Angela Alonso
da Folha de domingo, 12/03/2017
O diabo mora nos detalhes. No Carnaval, o Tinhoso se hospedou num vídeo,
numa foto e em duas cenas.
O vídeo é o do prefeito, tem 55 segundos e mais de dois milhões de
visualizações. Doria e Bia estão num campo de futebol, que, tudo indica,
lhes pertence. O gramado é verde, a camisa polo é azul, o mais é branco:
a calça dele, o vestido dela e o pelo dos protagonistas, quatro cães de
raça de médio porte e um pequenininho, que a mulher segura maternalmente
no colo.
Dessa esfera privada fala o prefeito. Longe dos rotineiros “cidadãos” e
“paulistanos”, abre com “oi, pessoal”. Na informalidade calculada,
define-se como “workaholic”, dedicado à consorte, aos filhos e aos pets.
E recomenda: “Abrace a sua esposa, a sua mãe, as pessoas de que você
gosta e os animais” e “seja feliz, tá?”.
O prefeito se vende como moderno, mas em seu vídeo escasseiam os valores
da modernidade. Em pleno Carnaval, podia ter falado de respeito,
tolerância, zelo pelo próximo e pelo espaço público. Podia lembrar que
foliões são cidadãos, corresponsáveis pela vida coletiva e pelo delicado
equilíbrio entre os princípios régios da cidadania, a liberdade e a
igualdade. Em vez disso, apelou a valor intangível e individual: a
felicidade.
A ênfase na lógica privada aproxima o vídeo do prefeito da foto do
presidente. O registro apareceu em todos os veículos de imprensa, mas
foi o publicado em “O Estado de S. Paulo” que captou a família Temer,
por assim dizer, de corpo inteiro. À frente vai o herdeiro, tendo meio
de lado a avó materna, figura típica do agregado nas sociedades
tradicionais. No meio, caminham lado a lado o senhor circunspecto e a
moça risonha. O salto, o vestido estampado, a loirice esvoaçante
aumentam o contraste com quem vem atrás, olhos baixos, costas arqueando
ao peso das duas malinhas que porta, uma em cada ombro. Mirrada, negra,
de uniforme. É a babá.
A foto resume o país e mostra como ele muda e não muda. Lembra uma tela
de Debret dos tempos coloniais, com a fila indiana de senhor, senhora,
prole e escravos. O retorno da família Temer ao Jaburu evoca o retorno à
casa-grande. A modernidade de fachada do prefeito encontra na imagem do
presidente o solo tradicional onde germinar: um mundo de mandatários
brancos, com seus cães brancos e seus empregados negros.
Vídeo e fotografia contrastam com a cena que encerrou o reinado de Momo
em São Paulo. A protagonista foi uma baiana casada com outra baiana, por
isso hostilizada do Oiapoque ao Chuí. Famosa por seus axés, Daniela
Mercury emergiu do preconceito como porta-voz dos valores modernos.
Exprimiu o que Doria e Temer não dizem porque talvez não professem: o
direito à diferença, à convivência no espaço público. Defendeu a
essência da urbe, palavra prima de urbanidade.
A manifestação artístico-política da cantora abarca um lado do novo
Carnaval paulistano. É o de muitos bloquinhos, que desfilaram pela rua
aberta por pequenos movimentos culturais de protestos em 2013. Sua
simbiose de arte e política fermentou um “Fora, Temer” tão altissonante
que nem o “Jornal Nacional” silenciou.
O Carnaval teve essa gente que se apropriou da rua como o espaço público
por excelência. Mas teve também o lado que o prefeito aprecia e do qual
Mercury não escapa: o do empresariado. O showbusiness trouxe o cordão
que expele não pagantes, e empresas, como as de cervejas, encheram
bolsos privados com a alegria pública. Magnânimo, o Carnaval deu lugar
para o cidadão e para o cliente.
Com o cliente se preocupam estabelecimentos na fronteira entre público e
privado, como shoppings e restaurantes. São públicos porque qualquer um
pode entrar, mas são privados porque muitos se veem obrigados a sair.
Foi assim com João Victor de Carvalho, de 13 anos.
A cena que protagonizou teve por cenário um dos restaurantes da cadeia
Habib’s, o mesmo que abriu as portas aos manifestantes na campanha pelo
impeachment de Dilma. Mas as fechou para João Victor, que vivia a
“importunar” consumidores, pedindo comida ou um trocado. Menino público,
da rua, que invadiu o recinto privado reincidentemente.
A solução foi ao estilo Bolsonaro. Dois funcionários perseguiram e
espancaram João Victor. “Ele teve uma morte que não se faz nem com
animal”, lamentou o pai, catador de lixo.
De fato, os animais da elite paulistana, como os do prefeito, são mais
bem tratados que crianças herdeiras do fardo escravista, como João
Victor. Por isso não estranha a diferença de desfecho das histórias dos
dois Joões, o que ama os cachorros e o abatido como animal selvagem. A
primeira é daquelas que estouram em curtidas no Facebook. A segunda é
das que o país logo esquece.
Angela Alonso é professora do departamento de sociologia da USP e
presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Escreve aos domingos, mensalmente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário