Por Saul Leblon, no site Carta Maior
Limada pelo bisturi conservador, a espantosa violência econômica imposta à população brasileira nesse momento é confinada no calendário dos eventos pré-golpe.
Algo que ‘passou’, martelam autoridades e seus autofalantes de aluguel e fé.
‘Culpa da Dilma’, sintetiza o decano da indignação seletiva da Folha, cuja argúcia econômica foi apurada em Davos.
É assim que o colunismo isento esclarece uma nação afogada em desemprego recorde, cuja indústria retrocedeu ao tamanho de 2009, o investimento foi empurrado ao nível mais baixo em vinte e dois anos e a renda per capital diminuiu 9% em relação a 2014, amarrotando o consumo no patamar de 2011.
‘Culpa da Dilma’... Uma guerra aberta de interesses naquela que talvez seja a transição de ciclo de desenvolvimento mais profunda vivida pelo país, em meio à deriva da ordem neoliberal no mundo, condensada na maior crise do capitalismo depois de 1929, reduzida a isso.
Para consertar ‘ a culpa da Dilma’ é preciso, primeiro, ‘purgar a imundícia’, diz o martelete especializado em divulgar a economia como um sistema hidráulico em equilíbrio, desde que dissociado da carne humana enervada nos esqueletos dos pobres.
A expressão é emprestada do presidente norte-americano Herbert Hoover, que ocupou a Casa Branca nos primeiros quatro anos da quebradeira iniciada em outubro de 1929.
O esfarelamento econômico e social, então, era encarado pelo contemplativo Hoover como uma ação autolimpante dos mercados, da qual o Estado deveria manter distância.
O povo norte-americano foi salvo da faxina suicida por Franklin Roosevelt.
Quatro anos depois de Hoover deixar uma sociedade convulsionada por acampamentos de desemprego que acossavam a Casa Branca e precisavam ser contidos pelo Exército, seu sucessor desativou a engrenagem infernal da autorregulação dos mercados.
Trocou-a por um poderoso programa de obras públicas e controle estatal do mercado de dinheiro, logrando tirar a economia das mãos dos coveiros e os chefes de famílias do cemitério do desemprego.
No caso brasileiro a ordem dos fatores alterou dramaticamente a soma do produto.
Aqui, ‘Herbert’ veio depois de ‘Franklin’.
Esse instalou com a determinação de ‘purgar’ um ciclo de traços rooseveltianos, ainda que imperfeitos, porque borrados de juros altos, liberdade para a conta de capitais, câmbio valorizado e, sobretudo, seu pecado capital: descaso com o papel fiador dos assalariados, do qual o criador do New Deal norte-americano nunca se descuidou.
Mesmo acusado de comunista pelo colunismo isento da época, Roosevelt não abriu mão de promover a sindicalização em massa dos trabalhadores que recuperaram seu emprego no New Deal.
Só assim o líder democrata resistiu a Wall Street e aos viúvos dos mercados desregulados.
No Brasil, todo o aparato público, incluindo-se o judiciário e o legislativo, mas também a mídia e os sindicatos dos patrões, condensam-se no jato de um imenso wap de desinformação, ‘desinfecção’ e des-emancipação, sem o contraponto organizado dos principais alvos do wap regressivo.
É disso que trata a faxina em curso.
Não de recuperar.
Mas de produzir ruínas.
Para soterrar com elas o pacto social desenhado na Carta de 1988.
E impor no seu lugar outro, oposto, sem a devida consulta à sociedade.
Na linha do jato desinfetante encontram-se o pleno emprego, a maior participação dos assalariados no fluxo da renda (mas não no estoque), o espraiamento dos direitos sociais, a multiplicação das oportunidades ascensionais pela educação, as iniciativas de afirmação cidadã e os instrumentos endógenos de comando do desenvolvimento, como o pré-sal, o BNDES, o banco dos Brics e a Unasul.
Enfim, a ‘imundícia’ toda que aguçou um conflito de classes protelado, inicialmente, por um desequilíbrio fiscal e monetário decorrente da elevada taxa de juro paga pelo Estado para tomar emprestado aquilo que deveria ser taxado.
Era uma corrida contra o tempo hipotecada na hipótese de uma recuperação saneadora do comércio internacional, que afinal não veio.
