segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O mito da apatia e a urgência dos nossos dias



O vapor político que se acumula na fornalha da incerteza, das privações e do asco aguarda um sinal crível para se traduzir em ação política

por: Saul Leblon
A apatia da sociedade diante do martelete conservador que esfarela seus direitos e esperanças pode ser só aparente.

O vapor político que se acumula na fornalha da incerteza, das privações, da humilhação, do asco e da revolta não é negligenciável.

Pior que o presente de perdas avassaladoras é a perspectiva do futuro sonegado.

Em cada ciclo e em diferentes dimensões da vida, da infância à velhice, do emprego à saúde, a trajetória que se esboça faz prender a respiração e perscrutar o vazio: brasileiros humildes e amplos segmentos de classe média (mesmo que ainda não saibam disso) foram enganchados em um frágil bote à deriva.

O Brasil que se desenha no horizonte é um país de vidas ordinárias, presas num círculo de ferro de direitos mitigados, de retrocessos geracionais e de oportunidades asfixiadas no moedor de uma desigualdade irredutível.

Trabalhar duro para morrer pobre é a oferta conservadora à vasta maioria da nação.

Acionar o catalisador dessa caldeira, para gerar a transformação social e política do país a que fomos reduzidos, para o Brasil que queremos ser – em direção ao qual já havíamos caminhado antes, como na uma década em meia de avanços --  é o desafio histórico das forças progressistas em 2018.

Um requisito indispensável é compreender o novo protagonista e  o novo locus envolvidos nessa travessia.

Um ciclo do desenvolvimento brasileiro se esgotou.

Outro terá que ser reinventado em um mundo marcado por transformações políticas e estruturais que condicionam o tabuleiro dessa transição.

A participação da indústria brasileira no PIB, por exemplo, que já foi de 21,6% em 1985, despencou mais de 10 pontos percentuais nos últimos 30 anos.

 
Hoje ela oscila em torno de 11,5%, mesmo patamar de 1947.

Uma parte desse recuo deve-se a equívocos acumulados ao longo dos últimos 30 anos .

Câmbio valorizado e juros siderais facilitaram a captura de um pedaço da demanda interna  pela manufatura chinesa, ao mesmo tempo em que lubrificaram a mutação rentista do capital fabril.

Isso ajuda a entender o forte apoio do setor industrial ao golpe, ao lado do menor uso de capacidade instalada em vinte anos. 

É vital corrigir os erros das últimas décadas, mas há fatores estruturais que vieram para ficar.

Eles refletem a acelerada transformação do papel e da organização da indústria em sua nova morfologia global, e o consequente recuo de suas dimensões locais em contraposição ao avanço de atividades e ocupações que agregam menor valor ao PIB, ligadas ao setor de serviços.

Aqui e no resto do mundo, a indústria continuará a exercer seu papel decisivo e singular de adição e irradiação de produtividade, tecnologia e eficiência à engrenagem econômica do desenvolvimento.

Sem ela não haverá excedente para democratizar e disseminar a renda e a cidadania em uma sociedade com as dimensões e desafios da brasileira.

O fortalecimento industrial no país terá que ser feito em sintonia com a quarta revolução industrial --a da informatização de processos e robotização de tarefas--  prioritariamente concentrado em áreas nas quais o país detém o estado das artes, com é o caso da agricultura, da exploração de petróleo, entre outros.

A disseminação dos ganhos se dará pelas cadeias da demanda de insumos, com conteúdo nacional assegurado, bem como pela interação da pesquisa em suas múltiplas aplicações.

O emprego industrial, porém, como em todo o mundo,  será cada vez mais especializado e menos numeroso.

A consequência é que o trabalho característico do século XX centralizado e organizado pela fábrica não vai mais ordenar a sociedade do século XXI.

Isso envolve uma mudança de perspectiva social e política que não pode ser subestimada.

Ela terá que ser incorporada desde já como uma das balizas das iniciativas e propostas destinadas a reunir a ampla frente de forças da sociedade brasileira determinada a retomar o processo de distribuição de renda e de direitos interrompido pelo golpe de 2016.

A costura imediata desse tecido político estendido é um requisito para se reverter a escalada conservadora em marcha em todos os setores da vida nacional.

Se quisermos derrota-la amanhã, não podemos adiar a arregimentação orgânica, popular e programática para as vésperas do horário eleitoral de 2018.

É forçoso traduzi-la desde já em uma escalada de manifestações de amplos segmentos, o que só ocorrerá –nos moldes da Campanha das Diretas Já, como se exige--  se o catalisador do processo for um palanque presidencial progressista igualmente amplo e ecumênico.

