Samuel Pinheiro Guimarães
1. Como o Senhor definiria a passagem de José Serra pelo Itamaraty e
avaliaria seu pedido de demissão?
SPG: A
passagem de José Serra poderia ser definida como desastrosa.
Revelou um notável despreparo para o
exercício da missão de Chanceler. Seus pronunciamentos, seu desconhecimento de
temas triviais, suas tentativas de rever princípios da política externa, tais como
a não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, em especial na América
do Sul; a prioridade da política brasileira para América do Sul e a necessidade
de diversificar as relações do Brasil com todos os Estados; a necessidade de
articular a ação brasileira com a de países de circunstâncias semelhantes,
demonstraram seu despreparo.
Finalmente, a tentativa de alinhar o
Brasil com a política externa americana em todos os temas, sem colocar acima de
tudo os interesses brasileiros, aliás de acordo com a política geral praticada
pelo Governo Temer, revelou seu descompasso com o Brasil.
Pelo seu comportamento, revelou desprezo
pelos quadros do Itamaraty e pela sua experiência, isolando-se, quando em
Brasília, em seu Gabinete, dedicando especial atenção às questões de imprensa, e
passando grande parte de seu tempo em São Paulo.
Seu pedido de demissão pode estar
ligado a quatro fatores: a decepção com sua pequena influência no Governo, em
especial nas questões econômicas; sua relativa incompatibilização com os Estados
Unidos, apesar de suas posições tradicionais de grande proximidade com esse
país, devido a sua inoportuna e depreciativa declaração sobre Donald Trump durante
a campanha eleitoral americana; a necessidade de organizar sua candidatura a
presidente ou mesmo a Governador nas eleições de 2018; a precariedade de sua
saúde, inclusive física.
2. De que forma o Brasil conseguirá recuperar o protagonismo internacional
perdido recentemente?
SPG: Em primeiro
lugar, pela execução de uma política externa que se fundamente no respeito aos
princípios que garantem a ordem internacional, que protegem os Estados mais
fracos e que estão consagrados na Constituição Federal e na Carta das Nações
Unidas, quais sejam os princípios da não intervenção; da autodeterminação; da
igualdade soberana e da reciprocidade.
Em segundo lugar, por uma política
externa que priorize o desenvolvimento do Brasil, em todas as suas dimensões, e
a ampliação da participação do Brasil nos organismos internacionais, inclusive
no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Em terceiro lugar, pela denúncia firme
e serena de toda e qualquer ação arbitrária e violenta, em especial de Grandes
Potências, contra os Estados periféricos e frágeis.
Em quarto lugar, pelo reconhecimento
de que a realidade da localização geográfica do Brasil, suas fronteiras e
número de vizinhos, a dimensão do território e de sua população, a riqueza de
recursos naturais, o elevado grau de urbanização e de industrialização impõem
uma estratégia de política externa de afirmação nacional.
A ação serena e prudente dos
executores da política externa, seu conhecimento dos temas e sua determinação
na defesa dos interesses do Brasil diante de qualquer Estado são fatores
indispensáveis para recuperar o respeito e o protagonismo internacional.
Só é respeitado quem se respeita e
quem defende seus interesses.
3. O Senhor acredita que os EUA, na presidência de Donald Trump, irá
formalmente apoiar a ideia de um Estado único Israel-Palestina como querem os
israelenses?
SPG: Acredito
que muitas das manifestações iniciais sobre política externa emitidas pelo
Presidente Trump, tais como as que se referiam à OTAN, ao México, à Austrália,
à Europa, à China, à Rússia e, inclusive, a Israel, virão a ser modificadas.
A questão de Israel é vital para os
povos árabes e muçulmanos e os interesses americanos nestes países, em especial
devido ao petróleo, são tão grandes e estratégicos que as pressões internas nos
EUA serão muito intensas para que o Governo Trump volte à sua posição tradicional:
· financiar Israel em montante superior
a 3 bilhões de dólares por ano, o que sustenta a economia e o poder militar israelense;
· apoiar militarmente e em atividades
de inteligência o Governo de Israel;
· aceitar a expansão, desde que discreta,
de assentamentos israelenses na Cisjordânia e condená-los retoricamente;
· apoiar a solução de dois Estados;
· apoiar a resolução do Conselho de
Segurança da ONU sobre a retirada israelense dos territórios ocupados em 1968 mas
nada fazer, na prática, para implementá-la.