Os efeitos colaterais dessa corrida para frente assumiriam,assim, contornos de novos círculos de ferro cada vez mais estreitos.
Inclua-se aí o custo desindustrializante do real valorizado para atenuar outra expressão da escalada do conflito, a inflação, mitigada com importações.
Mas também a asfixia do investimento público e privado no tríplice garrote do juro alto, dos subsídios inúteis ao investimento produtivo num ambiente rentista e do desequilíbrio progressivo nas contas externas.
Não, senhores colunistas, não estamos diante do cqd ‘da culpa da Dilma’.
O nome disso é luta de classes.
Condicionada, no caso, por uma correlação de forças na qual a desorganização popular, de um lado, e a reengenharia midiática, de outro, engessariam o poder de iniciativa do governo.
A distinção é preciosa.
Não tanto para expor ao sol a toxidade da narrativa conservadora.
Mas, sobretudo, para evidenciar os desafios –graúdos-- no passo seguinte da luta pela construção de uma verdadeira democracia social no país.
‘A culpa da Dilma’, na verdade, camufla dois incômodos com uma só cajadada.
De um lado, releva a força determinante da sabotagem golpista, que semeava a ingovernabilidade já em 2013 para colher frutos nas urnas de 2014 --ou fora delas, se necessário, como foi.
De outro, dribla a fragilidade crucial decorrente da ausência de organização popular compatível com a transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país.
Mais que isso.
Coloca as forças progressistas diante de uma realidade histórica com a qual tem evitado se defrontar, mas que não poderá mais postergar na corrida para 2018.
Não é uma referência nova: 1964 já o havia demonstrado.
Mas se reafirmou agora com virulência dos rebotes históricos, para sacudir a memória adormecida.
Ao primeiro sinal de aguçamento da disputa pela riqueza, a elite brasileira recusa-se terminantemente a discutir soluções coletivas para os gargalos da sociedade e do seu desenvolvimento.
Opta pelo golpe em defesa do interesse unilateral.
Os fatos são autoexplicativos, mas não custa rememorar o abc dos mandatos históricos em nosso tempo.
A verdade é que mesmo aquelas tarefas denominadas genericamente de ‘revolução democrática’, constituídas basicamente da universalização do acesso aos marcos da civilização, não tem mais sujeito histórico nas elites.
A liderança do processo terá que ser assumida por uma frente política solidamente capilarizada em organização popular de base, aliada a blocos de identidades minoritárias, assentada em respostas à emergência climática, à desigualdade alarmante nas esferas da riqueza e da tecnologia, abraçada a novas formas de viver e de produzir e fortemente comprometida em traduzir tudo isso numa desassombrada estratégia de inovação em políticas públicas que, de fato, democratize e valorize o bem comum.
Ou isso, ou a queda da Bastilha nunca ocorrerá por essas bandas.
Partidos progressistas de massa e comitês de base espalhados por todo o país, se existissem de fato, teriam impedido a reengenharia midiática de acuar a nação na encruzilhada da falsa disjuntiva que hoje opõe a purga de direitos ao caos econômico.
Houvesse a organização requerida, a alternativa crível ao desmonte seria a taxação fiscal da riqueza, não a privação adicional cobrada da pobreza.
É a consciência desse fio da navalha que explica a virulência recessiva imposta à sociedade brasileira nesse momento, como um instrumento funcional de desmobilização política e desarticulação ideológica enfeixadas no grito de guerra conservador: ‘Culpa da Dilma’.
Ou seja, um dos mais violentos programas de ‘des-emancipação’ social já registrados em tempos de paz e por um período tão longo de duas décadas seguidas.
‘Significa que toda uma futura geração está condenada, o que é inaceitável’.
É assim que o relator das Nações Unidas para Pobreza Extrema, Philip Alston, qualificou a PEC do Teto, em dezembro do ano passado, antes ainda dos desdobramentos atuais nas esferas da previdência e pensões rurais, do salário mínimo e dos direitos trabalhistas (pela terceirização).
Só uma recessão diluviana poderia escorar um projeto de poder dessa natureza, atado a vinte anos de concordata social, durante os quais os detentores da riqueza –e agora do poder— avocam-se a prerrogativa de desativar todo o aparato de direitos sociais e trabalhistas arduamente acumulados pelo povo brasileiro desde Vargas.
