O governo federal pretende aprovar a PEC
287/16, que trata da reforma da Previdência Social, nos próximos 60 dias. Quer
aprovar uma medida que prejudica metade da sociedade brasileira, sem nenhum debate
com os atingidos pela proposta. A PEC representa mudança ampla e
profunda da Previdência Pública no Brasil. Ampla porque impacta todos os tipos de benefícios e os dois
regimes previdenciários públicos (o Regime Geral e os Regimes Próprios). Profunda
porque reduz substancialmente o valor dos benefícios e retarda o início do
período de gozo do benefício. Como é unanimidade entre os especialistas, a PEC
tem como finalidade dificultar o acesso à Previdência e diminuir os valores dos
benefícios dos sistemas previdenciários dos trabalhadores da iniciativa privada
e dos servidores públicos federais, estaduais e municipais. A proposta irá
acabar com o direito à proteção na velhice exatamente para os segmentos mais
fragilizados da população: idosos, agricultores pobres, crianças, mulheres,
deficientes.
A
PEC 287/16 restringe também o alcance
da Assistência Social, porque: a) eleva a idade necessária para obter o
benefício (65 para 70 anos); b) aponta para a diminuição do seu valor; c)
estabelece restrições adicionais no acesso a ele, seja para idosos ou pessoas
com deficiência. Há hoje 4,5 milhões de compatriotas que
sobrevivem com um mínimo de dignidade porque recebem um salário mínimo por mês.
Esses brasileiros correm risco de vida. Sem a Seguridade (nos itens Previdência e Assistência), 70%
dos idosos estariam em condições de extrema pobreza. Hoje não observamos idosos pedindo esmolas nos sinais de
trânsito, em boa parte, em função do sistema de Assistência Social.
A concepção dos formuladores da PEC
287/16 é a mesma que lastreia a Emenda Constitucional 95 (que congela gastos
primários por 20 anos): o problema fiscal brasileiro decorreria do aumento
acelerado da despesa pública primária, ou seja, dos gastos sociais, de saúde,
educação, funcionalismo, etc. Enfim, os gastos que são realizados para atender
a esmagadora maioria da população. A Emenda 95, que já está em vigor, restringe
o acesso da população pobre aos serviços públicos de educação, saúde,
saneamento básico e, inclusive, bens como alimentação. A PEC da Previdência,
por meios distintos, implicará nos mesmos resultados.
O
principal argumento do governo para a reforma da Previdência é o déficit.
Ocorre que o déficit da Previdência Social não existe. A Previdência Social
compõe, conforme estabelece a Constituição Federal, o sistema de Seguridade
Social Brasileiro, formado pela Previdência Social, Saúde e Assistência Social.
Este sistema é superavitário, pois, quando criado, pensou-se também em suas
fontes de financiamento. Além da arrecadação proveniente da Folha de Salários
(pago por empregados e empregadores), o orçamento do sistema de seguridade é
composto por Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social),
Pis/Pasep (Programa de Integração Social e Programa de Formação do Patrimônio
do Servidor Público), CSLL (Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido), além
de parte da arrecadação com loterias federais.
O “déficit” de 2016 divulgado em janeiro pelo governo, de R$
149,73 bilhões (2,4% do PIB) na verdade é um cálculo propositalmente distorcido, que compara
apenas a relação entre o total de gastos com as
aposentadorias e pensões, e o valor arrecadado através da contribuição dos
trabalhadores e empregadores. Mas a conta não é essa, tem que considerar as demais
fontes de receitas. Como vimos, só há déficit quando não se considera
no cálculo as receitas constitucionais da Seguridade.
O
problema do déficit não é a previdência e sim o pagamento de juros da dívida
pública, que consome quase metade dos gastos do orçamento do Governo Federal.
Enquanto o déficit anunciado da Previdência pelo governo é de 149,7 bilhões de
reais, o governo entrega ao setor privado algo em torno de 501 bilhões ao ano,
ou seja, 8% do PIB. A conta não fecha, não pela previdência, mas,
principalmente, pelo gasto com a dívida pública. DÍVIDA QUE NÃO RESISTE A UMA
AUDITORIA, cuja realização foi definida pela Constituição de 1988. A receita da
Seguridade só não é ainda mais folgada em decorrência da política de
desoneração da folha de pagamento das empresas, opção adotada desde o governo
anterior no combate aos primeiros sinais da crise econômica, e que é um dos
fatores da deterioração das contas do Seguridade Social. As
renúncias da previdência social somente nos últimos seis anos, totalizaram R$
270 bilhões. Ademais, dos 271 bilhões de reais concedidos em desonerações
em 2016, 54% foram extraídos da Previdência.
