ao mundo e as causas da saída do Citibank do mercado brasileiro.[13] Flavio Rocha tem sido, representando o “Mercado”, um dos articuladores mais engajados e entusiastas na reforma trabalhista,[14] tendo inclusive participado de reunião com a Presidente do Supremo Tribunal Federal para tratar do tema.[15] Cabe lembrar que, em uma dessas ações trabalhistas que compõem o mais que exagerado percentual que o empresário e o ministro difundem, a empresa de Flavio Rocha foi condenada por condições degradantes de trabalho, nas quais a trabalhadora teria que colocar elástico em 500 calças por hora.[16] Esse não foi um caso isolado, pois condições generalizadas de trabalho igualmente degradantes foram denunciadas na sua cadeia produtiva no sertão nordestino.[17]
Barroso, talvez animado pelos dados duvidosos fornecidos pelo representante do Mercado, continuou no ataque ao Direito do Trabalho em palestra no Tribunal Superior do Trabalho, falando a jovens juízes trabalhistas, afirmando que o excesso de proteção trabalhista acaba desprotegendo, “o que é ruim para o cidadão”. O modelo excessivamente paternalista, segundo afirmou, “infantiliza, isso quando não estimula as pessoas a serem incorretas”. E teria acrescentado que um dos papeis dos juízes é contribuir para a emancipação das pessoas.[18] O mercado de trabalho “ultraprotegido” com trabalhadores “infantilizados” no Brasil é aquele em que, mesmo antes da Reforma precarizante, está em quarto lugar no mundo em acidentes de trabalho,[19] com mais de mil trabalhadores escravos resgatados no ano de 2015 (a maior parte na zona urbana)[20] e que, do grande número de ações trabalhistas que ajuíza, metade se refere a falta de pagamentos das verbas devidas pelo empregador na rescisão, sendo que as matérias mais demandadas estão pagamento de salários, férias e décimo terceiro salário. Ou seja, a existência de um número assustador de ações trabalhistas decorre do descumprimento de direitos e obrigações básicas dos empregadores. A reforma defendida por Barroso, que vai retirar ainda mais a já frágil proteção do direito trabalhista brasileiro e dificultar o acesso à Justiça, vai ocasionar mais sofrimento e mais lesão aos trabalhadores.
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