A abrangência e a brutalidade do que está em curso corresponde a uma ruptura do pacto da sociedade --sem consulta-la, repita-se-- o que dificilmente se completará sem atingir o núcleo duro das garantias individuais, as liberdades civis e os direitos políticos.
Os liberais que hoje se oferecem à barganha com o golpe, incluindo-se um pedaço da classe média que supõe assim garantir suas ‘liberdades’ individuais, rapidamente serão afrontados pela violência de uma lógica que tem na ganância do mercado, sobretudo financeiro, o único compromisso sagrado de liberdade a preservar.
De certa forma, o que se assiste hoje no Brasil, já se disse aqui, é a viagem de volta ao cuore liberal reinante no ventre do capitalismo selvagem dos séculos XVIII e XIX.
O termo ‘des-emancipação’, cunhado pelo filósofo marxista italiano, Domenico Losurdo, descreve o moedor de carne humana em ação nesses tempos pioneiros.
Mais que negar novos direitos, o que ressalta do bordão atual das reformas é a mesma determinação de ‘des-emancipar’.
Ou seja, devolver ao absoluto desamparo a parcela majoritária da sociedade, privada dos meios pelos quais se reproduziam as relações de poder e produção no capitalismo.
É disso que se trata no caso das reformas trabalhista e previdenciária anunciadas pelo golpe no Brasil. O mesmo se pode dizer das consequências da PEC 55 no acesso a direitos públicos essenciais --a escola e a saúde, entre outros.
O conjunto requer uma ruptura de ciclo histórico para se instalar. Mais que um golpe parlamentar, o regime da ‘des-emacipação ‘ no século XXI exige a fascistização dos instrumentos de Estado.
A escalada policial de um Ministério Público e de um juiz que assombram a cidadania brasileira ao subordinarem o Estado de Direito a conveniências partidárias ilustra o calibre da espiral em marcha.
Dela não escapará a classe média. Hoje simpática ao regime, amanhã será ela também tragada no arrastão de direitos e escolhas individuais, pela anemia das instituições e a desativação de sistemas regulatórios imiscíveis com a supremacia dos mercados entregues a sua própria lógica.
A lavagem ideológica promovida pela reengenharia midiática inocula na sociedade a anestesiante ampola da naturalização de uma ruptura que hoje a imobiliza, amanhã a escravizará.
A receita do Estado mínimo suprime do arsenal público não apenas as regulações que asseguram os diferentes espaços de escolha e liberdade, como a estabilidade da taxa de investimento na economia.
Sem financiamento público, grandes obras e orçamentos sociais, o futuro do mundo do trabalho, inclusive o da classe média, insista-se, será debulhado num angu de terceirizações, precariado e ‘bicos’, que podem até receber denominações em inglês, mas nem por isso serão outra coisa que não o declive social depressivo e aterrador.
Esse é o preço oculto naquilo vendido pela mídia nesse momento como o repto redentor ao lulopopulismo. Ou seja, uma subordinação escravizante do desenvolvimento, da democracia, da política e demais instancias da sociedade –inclusive a subjetividade do nosso tempo, aos impulsos irrefletidos dos mercados ordenados pelo retorno especulativo incompatível com a sobrevivência da economia, da sociedade e da natureza.
A estagnação atual nas economias ricas deveria servir de alerta ao evidenciar a falta que faz tudo aquilo que a democracia e o Estado cederam ao mercado nessas sociedades nos anos de apogeu do neoliberalismo
É nesse deserto do real que o conservadorismo brasileiro se inspira para golpear a democracia e reproduzir aqui receita que estrebucha no planeta.
O que as ressurgências do capitalismo selvagem oferecem à classe média brasileira agora–como o fazem os ideólogos da terceirização e da prevalência do negociado sobre o legislado na CLT-- é a premiação do mérito individual sobre o direito social universal.
A platitude baseia-se na crença de que a construção da sociedade é movida pelo interesse egoísta extrapolado, mecanicamente, na rudimentar ilação de que a luta individual pela felicidade leva ao fastígio coletivo.
Aclamados pensadores liberais, como Adam Smith, condicionavam na verdade a centralidade do interesse próprio à irrepreensível obediência a referências morais e religiosas.
Esse corpo moral percorreria um trilho ético rigoroso, rumo a uma comunidade de laços e valores impecavelmente compartilhados.