Que seja, a exemplo daquele dos anos 80,  fraternalmente compartilhado por candidatos potenciais de vários campos, mas unidos por um mesmo compromisso: a sedimentação de um projeto comum para o Brasil.

Essa sedimentação passa pelo desafio de provar que suas diretrizes pertencem ao mundo das novas condições impostas pela produção capitalista e respondem às aspirações, urgências e transformações que ela suscita na vida brasileira.

O mundo novo do trabalho é o da dispersão dos serviços, da volatilidade até espacial das tarefas, da precariedade dos salários e dos vínculos informais impostos pela fragmentação dos mercados e atividades típicas do setor de serviços.

É esse dilaceramento que  a ‘reforma trabalhista’ do golpe toma como referência de virtude para generalizar e suprimir direitos instituídos e preservados pela Constituição Cidadã de 1988.

 Mesmo que essa supressão de conquistas seja revertida, a precoce dominância do setor de serviços na economia brasileira não vai regredir. A tendência é se ampliar.

A sorte da massa pulverizada de trabalhadores aí reunidos, desprovida frequentemente de direitos elementares, com ganhos rebaixados, carente de organização, identidade  e até mesmo de local fixo de atividade, decidirá em boa parte o destino do país no século XXI.

Melhorar as condições trabalhistas nesse universo é indispensável.

Mas não será suficiente para sua transformação em uma nova alavanca da cidadania.

O projeto para 2018 precisa dialogar desde agora com esse protagonista coletivo difuso, universalizando suas demandas em um projeto de vida melhor para toda a sociedade.

Se a esquerda não o fizer através de uma proposta capaz de resgatar o sonho em um Brasil renovado pelo guarda-chuva do bem comum, o populismo de extrema direita o fará.

E o fará como sabe fazer:  pelo canal do preconceito, do ódio, do obscurantismo, da violência política contra qualquer dissonância, de qualquer natureza e gênero.

A macroeconomia pós-golpe impõe mudanças inarredáveis para se governar um país em ambiente democrático com as novas características de inserção social predominantes na realidade do trabalho em nosso tempo.

A reforma tributária, por exemplo, é inexorável para se revogar a PEC do arrocho e permitir a construção de um sólido contraponto de serviços público condizentes com a dignidade da vida  no século XXI.

 Até o golpe já cogita taxar lucros e dividendos.

A única previdência social viável nas novas condições desse mercado, por sua vez, será aquela cotizada via imposto progressivo pago por toda a sociedade.

Por uma razão imperativa: o emprego mitigado do setor de serviços não vai gerar o salário capaz de prover a poupança futura de todos.

Ou ricos e pobres pagam em escala progressiva para um caixa único tributado pelo Estado, ou a maioria dos idosos morrerá em depósitos humanos de solidão e barbárie.

Se essas mudanças –como outras, caso da representação e da expressão da sociedade em uma reforma política --  virão por plebiscito ou constituinte específica é uma questão a ser decidida pela correlação de forças expressa nas urnas de 2018.

Uma coisa é certa: sem elas será impossível tirar o país do trilho do arrocho.

Arrebatar o sonho que leva multidões a dar o endosso a essas mudanças, porém, exige mais que descrever equações de contabilidade fiscal.

Exige a prefiguração crível de um  Brasil onde caibam  todos os seus segmentos sociais em convivência digna e isonômica no acesso às conquistas básicas da civilização.

Isso não acontecerá a partir da convergência de ganhos incrementais por categorias isoladas.

Será nas esfera pública da vida social, nos espaços comuns a todos, de trabalhadores especializados a motoqueiros delivery,  da classe média a assalariados pobres, que a democracia social será ancorada e construída.

Esse espaço ecumênico generoso será constituído  de bens e equipamentos públicos, de serviços republicanos de alta qualidade, bem como de direitos universais bancados por receita fiscal justa e competente, a partir de  avanços progressivos pactuados por eleições e plebiscitos.

A cidade da cidadania, com espaços, equipamentos e atividades de refinada qualidade e acesso universalizado será a ‘Brasília’ da nossa geração.

Nesse guarda-chuva de uma democracia revitalizada devem caber todos os cidadãos em todos os seus ciclos de vida: da criança em idade de creche, ao jovem ávido por experiências e oportunidades, passando pelo idoso merecedor de dignidade e desfrute social.

Dar forma crível a essa travessia é a esfinge de cuja decifração dependem as linhas de passagem para uma verdadeira e duradoura vitória contra o conservadorismo que empurra o Brasil para a lógica oposta.

O vapor político que se acumula na fornalha da incerteza, das privações e do asco aguarda esse sinal crível para se traduzir em ação política vigorosa e renovadora.



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