4. Como explicar essa onda reacionária no planeta?
SPG: A onda reacionária
começa em 1979 com a ascensão de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Helmut Kohl
que promoveram, de um lado, o combate às políticas e aos programas keynesianos
e a desregulamentação do setor financeiro e das megaempresas (fim das leis
anti-trust) e adotaram políticas neoliberais e que, de outro lado, enfrentaram agressivamente
o que Reagan chamou de Império do Mal e todos os regimes de economia mista e de
políticas externas menos submissas.
A desintegração da União Soviética em
1991, a gradual adesão, a partir de 1979, da China ao capitalismo e a esmagadora
vitória americana na Guerra do Golfo permitiram ao primeiro Bush proclamar uma Nova
Ordem Mundial, com a hegemonia americana, a única Grande Potência mundial, em
um mundo unipolar.
A partir desta vitória do capitalismo
neoliberal sobre o socialismo estatal, os governos da periferia e do centro
aderiram ao capitalismo selvagem e às políticas neoliberais, sintetizadas no
Consenso de Washington, com a redução dos direitos dos trabalhadores e dos
direitos civis, estes em especial a partir de 2001 com a legislação americana e
internacional de combate ao terrorismo, o novo inimigo, o aumento dos gastos militares
e de restrição aos direitos civis.
A recessão, que se inicia em 2007,
que se prolongou e se transformou em estagnação, trouxe um novo elemento e impulso
à onda reacionária, qual seja o colapso da economia globalizada, devido à falência
do sistema financeiro, a necessidade de sua recuperação com enormes recursos do
Estado, e a culpa jogada nos gastos sociais e, portanto, nos trabalhadores.
As políticas recessivas, implementadas para
recuperar a “confiança” dos investidores (isto é, do capital), que levaram ao
desemprego e às reduções de salários, de direitos trabalhistas e
previdenciários, estimularam a xenofobia e os movimentos de direita, enquanto
as agressões militares a países como a Líbia e a Síria, onde já morreram mais
de 400 mil pessoas, geraram as ondas de refugiados, deslocados e imigrantes, e
as políticas anti-imigrantes nos países centrais.
5. Por que tem sido tão fácil derrubar as políticas progressistas na América
do Sul, principalmente na Argentina e no Brasil?
SPG: Há quatro
fatores principais que levaram à possibilidade de derrubar as políticas
progressistas a partir da derrubada dos Governos que as promoveram:
· As operações de regime change, isto é, de golpe de Estado “suaves” desencadeadas
pelos Estados Unidos após as vitórias democráticas de Chávez; Lula; Kirchner;
Tabaré, Evo, Lugo e Correa, devido aos programas progressistas e de afirmação
nacional que passaram a executar e que afetariam, em maior ou menor medida, os
interesses políticos e econômicos americanos;
· Em segundo lugar, a forte e
articulada reação das classes hegemônicas, beneficiárias de séculos de mecanismos
de concentração de riqueza, renda e poder, contra os programas progressistas, a
favor dos trabalhadores e dos miseráveis, implementados por esses Governos,
inclusive através da articulação sistemática e permanente da mídia e dos poderes
Legislativo e Judiciário contra esses Governos;
· Em terceiro lugar, a não mobilização,
em maior ou menor escala, das massas beneficiárias daqueles programas pelos
Governos progressistas em defesa de seus programas e de esclarecimento sobre os
mecanismos de dominação das classes hegemônicas;
· Em quarto lugar, no caso de alguns
países, a incapacidade política e de visão estratégica dos Governantes.
6. O senhor acredita que o processo de globalização está sob risco, por
conta da ascensão do populismo de direita?
SPG: O
processo de globalização, isto é, de criação de uma economia global, foi
impulsionado pelas megaempresas multinacionais (e por seus Governos de origem)
com o objetivo de eliminar os obstáculos à sua ação em todos os mercados em
busca de maiores lucros, sob a orientação e a propaganda ideológica do
neoliberalismo.
A globalização levou a uma maior
concentração de riqueza e renda dentro dos países, desenvolvidos e
subdesenvolvidos, e entre os países.
O processo de globalização levou à
crise financeira, econômica e social de 2007 e à consagração, ideológica inclusive, sob “o novo conceito” de cadeias
globais de valor, da divisão internacional do trabalho entre, de um lado, as
economias altamente desenvolvidas e tecnológicas e, de outro lado, as economias
periféricas, produtoras e exportadoras de matérias primas e de manufaturados
simples.
Este processo de globalização
certamente não beneficiou o Brasil pois acentuou sua característica de economia
primária-exportadora e concentrou a renda no campo e no setor financeiro.