Nesse ambiente sacro o papel profano do Estado seria mínimo.
No capitalismo realmente existente as coisas se dão de forma algo diversa.
Não é difícil –aliás é muito fácil— deduzir o resultado da supremacia do interesse egoísta em sociedades nas quais, ao lado da luta desesperada de milhões de indivíduos desvalidos, avultam interesses corporativos desmesurados, sobretudo aqueles cujo produto é o dinheiro, sua reprodução e as suas consequências.
A crise do nosso tempo é obra dessa assimetria leonina, vendida aqui como solução.
A inexcedível capacidade das grandes corporações submeterem indivíduos atomizados deixa pouco espaço à acomodação espontânea dos interesses contrapostos em uma sociedade onde tudo, rigorosamente tudo, passa a ser objeto de compra, venda e lucro.
Não há mais espaços sagrados.
Ou a regulação democrática impõe limites a sede do capital, ou a sociedade toda desidratará em servidão e catatonia.
É sob esse pano de fundo que a ‘des-emancipação’ toca as trombetas do apocalipse social no Brasil, cujo Estado foi assaltado pelos mordomos dos mercados.
A marcha dos acontecimentos não mente.
A estratégia de ‘des-emancipação’ não se satisfará em extorquir uma década de ganhos reais de poder de compra dos salários.
A faxina requerida é tão virulenta que convoca o árduo trabalho do escovão repressivo e do detergente ideológico para dissolver qualquer traço de resistência indevidamente alojado em estruturas de produção, consumo, serviços, meio ambiente e participação política.
As sirenes da história anunciam confrontos intensos no front da liberdade e da economia.
A eleição de 2018 pode ser a derrubada da Bastilha.
Mas para isso as forças progressistas terão que se convencer, de uma vez por todas –e convencer parte da classe média-- que direitos clássicos das revoluções burguesas do século XVIII, hoje, só tem viabilidade amarrados a uma poderosa alavanca de organizações sociais, que subordinem a força criativa dos mercados aos projetos, metas e direitos pactuados pela democracia.
Revolução francesa no Brasil é igual a Lula comitês de base.
Ou isso, ou a restauração em curso.
Com a violência neoliberal ungida em Imperador do Brasil.
Limada pelo bisturi conservador, a espantosa violência econômica imposta à população brasileira nesse momento é confinada no calendário dos eventos pré-golpe.
Algo que ‘passou’, martelam autoridades e seus autofalantes de aluguel e fé.
‘Culpa da Dilma’, sintetiza o decano da indignação seletiva da Folha, cuja argúcia econômica foi apurada em Davos.
É assim que o colunismo isento esclarece uma nação afogada em desemprego recorde, cuja indústria retrocedeu ao tamanho de 2009, o investimento foi empurrado ao nível mais baixo em vinte e dois anos e a renda per capital diminuiu 9% em relação a 2014, amarrotando o consumo no patamar de 2011.
‘Culpa da Dilma’... Uma guerra aberta de interesses naquela que talvez seja a transição de ciclo de desenvolvimento mais profunda vivida pelo país, em meio à deriva da ordem neoliberal no mundo, condensada na maior crise do capitalismo depois de 1929, reduzida a isso.
Para consertar ‘ a culpa da Dilma’ é preciso, primeiro, ‘purgar a imundícia’, diz o martelete especializado em divulgar a economia como um sistema hidráulico em equilíbrio, desde que dissociado da carne humana enervada nos esqueletos dos pobres.
A expressão é emprestada do presidente norte-americano Herbert Hoover, que ocupou a Casa Branca nos primeiros quatro anos da quebradeira iniciada em outubro de 1929.
O esfarelamento econômico e social, então, era encarado pelo contemplativo Hoover como uma ação autolimpante dos mercados, da qual o Estado deveria manter distância.
O povo norte-americano foi salvo da faxina suicida por Franklin Roosevelt.
Quatro anos depois de Hoover deixar uma sociedade convulsionada por acampamentos de desemprego que acossavam a Casa Branca e precisavam ser contidos pelo Exército, seu sucessor desativou a engrenagem infernal da autorregulação dos mercados.
Trocou-a por um poderoso programa de obras públicas e controle estatal do mercado de dinheiro, logrando tirar a economia das mãos dos coveiros e os chefes de famílias do cemitério do desemprego.