Outro
problema crucial é a sonegação de impostos. Segundo dados de auditoria
promovida pelo Ministério do Trabalho, só em 2016 as perdas com sonegação da Previdência
somaram cerca de R$ 60 bilhões. Segundo informações da Organização das Nações
Unidas (ONU), a evasão total de divisas e a sonegação fiscal de empresas
brasileiras chegam a 27% do total que o setor privado deveria pagar em impostos
no Brasil, equivalente a cerca de R$ 500 bilhões. Por outro lado, a dívida
das empresas com a Previdência Social acumula R$ 426 bilhões, três vezes o suposto
“déficit” da Previdência em 2016. Na lista
das empresas devedoras da Previdência, há gigantes como Bradesco, Caixa
Econômica Federal, Marfrig, JBS (dona de marcas como
Friboi e Swift) e Vale.
Apenas essas empresas, juntas, devem R$ 3,9 bilhões, segundo valores
atualizados em dezembro do ano passado.
A comprovação do superávit da
Seguridade é a existência da DRU (Desvinculação das Receitas da União), criada
em 1994, para permitir que o governo federal utilize parte do orçamento da
seguridade, para outros fins. Inclusive pagamento de serviços da dívida
pública. No ano passado o percentual do orçamento da Seguridade, que pode ser
utilizado para outras despesas passou de 20% para 30% do total. O objetivo anunciado da PEC é economizar
R$ 678 bilhões em 10 anos. Pouco mais do que o Brasil tem gasto com os serviços
da dívida pública em 12 meses. Se o objetivo é economizar e viabilizar a
Previdência, o ataque teria que ser direcionado à taxa de juros, que é a mais
elevada do mundo em termos reais. O problema do déficit público brasileiro não
são os gastos primários e sim os juros pagos pelos serviços da dívida pública,
para uma elite formada de cerca de 10.000 famílias.
Em meio a mais grave recessão da história do país, a proposta de reforma
da Previdência trazida pela PEC 287/16 ataca direitos dos mais pobres, o que
tende a agravar as desigualdades de renda no Brasil. Do conjunto de políticas
distributivas no Brasil, nenhuma é mais eficiente do que a Previdência Social.
A esmagadora maioria dos benefícios do Regime Geral, cerca de 80%, é de um
salário mínimo, com elevado impacto distributivo. Ademais, as transferências da
Previdência Social exercem papel econômico fundamental no aspecto da
distribuição regional da renda. Em torno de 71% dos municípios brasileiros os
montantes transferidos pelos benefícios da Previdência Social são superiores
àqueles repassados pelo Fundo de Participação dos Municípios. Ademais, 68% dos
benefícios da Previdência Social são destinados a municípios com até 50 mil
habitantes. Há uma relação direta, portanto, entre as medidas propostas na PEC
e a formação do mercado consumidor interno, em função do alcance da Seguridade
Social. É renda garantida todo mês, na veia do mercado consumidor interno, em
benefício de metade da população brasileira.
Fazer
o debate sobre a Previdência Social e a Seguridade Social no Brasil é fundamental,
em função do declínio da taxa de natalidade e da consequente elevação gradual
da população idosa. Mas essa discussão tem que ser feita com profundidade, e a
partir dos interesses maiores do Brasil e não à serviço do capital financeiro,
como é o caso da PEC proposta. Não devemos raciocinar segundo um “fatalismo
demográfico”. Os impactos dos aspectos demográficos sobre a sustentação da
Previdência são mediados por variáveis econômicas e sociais, o nível de
emprego, a formalização do mercado de trabalho e outros. Na realidade, como
constatam os principais estudos, o principal problema da Previdência Social não
é a demografia em si, mas o fato de que o Brasil não possui um projeto nacional
e democrático de desenvolvimento.
Atenciosamente,
José Álvaro de Lima Cardoso (economista
e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina).
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