O populismo de direita é uma
consequência do processo de globalização inclusive na medida em que muitos partidos
e Governos de esquerda aderiram às visões e às políticas neoliberais e
permitiram que, em nome de uma pseudo-utopia capitalista globalizante, os
trabalhadores de seus países ficassem desempregados e fossem vítimas de
políticas sociais anti-trabalho.
7. De qualquer forma, os grandes tratados internacionais devem passar por
uma fase de congelamento, não?
SPG: Acredito
que sim. O Relatório anual sobre política comercial enviado pelo Presidente Donald
Trump ao Congresso americano indica esta orientação de política comercial de
dar preferência a acordos bilaterais para reduzir seus déficits, ao
unilateralismo, à ressurreição das
práticas de retaliação previstas pela Seção 301 da Lei de Comércio americana contra
politicas julgadas “injustas” e de desprezo pela Organização Mundial do
Comércio-OMC e seu sistema de solução de controvérsias.
Diz o Relatório (e, portanto, o
Presidente Trump):
“Desde que os Estados Unidos ganharam
sua independência, tem sido um claro princípio de nosso país que os cidadãos
americanos estão sujeitos apenas às leis e aos regulamentos feitos pelo Governo
dos Estados Unidos --- não a decisões adotadas por Governos estrangeiros ou
organizações internacionais”.
Para o Brasil, é sempre preferível o
sistema multilateral de negociação e de solução de controvérsias da OMC, onde
temos maior capacidade de articular, com outros países, a defesa de nossos
interesses econômicos
Por outro lado, aqueles grandes
acordos internacionais, que vinham sendo tão louvados pela imprensa e pela
academia, de um lado não atenderiam aos nossos interesses e, de outro, nem
deles poderíamos participar por não sermos, no caso do TransPacific
Partnership-TPP, um país do Pacífico, e no caso do TransAtlantic Trade and
Investment Partnership-TTIP, por não sermos um país europeu.
8. O Senhor enxerga interesses geopolíticos por trás da Operação Lava Jato?
SPG: O fato de
haver interesses geopolíticos atrás da Operação Lava-Jato é importante, porém mais
relevante é procurar identificar as consequências geopolíticas para o Brasil e
para seu projeto nacional.
O projeto nacional brasileiro tem as
seguintes características:
§
Construir
uma economia moderna industrial capitalista;
§
Construir
um sistema de defesa, de natureza dissuasória, através do programa do submarino
nuclear e da expansão da indústria aeronáutica e espacial;
§
Construir
gradualmente, através da ação do Estado, um sistema econômico e social menos desigual em termos regionais, de renda,
de etnia, de gênero etc.;
§
Desenvolver
uma política externa soberana com os seguintes instrumentos e objetivos:
· articular um bloco político sul americano, a
UNASUL;
· articular um bloco latino-americano, a CELAC;
· fortalecer um bloco regional na América meridional, o Mercosul;
· desenvolver relações políticas e
econômicas com todos os países, sem prejulgar seus regimes políticos, econômicos e sociais;
· reformar os organismos internacionais,
em especial o Conselho de Segurança da ONU e os organismos financeiros como o
FMI, para conquistar para o Brasil a possibilidade
de maior participação e defesa de seus interesses;
· articular alianças com os grandes
Estados da periferia, como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e o BRICS
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Estes objetivos confrontam
profundamente os interesses dos Estados Unidos e das potências a eles aliadas,
ou mesmo não aliadas como é o caso da China e da Rússia.
A nenhuma Grande Potência, isto é aos
membros permanentes do CSNU, às potências nucleares e missilísticas e às
grandes potências econômicas como o Japão e a Alemanha, interessa o surgimento
de uma nova potência, isto é de um Estado de fato autônomo e soberano pois isto
prejudica seus interesses de obter acesso a todos os mercados produtivos e
financeiros e às vias de acesso a mercados na disputa permanente por uma parcela
maior da riqueza e do poder político e militar mundial.
A ação geopolítica externa se
desenvolveu da seguinte forma:
· como se tornou público e reconhecido pelo
Governo americano, a NSA (National Security Agency) há décadas monitora e grava
todas as comunicações eletrônicas entre todas as pessoas no mundo, em especial
as lideranças, como foram monitorados e
gravados os aparelhos celulares de Angela Merkel e Dilma Rousseff, e as
principais autoridades de todos os Governos e tais informações podem ser
repassadas a suas megaempresas e servem para sua política externa;
· o Juiz Sergio Moro, como muitos dos
procuradores da Operação Lava Jato, foi treinado em programas especiais,
patrocinados pelo Governo americano, e mantem permanente contato com as
autoridades americanas;
· o Foreign Corrupt Practices Act
(FCPA) é um poderoso instrumento contra as empresas estrangeiras que competem
com as megaempresas americanas no mercado mundial, isto é no mercado de cada
país;
· o Governo americano, através do
Departamento de Justiça e do FBI,
através de acordos, fornece informações à Polícia Federal e aos
Procuradores do Ministério Público para auxiliar suas investigações.