No caso brasileiro a ordem dos fatores alterou dramaticamente a soma do produto.
Aqui, ‘Herbert’ veio depois de ‘Franklin’.
Esse instalou com a determinação de ‘purgar’ um ciclo de traços rooseveltianos, ainda que imperfeitos, porque borrados de juros altos, liberdade para a conta de capitais, câmbio valorizado e, sobretudo, seu pecado capital: descaso com o papel fiador dos assalariados, do qual o criador do New Deal norte-americano nunca se descuidou.
Mesmo acusado de comunista pelo colunismo isento da época, Roosevelt não abriu mão de promover a sindicalização em massa dos trabalhadores que recuperaram seu emprego no New Deal.
Só assim o líder democrata resistiu a Wall Street e aos viúvos dos mercados desregulados.
No Brasil, todo o aparato público, incluindo-se o judiciário e o legislativo, mas também a mídia e os sindicatos dos patrões, condensam-se no jato de um imenso wap de desinformação, ‘desinfecção’ e des-emancipação, sem o contraponto organizado dos principais alvos do wap regressivo.
É disso que trata a faxina em curso.
Não de recuperar.
Mas de produzir ruínas.
Para soterrar com elas o pacto social desenhado na Carta de 1988.
E impor no seu lugar outro, oposto, sem a devida consulta à sociedade.
Na linha do jato desinfetante encontram-se o pleno emprego, a maior participação dos assalariados no fluxo da renda (mas não no estoque), o espraiamento dos direitos sociais, a multiplicação das oportunidades ascensionais pela educação, as iniciativas de afirmação cidadã e os instrumentos endógenos de comando do desenvolvimento, como o pré-sal, o BNDES, o banco dos Brics e a Unasul.
Enfim, a ‘imundícia’ toda que aguçou um conflito de classes protelado, inicialmente, por um desequilíbrio fiscal e monetário decorrente da elevada taxa de juro paga pelo Estado para tomar emprestado aquilo que deveria ser taxado.
Era uma corrida contra o tempo hipotecada na hipótese de uma recuperação saneadora do comércio internacional, que afinal não veio.
Os efeitos colaterais dessa corrida para frente assumiriam,assim, contornos de novos círculos de ferro cada vez mais estreitos.
Inclua-se aí o custo desindustrializante do real valorizado para atenuar outra expressão da escalada do conflito, a inflação, mitigada com importações.
Mas também a asfixia do investimento público e privado no tríplice garrote do juro alto, dos subsídios inúteis ao investimento produtivo num ambiente rentista e do desequilíbrio progressivo nas contas externas.
Não, senhores colunistas, não estamos diante do cqd ‘da culpa da Dilma’.
O nome disso é luta de classes.
Condicionada, no caso, por uma correlação de forças na qual a desorganização popular, de um lado, e a reengenharia midiática, de outro, engessariam o poder de iniciativa do governo.
A distinção é preciosa.
Não tanto para expor ao sol a toxidade da narrativa conservadora.
Mas, sobretudo, para evidenciar os desafios –graúdos-- no passo seguinte da luta pela construção de uma verdadeira democracia social no país.
‘A culpa da Dilma’, na verdade, camufla dois incômodos com uma só cajadada.
De um lado, releva a força determinante da sabotagem golpista, que semeava a ingovernabilidade já em 2013 para colher frutos nas urnas de 2014 --ou fora delas, se necessário, como foi.
De outro, dribla a fragilidade crucial decorrente da ausência de organização popular compatível com a transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país.
Mais que isso.
Coloca as forças progressistas diante de uma realidade histórica com a qual tem evitado se defrontar, mas que não poderá mais postergar na corrida para 2018.
Não é uma referência nova: 1964 já o havia demonstrado.
Mas se reafirmou agora com virulência dos rebotes históricos, para sacudir a memória adormecida.
Ao primeiro sinal de aguçamento da disputa pela riqueza, a elite brasileira recusa-se terminantemente a discutir soluções coletivas para os gargalos da sociedade e do seu desenvolvimento.
Opta pelo golpe em defesa do interesse unilateral.
Os fatos são autoexplicativos, mas não custa rememorar o abc dos mandatos históricos em nosso tempo.
A verdade é que mesmo aquelas tarefas denominadas genericamente de ‘revolução democrática’, constituídas basicamente da universalização do acesso aos marcos da civilização, não tem mais sujeito histórico nas elites.
