terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Pacote de Natal: Espumas flutuantes

por Ricardo Carneiro
Todos que assistiram ao anúncio do pacote de Natal, com as presenças do presidente da república, das duas casas do Congresso, e dos ministros da área econômica, se sentiram um tanto quanto ludibriados. O espetáculo midiático para anunciar quase nada, suscitou mesmo uma sensação de irritação. Desde o seu início, o Governo Temer, certamente iluminado por seus aliados internos; o PSDB e seus quadros, e externos; com destaque para o grande inspirador das políticas ortodoxas, o FMI, tem feito do discurso ideológico o fio condutor da política econômica. As únicas mudanças práticas que aprova são aquelas cujos efeitos poderão se manifestar no médio e longo prazos. Mas, dessa vez exagerou, pela irrelevância das medidas diante do caráter inusitado da recessão.
Um breve olhar sobre os dois últimos anos, nos mostra um quadro assustador: a queda da renda per capita é uma das maiores da história do Brasil contemporâneo, só comparável, e podendo se tornar ainda maior, às recessões do Plano Collor, da crise da dívida no início dos anos 1980, e da grande depressão dos anos 1930. Todavia, não é só a contração da renda que lhe confere um caráter singular, mas o fato de todos os atores econômicos: famílias, empresas e governos, estarem altamente endividados. Não estamos assim num ciclo convencional, movido apenas por uma desaceleração ou mesmo contração da demanda agregada. Esta ocorre num contexto de desequilíbrios patrimoniais significativos, e os agrava.
Para entender a situação atual há que recuar um pouco, para o primeiro Governo Dilma. Ao final de 2014, a frustração do crescimento deixou vários agentes que apostaram nele, empresas e famílias, excessivamente alavancados. Ademais, o conjunto de medidas postas em prática em 2015, e continuadas pelo Governo Temer, agravaram o quadro. O choque de juros, câmbio e tarifas, desequilibrou a situação patrimonial e corrente dos atores que adicionalmente tiveram que lidar com a queda de suas receitas ou rendas. Em resumo, variações autônomas nos valores das dívidas ou mudanças nos termos de suas contratações, combinadas com queda de receitas levaram os agentes a uma situação de fragilidade financeira.
Os vários estudos e indicadores, sobre a situação financeira das famílias e empresas mostram uma situação desalentadora, sobretudo das últimas, muitas delas em uma posição Ponzi, ou seja, as receitas são insuficientes para cobrir o serviço da dívida. Quando isto ocorre, os atores econômicos buscam continuadamente se desalavancar e é exatamente isto que confere especificidade ao ciclo atual: seu caráter financeiro. Sua reversão requer medidas de política econômica abrangentes. De um lado, essas medidas têm que buscar equacionar o endividamento dos atores econômicos e, de outro, impulsionar o circuito da renda. Mesmo assim, o efeito será lento em razão da esterilização de parte dessa última com pagamento de dívidas. A atual queda do estoque de crédito da economia é a melhor ilustração de como isto está ocorrendo.
Das medidas recentes, anunciadas pelo Governo, dois conjuntos lidam com a questão do endividamento. O primeiro deles, refere-se às dívidas tributárias de empresas e famílias, possibilitando-se a renegociação, o diferimento de seu pagamento no tempo, incluindo, no caso das empresas, a utilização de créditos tributários. Ao mesmo tempo, permitiu-se para as empresas, as renegociações das dívidas oriundas dos repasses via rede bancária para compra de equipamentos financiadas no âmbito do BNDES/ PSI. O prazo será dilatado, mas a taxa de juros maior, pois será a TJLP atual. As medidas não são ruins, elas são apenas insuficientes. Na verdade, melhoram o fluxo de caixa das empresas e famílias ao reduzirem seus pagamentos imediatos, mas deixam suas situações patrimoniais inalteradas.
Pensar em criar condições para a retomada da economia requer, portanto, implementar medidas econômicas em dois planos. No âmbito tributário, ampliar o alcance das medidas propostas, permitindo um deságio substancial das dívidas dos agentes, além do seu pagamento diferido. O mesmo necessita ser feito com as dívidas ante os bancos, e ajudaria muito reduzir a taxa de juros básica da economia, hoje num patamar exótico. Mas, como foi assinalado, é necessário impulsionar o crescimento da renda. Numa economia deprimida como a brasileira, isto não virá do setor privado. A história mostra à saciedade que somente a ação do Estado é capaz de fazer isto, por meio de um programa de obras públicas ou de transferência de renda aos mais pobres.
O Governo Temer tem outro entendimento do funcionamento da economia e optou por investir em iniciativas de longo prazo – PEC 55, reformas previdenciária e trabalhista etc -  com a crença de que expectativas favoráveis moverão um setor privado fragilizado na direção da retomada dos gastos. Poder-se-ia neste caso, e com grande propriedade, recuperar a observação de Keynes, de que no longo prazo estaremos todos mortos. De outra perspectiva, e considerando as proporções épicas da atual recessão no Brasil, contraposta às medidas anunciadas, pode-se destacar um pequeno verso do poema de Castro Alves cujo título reproduz-se neste artigo: — Uma esteira de espumas.. — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. — Um punhado de versos... —espumas flutuantes no dorso fero da vida!...
Ricardo de Medeiros Carneiro - Professor na Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia


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