Pessoas das mais variadas posições
políticas, dos mais diferentes calibres intelectuais e das mais diversas
posições sociais têm lamentado uma suposta excessiva polarização que
estaria ocorrendo no Brasil. Leandro Karnal, após publicar a foto de
seu famoso jantar com o juiz Moro e ver-se tolhido por críticas de
muitos e ungido pelos elogios de outros, lamenta a polarização, mais uma
vez. Na verdade. ou melhor dizendo, a verdade efetiva das coisas mostra
que a crítica à polarização no Brasil, em todos os tempos, sempre
esteve a serviço da dominação de elites predatórias e sempre se
configurou como o exercício da hipocrisia nacional.
A crítica à polarização e a falta do
combate cívico virtuoso fizeram do Brasil o que ele é: um país sem
presente e sem futuro; um país incapaz de dar-se uma comunidade de
destino. Foi esta dupla dinâmica que fez com que alguém disse que, com a
independência do Brasil, os portugueses não perderam uma colônia, mas
ganharam um reino. Esta mesma dinâmica fez com que a proclamação da
República fosse feita por um marechal monarquista, adoentado, posto
sobre um cavalo para liderar uma marcha militar, fazendo com que a res publica
nascesse sem povo, sem terra e sem o pronunciamento de um tumulto
cívico que lhes desse uma origem efetivamente popular. A síntese
perversa deste ato foi captada pelas famosas palavras de Aristides Lobo
que afirmou que o povo assistia, "bestializado", aquele acontecimento
sem compreender o seu significado.
Exigir, neste momento, a despolarização,
o debate polido, as maneiras finas e educadas, significa exigir que o
povo permaneça bestializado. No Brasil, o povo sempre foi tratado como
serviçal, como escravo, como ignorante, como grosseiro, cujo único
atributo seria trabalhar e servir. As elites sempre se reservaram o
monopólio do luxo, do dinheiro, dos vícios e da corrupção. Pois bem. Nos
momentos críticos, de incerteza acentuada acerca do amanhã, essas
elites mal-educadas, incluindo a intelectualidade que as servem, exigem
boas maneiras daqueles que nunca foram bem tratados. O povo e os
ativistas cívicos, precisam aprender a tratar com grosseria as elites
violentas, luxuriosas, vaidosas, corruptas, expropriadoras, sonegadoras,
pois esta é a forma polida que merecem ser tratadas por terem
construído uma sociedade injusta e brutalmente desigual.
É legítimo cobrar posicionamento dos intelectuais
Chega a ser um acinte que os bem
falantes dos livros e das mídias exijam despolarização, recato e polidez
em uma sociedade moralmente dilacerada, materialmente humilhada,
culturalmente deserdada. É preciso dizer não a essa exigência de
despolarização que criou, cultiva e dissemina o mito da democracia
racial, sempre atualizado em cada momento histórico com a manutenção de
novas formas de existência de semi-libertos dos afro-descendentes e de
extermínio dos índios.
Como exigir despolarização no momento em
que a democracia foi golpeada, em que os direitos sociais são
destruídos, em que a cultura, a educação e a saúde pública sofrem
agressões e danos ruinosos? Como exigir polidez quando a juventude está
desesperançada e a velhice temerosa porque não se encontra ao abrigo das
misérias e não tem amparo no momento em que mais precisa dos serviços
públicos da saúde? Como exigir diálogo com um governo que é a face
desnudada da corrupção, do machismo, da falta de recato e da indiferença
completa com a sua própria degradação?,
Neste momento de desesperança é preciso
cobrar dos intelectuais, sim, um posicionamento acerca da situação
política do país. Os intelectuais são figuras públicas e, como tais,
estão submetidos ao crivo do público e às exigências demandadas pelo
processo de formação da opinião pública. É bem verdade que parcelas dos
intelectuais se tornaram idiotas da objetividade e se refugiam numa
suposta neutralidade que não existe. Também é verdade que parte da mídia
conferiu o estatuto intelectual e de juízes da nação a vendedores de
consultorias, que são partes interessadas no doloroso ajuste jogado
sobre os ombros vergados dos mais pobres.
Mas convém lembrar que os intelectuais
de todos os tempos, dentre os mais representativos, a começar por
Sócrates, Platão e Aristóteles, chegando ao mundo moderno e
contemporâneo, pugnaram pela cidade justa, pela república justa, pela
nação justa. Denunciaram as injustiças, combateram as desigualdades,
enfrentaram tiranias e ditaduras, sofreram violências, exílios, prisões,
quando não a morte.
Um intelectual autêntico não pode ser um
acólito do poder, um cortesão oportunista, um freqüentador de palácios,
um comensal dos poderosos. Os intelectuais autênticos devem ser a voz
pública dos reclamos de justiça e, pela simbologia e representatividade
que carregam, precisam elevar-se acima dos outros para denunciar as
mazelas do poder e dos poderosos, de sua opressão, de suas
arbitrariedades e de suas tendências contrárias à liberdade.
Dentre todas as incompletudes humanas,
dentre todas as incompletudes do mundo, um poder que não esteja
assentado sobre as virtudes do povo e que não esteja a serviço do
interesse comum, é a maior das incompletudes. O poder do Estado é o
organizador de todas as outras atividades. E se ele não é virtuoso,
desestrutura e destrói a nação, a sociedade, a moralidade, o bem estar, o
desenvolvimento, a educação, os direitos, a cultura.
O governo Temer promove, hoje, este tipo
de devastação do Brasil. É um governo que precisa ser denunciado e
removido. Para isto é necessário o dissenso, a polarização e o conflito.
Nas repúblicas democráticas bem constituídas não é o consenso, não é a
paz dos cemitérios, não é a passividade que constroem bem estar e boas
leis. Somente as virtudes combativas e o ativismo cívico são forças
capazes de imprimir um outro rumo ao Brasil.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política.
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