A liderança do processo terá que ser assumida por uma frente política solidamente capilarizada em organização popular de base, aliada a blocos de identidades minoritárias, assentada em respostas à emergência climática, à desigualdade alarmante nas esferas da riqueza e da tecnologia, abraçada a novas formas de viver e de produzir e fortemente comprometida em traduzir tudo isso numa desassombrada estratégia de inovação em políticas públicas que, de fato, democratize e valorize o bem comum.
Ou isso, ou a queda da Bastilha nunca ocorrerá por essas bandas.
Partidos progressistas de massa e comitês de base espalhados por todo o país, se existissem de fato, teriam impedido a reengenharia midiática de acuar a nação na encruzilhada da falsa disjuntiva que hoje opõe a purga de direitos ao caos econômico.
Houvesse a organização requerida, a alternativa crível ao desmonte seria a taxação fiscal da riqueza, não a privação adicional cobrada da pobreza.
É a consciência desse fio da navalha que explica a virulência recessiva imposta à sociedade brasileira nesse momento, como um instrumento funcional de desmobilização política e desarticulação ideológica enfeixadas no grito de guerra conservador: ‘Culpa da Dilma’.
Ou seja, um dos mais violentos programas de ‘des-emancipação’ social já registrados em tempos de paz e por um período tão longo de duas décadas seguidas.
‘Significa que toda uma futura geração está condenada, o que é inaceitável’.
É assim que o relator das Nações Unidas para Pobreza Extrema, Philip Alston, qualificou a PEC do Teto, em dezembro do ano passado, antes ainda dos desdobramentos atuais nas esferas da previdência e pensões rurais, do salário mínimo e dos direitos trabalhistas (pela terceirização).
Só uma recessão diluviana poderia escorar um projeto de poder dessa natureza, atado a vinte anos de concordata social, durante os quais os detentores da riqueza –e agora do poder— avocam-se a prerrogativa de desativar todo o aparato de direitos sociais e trabalhistas arduamente acumulados pelo povo brasileiro desde Vargas.
A abrangência e a brutalidade do que está em curso corresponde a uma ruptura do pacto da sociedade --sem consulta-la, repita-se-- o que dificilmente se completará sem atingir o núcleo duro das garantias individuais, as liberdades civis e os direitos políticos.
Os liberais que hoje se oferecem à barganha com o golpe, incluindo-se um pedaço da classe média que supõe assim garantir suas ‘liberdades’ individuais, rapidamente serão afrontados pela violência de uma lógica que tem na ganância do mercado, sobretudo financeiro, o único compromisso sagrado de liberdade a preservar.
De certa forma, o que se assiste hoje no Brasil, já se disse aqui, é a viagem de volta ao cuore liberal reinante no ventre do capitalismo selvagem dos séculos XVIII e XIX.
O termo ‘des-emancipação’, cunhado pelo filósofo marxista italiano, Domenico Losurdo, descreve o moedor de carne humana em ação nesses tempos pioneiros.
Mais que negar novos direitos, o que ressalta do bordão atual das reformas é a mesma determinação de ‘des-emancipar’.
Ou seja, devolver ao absoluto desamparo a parcela majoritária da sociedade, privada dos meios pelos quais se reproduziam as relações de poder e produção no capitalismo.
É disso que se trata no caso das reformas trabalhista e previdenciária anunciadas pelo golpe no Brasil. O mesmo se pode dizer das consequências da PEC 55 no acesso a direitos públicos essenciais --a escola e a saúde, entre outros.
O conjunto requer uma ruptura de ciclo histórico para se instalar. Mais que um golpe parlamentar, o regime da ‘des-emacipação ‘ no século XXI exige a fascistização dos instrumentos de Estado.
A escalada policial de um Ministério Público e de um juiz que assombram a cidadania brasileira ao subordinarem o Estado de Direito a conveniências partidárias ilustra o calibre da espiral em marcha.
Dela não escapará a classe média. Hoje simpática ao regime, amanhã será ela também tragada no arrastão de direitos e escolhas individuais, pela anemia das instituições e a desativação de sistemas regulatórios imiscíveis com a supremacia dos mercados entregues a sua própria lógica.
