POR ALDO FORNAZIERI, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Quando os gregos antigos
criaram a Polis (cidade) como comunidade política e teorizaram sobre
ela, estabeleceram como princípio cardeal de sua construção e de sua
condução a ideia de Justiça, entendida como satisfação das necessidades,
promoção do interesse comum, agregação de bens materiais e bens morais e
espirituais, garantia a todos de condições que os abrigassem dos
tormentos da pobreza e da miséria e busca dos fins éticos da comunidade –
fins comuns – pela prática das virtudes, única maneira de promover o
encontro da busca da felicidade individual com a felicidade coletiva.
A cidade Justa implicava um
senso reduzido de desigualdade e era a forma equilibrada de garantir
também a liberdade. Os pensadores clássicos da filosofia política sempre
entenderam que a desigualdade é a condição que destrói a vida cívica, a
Justiça e a liberdade. O constitucionalismo moderno, sob diversas
fórmulas, incorporou estes princípios fundantes da comunidade política,
traduzida, hoje, no Estado-nação. Esses princípios, acrescidos pelo rol
de direitos humanos, incorporando os direitos civis, políticos e sociais
foram constituindo o que se conhece como dignidade da pessoa humana.
Hoje, no Brasil, estamos
diante de um governo que afronta, de forma planejada e insolente, a
dignidade da pessoa humana. A primeira afronta reside no propósito mesmo
pelo qual se constituiu: abrigar do alcance da lei um grupo de
criminosos, convocados a ocupar os altos cargos da República para se
protegerem no inescrupuloso mecanismo do foro privilegiado. Perpetrado
este ato insidioso contra o interesse público, o presidente definiu como
critério para a escolha de ministros da cúpula governamental que os
pretendentes tivessem em seus currículos práticas corruptas e
delituosas, configurando a condição de quadrilha no seu caráter. O
último recrutamento validado por este critério é o do ministro Osmar
Serraglio, o protetor do “grande chefe” da carne podre.
Instalada no governo,
destruir os princípios da comunidade política tornou-se o objetivo
principal dessa quadrilha. Nenhuma comunidade política subsiste se o seu
funcionamento político-constitucional não estiver alicerçado na
observância da moralidade. A indiferença zombeteira com que o governo
trata os reclamos de moralidade pública vindos da sociedade, o “tanto
faz como tanto fez” em relação ao temporal de acusações que recai sobre o
presidente, a cúpula do governo e os seus principais aliados no
Congresso representa o dilaceramento ético da sociedade e a morte moral
da nação. As páginas da história do Brasil não registram nenhum paralelo
de prática de degradação da dignidade do povo comparável à que chegou
esse governo. A ausência de sentimentos morais por parte deste governo
não espanta apenas os brasileiros que ainda mantêm virtudes cívicas em
suas almas, mas espanta também o mundo que dele toma conhecimento.
O desprezo desaforado que
este governo nutre pelos valores cívicos, éticos e morais, o torna
insensível perante os sofrimentos dos desempregados, dos milhões de
pobres que voltaram a crescer e da desigualdade que se agravou. O
governo desonra os trabalhadores tirando-lhe direitos conquistados,
humilha as pessoas atormentando-as com o medo das incertezas e com a
prisão da desesperança. Trata-se de uma cúpula política toda que se
regozija com a depressão e a desgraça dos cidadãos.
Este governo degrada as
mulheres quando o presidente ilegítimo afirma que sua principal função é
fiscalizar os preços dos supermercados, quando o presidente da Câmara
afirma que ao igualar a idade de aposentadoria em 65 anos atende uma
demanda das feministas e quando o ministro da Saúde as culpa pela
obesidade das crianças. Esse governo perde o senso do respeito quando o
presidente nomeia o primo de Gilmar Mendes, o juiz que irá julgá-lo no
TSE, para um alto cargo público. E o que dizer dos encontros solertes
entre Gilmar Mendes e Temer para arquitetar a salvação de criminosos e a
morte da República? E o que dizer de Temer que aceita a chantagem de um
criminoso preso – Eduardo Cunha – nomeando prepostos seus para altos
cargos?
Momento de indignação e de luta
Que país é este que aceita a
destruição de sua substância social e moral? E pensar que todos sabem
quem este governo é e o que faz. Teremos capitulado todos diante da
vitória dos malvados e da destruição dos valores cívicos? Teremos
perdido a coragem em face de um sentimento de impotência que deveria nos
perturbar? Estaremos todos entregues a meros cálculos eleitorais
projetados para 2018 não reagindo com veemência e vigor ante um governo
que quer fazer terra arrasada das penosas conquistas sociais? Terão os
movimentos sociais e os partidos progressistas perdido os sentimentos de
bravura e de coragem ao aceitarem que este governo perdure até o final
do próximo ano, praticando sua sanha destruidora de direitos?
E se a consequência de tudo
isto for um 2018 que coloque a sociedade brasileira perante o
perturbador dilema de uma escolha entre a direita e a extrema-direita,
como ocorre hoje em países europeus? Se o triunfo do golpe foi uma
terrível derrota para a democracia e para o povo, a passividade em face
desse governo agravará ainda mais esta derrota. Lutar pelo fim deste
governo é uma demanda de dignidade humana, de compromisso com os
trabalhadores e com os mais pobres, de solidariedade com as mulheres, de
compaixão para com o sofrimento de muitos. Lutar pelo fim deste governo
significa resgatar milhões de brasileiros da humilhação que sofrem;
significa semear uma semente de esperança no coração dos jovens; um
alento de segurança dos idosos que vêem suas aposentadorias destruídas
pelos golpes impiedosos dos que tomaram o Brasil de assalto. Não é
possível ter mesura alguma com um governo que não tem nenhuma mesura com
a dignidade humana, com os direitos, com a moralidade e com o respeito.
Que os protestos de 15 de
março sejam um marco de uma virada da humilhação do Brasil em benefício
do resgate da sua dignidade, em benefício da recuperação da corajosa
humildade. Que seja o início do constrangimento da insolência desse
governo pela força das ruas. Que seja um chamado, uma convocação, à
unidade dos movimentos sociais e dos partidos progressistas e de
esquerda para uma caminhada conjunta com Lula, com o PSol, com o PC do
B, com Ciro Gomes, com o MTST, com o MST, com os sindicatos e centrais
sindicais, com as mulheres, negros, jovens e tantos outros movimentos
sociais. Este momento não é um momento para se dividir em torno de
candidaturas, mas é um momento de se unir para barrar a destruição do
Brasil. É o momento de marchar juntos contra a reforma da previdência e
demais reformas retrógradas. Se isto não for compreendido, o 2018 poderá
se tornar um amargo cálice de fel para todos aqueles almejam uma
sociedade justa, digna, igualitária e livre.
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