Neste contexto, a Operação Lava Jato
tem importantes consequências geopolíticas, e colabora para os objetivos das
Grandes Potências, em especial dos Estados Unidos, pelas seguintes razões:
· abala a autoestima da sociedade
brasileira, convencida pela mídia de sua
corrupção intrínseca e excepcional;
· contribui para afetar o prestígio político
dos partidos de esquerda e progressistas em geral;
· afeta o prestígio e a capacidade de
articulação do Brasil na América Latina e, em especial, na América do Sul;
· contribui para desarticular a aliança
política entre os Estados da América do Sul (UNASUL) e da América Latina
(CELAC);
· corrói o prestigio político e
econômico brasileiro na África ocidental;
· corroi a posição do Brasil nos BRICS
e nas Nações Unidas
· desarticula e destroça as grandes
empresas brasileiras do setor de construção e de engenharia pesada que eram
altamente competitivas;
· abre o mercado brasileiro, onde deixa
de haver concorrência de empresas locais, para as megaempresas internacionais
de construção de grandes obras de infraestrutura, mercado que é estimado em
mais de um trilhão de reais.
· contribui para desacreditar o BNDES
como agência de financiamento da política comercial brasileira;
· ao desmoralizar o Estado, contribui
para o projeto de redução ao mínimo do Estado brasileiro, principal instrumento
capaz de vencer os desafios do desenvolvimento, da soberania e das
desigualdades.
9. Há alguma semelhança entre este momento histórico e os anos 30 do século
passado?
SPG: A partir
da Revolução de 30, se inicia no Brasil o projeto de construção de uma economia
moderna capitalista industrial, de organização de seu mercado de trabalho, de
consolidação da unidade nacional, de construção de um Estado capaz de enfrentar
os desafios de construção da infraestrutura de energia e transportes e de
financiamento de seu setor privado.
A tentativa de construção de uma
economia moderna industrial e capitalista no Brasil enfrentou forte oposição
das classes hegemônicas tradicionais situadas no setor agropecuário, defensoras
do neoliberalismo e da tradicional divisão internacional do trabalho que reserva
ao Brasil o papel de produtor e exportador de produtos primários, e mais
recentemente de território para a exploração das megaempresas multinacionais,
sem capacidade de desenvolvimento tecnológico, importador de produtos industriais
sofisticados e de capitais predadores e
especulativos.
O contraste entre os anos 30 e o período
que se inicia com Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso é que neste
último as classes hegemônicas brasileiras, em aliança com as classes
hegemônicas do Império norte-americano, retomaram seu projeto permanente de congelar
o Brasil como produtor primário, sem indústria de capital nacional, com a redução
do Estado ao mínimo, sem capacidade de regulamentar e empreender, com a redução
dos direitos dos trabalhadores e do custo do trabalho.
Vivemos, no momento atual, a
desconstrução do projeto que se inicia em 1930 de construção de uma economia
moderna capitalista industrial, soberana, e menos desigual.
Procuram as classes hegemônicas
tradicionais finalizar a tarefa que iniciaram em 1990, e que se interrompeu em
2003, com a vitória do Presidente Lula nas eleições.
Como declarou o principal ideólogo e
líder das classes hegemônicas, Fernando Henrique Cardoso, em um momento
revelador de rara sinceridade:
“Nosso objetivo é acabar com a Era
Vargas!”
e agora procuram consagrar na Constituição,
através de uma maioria corrupta no Congresso,
e de uma circunstância fortuita, seus desígnios antinacionais,
antissociais, anti-trabalhador, anti-povo e sua política de subserviência
diante do mega-capital internacional das grandes corporações produtivas e, em
especial, financeiras.
O povo brasileiro não permitirá que os
objetivos das classes hegemônicas e de seus representantes políticos, cuja
natureza e instrumentos são antidemocráticos, concentradores de renda e de
riqueza, contrários ao capital e ao trabalho nacionais, se consolide.
O povo vencerá as eleições presidenciais de
2018 e o processo de construção de uma sociedade desenvolvida, dinâmica,
democrática, mais igual, mais justa e soberana, que se iniciou em 1930, será
retomado.
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