A lavagem ideológica promovida pela reengenharia midiática inocula na sociedade a anestesiante ampola da naturalização de uma ruptura que hoje a imobiliza, amanhã a escravizará.
A receita do Estado mínimo suprime do arsenal público não apenas as regulações que asseguram os diferentes espaços de escolha e liberdade, como a estabilidade da taxa de investimento na economia.
Sem financiamento público, grandes obras e orçamentos sociais, o futuro do mundo do trabalho, inclusive o da classe média, insista-se, será debulhado num angu de terceirizações, precariado e ‘bicos’, que podem até receber denominações em inglês, mas nem por isso serão outra coisa que não o declive social depressivo e aterrador.
Esse é o preço oculto naquilo vendido pela mídia nesse momento como o repto redentor ao lulopopulismo. Ou seja, uma subordinação escravizante do desenvolvimento, da democracia, da política e demais instancias da sociedade –inclusive a subjetividade do nosso tempo, aos impulsos irrefletidos dos mercados ordenados pelo retorno especulativo incompatível com a sobrevivência da economia, da sociedade e da natureza.
A estagnação atual nas economias ricas deveria servir de alerta ao evidenciar a falta que faz tudo aquilo que a democracia e o Estado cederam ao mercado nessas sociedades nos anos de apogeu do neoliberalismo
É nesse deserto do real que o conservadorismo brasileiro se inspira para golpear a democracia e reproduzir aqui receita que estrebucha no planeta.
O que as ressurgências do capitalismo selvagem oferecem à classe média brasileira agora–como o fazem os ideólogos da terceirização e da prevalência do negociado sobre o legislado na CLT-- é a premiação do mérito individual sobre o direito social universal.
A platitude baseia-se na crença de que a construção da sociedade é movida pelo interesse egoísta extrapolado, mecanicamente, na rudimentar ilação de que a luta individual pela felicidade leva ao fastígio coletivo.
Aclamados pensadores liberais, como Adam Smith, condicionavam na verdade a centralidade do interesse próprio à irrepreensível obediência a referências morais e religiosas.
Esse corpo moral percorreria um trilho ético rigoroso, rumo a uma comunidade de laços e valores impecavelmente compartilhados.
Nesse ambiente sacro o papel profano do Estado seria mínimo.
No capitalismo realmente existente as coisas se dão de forma algo diversa.
Não é difícil –aliás é muito fácil— deduzir o resultado da supremacia do interesse egoísta em sociedades nas quais, ao lado da luta desesperada de milhões de indivíduos desvalidos, avultam interesses corporativos desmesurados, sobretudo aqueles cujo produto é o dinheiro, sua reprodução e as suas consequências.
A crise do nosso tempo é obra dessa assimetria leonina, vendida aqui como solução.
A inexcedível capacidade das grandes corporações submeterem indivíduos atomizados deixa pouco espaço à acomodação espontânea dos interesses contrapostos em uma sociedade onde tudo, rigorosamente tudo, passa a ser objeto de compra, venda e lucro.
Não há mais espaços sagrados.
Ou a regulação democrática impõe limites a sede do capital, ou a sociedade toda desidratará em servidão e catatonia.
É sob esse pano de fundo que a ‘des-emancipação’ toca as trombetas do apocalipse social no Brasil, cujo Estado foi assaltado pelos mordomos dos mercados.
A marcha dos acontecimentos não mente.
A estratégia de ‘des-emancipação’ não se satisfará em extorquir uma década de ganhos reais de poder de compra dos salários.
A faxina requerida é tão virulenta que convoca o árduo trabalho do escovão repressivo e do detergente ideológico para dissolver qualquer traço de resistência indevidamente alojado em estruturas de produção, consumo, serviços, meio ambiente e participação política.
As sirenes da história anunciam confrontos intensos no front da liberdade e da economia.
A eleição de 2018 pode ser a derrubada da Bastilha.
Mas para isso as forças progressistas terão que se convencer, de uma vez por todas –e convencer parte da classe média-- que direitos clássicos das revoluções burguesas do século XVIII, hoje, só tem viabilidade amarrados a uma poderosa alavanca de organizações sociais, que subordinem a força criativa dos mercados aos projetos, metas e direitos pactuados pela democracia.
Revolução francesa no Brasil é igual a Lula comitês de base.
Ou isso, ou a restauração em curso.
Com a violência neoliberal ungida em Imperador do Brasil.
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