O vapor político que se acumula na
fornalha da incerteza, das privações e do asco aguarda um sinal crível para se
traduzir em ação política
por: Saul Leblon
A apatia
da sociedade diante do martelete conservador que esfarela seus direitos e
esperanças pode ser só aparente.
O vapor
político que se acumula na fornalha da incerteza, das privações, da humilhação,
do asco e da revolta não é negligenciável.
Pior que
o presente de perdas avassaladoras é a perspectiva do futuro sonegado.
Em cada
ciclo e em diferentes dimensões da vida, da infância à velhice, do emprego à
saúde, a trajetória que se esboça faz prender a respiração e perscrutar o
vazio: brasileiros humildes e amplos segmentos de classe média (mesmo que ainda
não saibam disso) foram enganchados em um frágil bote à deriva.
O Brasil
que se desenha no horizonte é um país de vidas ordinárias, presas num círculo
de ferro de direitos mitigados, de retrocessos geracionais e de oportunidades
asfixiadas no moedor de uma desigualdade irredutível.
Trabalhar
duro para morrer pobre é a oferta conservadora à vasta maioria da nação.
Acionar o
catalisador dessa caldeira, para gerar a transformação social e política do
país a que fomos reduzidos, para o Brasil que queremos ser – em direção ao qual
já havíamos caminhado antes, como na uma década em meia de avanços
-- é o desafio histórico das forças progressistas em 2018.
Um
requisito indispensável é compreender o novo protagonista e o novo
locus envolvidos nessa travessia.
Um ciclo
do desenvolvimento brasileiro se esgotou.
Outro
terá que ser reinventado em um mundo marcado por transformações políticas e
estruturais que condicionam o tabuleiro dessa transição.
A
participação da indústria brasileira no PIB, por exemplo, que já foi de 21,6%
em 1985, despencou mais de 10 pontos percentuais nos últimos 30 anos.
Hoje ela
oscila em torno de 11,5%, mesmo patamar de 1947.
Uma parte
desse recuo deve-se a equívocos acumulados ao longo dos últimos 30 anos .
Câmbio
valorizado e juros siderais facilitaram a captura de um pedaço da demanda
interna pela manufatura chinesa, ao mesmo tempo em que lubrificaram
a mutação rentista do capital fabril.
Isso
ajuda a entender o forte apoio do setor industrial ao golpe, ao lado do menor
uso de capacidade instalada em vinte anos.
É vital
corrigir os erros das últimas décadas, mas há fatores estruturais que vieram
para ficar.
Eles
refletem a acelerada transformação do papel e da organização da indústria em
sua nova morfologia global, e o consequente recuo de suas dimensões locais em
contraposição ao avanço de atividades e ocupações que agregam menor valor ao
PIB, ligadas ao setor de serviços.
Aqui e no
resto do mundo, a indústria continuará a exercer seu papel decisivo e singular
de adição e irradiação de produtividade, tecnologia e eficiência à engrenagem
econômica do desenvolvimento.
Sem ela
não haverá excedente para democratizar e disseminar a renda e a cidadania em
uma sociedade com as dimensões e desafios da brasileira.
O
fortalecimento industrial no país terá que ser feito em sintonia com a quarta
revolução industrial --a da informatização de processos e robotização de
tarefas-- prioritariamente concentrado em áreas nas quais o país
detém o estado das artes, com é o caso da agricultura, da exploração de
petróleo, entre outros.
A
disseminação dos ganhos se dará pelas cadeias da demanda de insumos, com
conteúdo nacional assegurado, bem como pela interação da pesquisa em suas
múltiplas aplicações.
O emprego
industrial, porém, como em todo o mundo, será cada vez mais
especializado e menos numeroso.
A
consequência é que o trabalho característico do século XX centralizado e
organizado pela fábrica não vai mais ordenar a sociedade do século XXI.
Isso
envolve uma mudança de perspectiva social e política que não pode ser
subestimada.
Ela terá
que ser incorporada desde já como uma das balizas das iniciativas e propostas
destinadas a reunir a ampla frente de forças da sociedade brasileira
determinada a retomar o processo de distribuição de renda e de direitos
interrompido pelo golpe de 2016.
A costura
imediata desse tecido político estendido é um requisito para se reverter a
escalada conservadora em marcha em todos os setores da vida nacional.
Se
quisermos derrota-la amanhã, não podemos adiar a arregimentação orgânica,
popular e programática para as vésperas do horário eleitoral de 2018.
É forçoso
traduzi-la desde já em uma escalada de manifestações de amplos segmentos, o que
só ocorrerá –nos moldes da Campanha das Diretas Já, como se
exige-- se o catalisador do processo for um palanque presidencial
progressista igualmente amplo e ecumênico.
Que seja,
a exemplo daquele dos anos 80, fraternalmente compartilhado por
candidatos potenciais de vários campos, mas unidos por um mesmo compromisso: a
sedimentação de um projeto comum para o Brasil.
Essa
sedimentação passa pelo desafio de provar que suas diretrizes pertencem ao
mundo das novas condições impostas pela produção capitalista e respondem às
aspirações, urgências e transformações que ela suscita na vida brasileira.
O mundo
novo do trabalho é o da dispersão dos serviços, da volatilidade até espacial
das tarefas, da precariedade dos salários e dos vínculos informais impostos
pela fragmentação dos mercados e atividades típicas do setor de serviços.
É esse
dilaceramento que a ‘reforma trabalhista’ do golpe toma como
referência de virtude para generalizar e suprimir direitos instituídos e
preservados pela Constituição Cidadã de 1988.
Mesmo
que essa supressão de conquistas seja revertida, a precoce dominância do setor
de serviços na economia brasileira não vai regredir. A tendência é se ampliar.
A sorte
da massa pulverizada de trabalhadores aí reunidos, desprovida frequentemente de
direitos elementares, com ganhos rebaixados, carente de organização,
identidade e até mesmo de local fixo de atividade, decidirá em boa
parte o destino do país no século XXI.
Melhorar
as condições trabalhistas nesse universo é indispensável.
Mas não
será suficiente para sua transformação em uma nova alavanca da cidadania.
O projeto
para 2018 precisa dialogar desde agora com esse protagonista coletivo difuso,
universalizando suas demandas em um projeto de vida melhor para toda a
sociedade.
Se a
esquerda não o fizer através de uma proposta capaz de resgatar o sonho em um
Brasil renovado pelo guarda-chuva do bem comum, o populismo de extrema direita
o fará.
E o fará
como sabe fazer: pelo canal do preconceito, do ódio, do
obscurantismo, da violência política contra qualquer dissonância, de qualquer
natureza e gênero.
A macroeconomia
pós-golpe impõe mudanças inarredáveis para se governar um país em ambiente
democrático com as novas características de inserção social predominantes na
realidade do trabalho em nosso tempo.
A reforma
tributária, por exemplo, é inexorável para se revogar a PEC do arrocho e
permitir a construção de um sólido contraponto de serviços público condizentes
com a dignidade da vida no século XXI.
Até
o golpe já cogita taxar lucros e dividendos.
A única
previdência social viável nas novas condições desse mercado, por sua vez, será
aquela cotizada via imposto progressivo pago por toda a sociedade.
Por uma
razão imperativa: o emprego mitigado do setor de serviços não vai gerar o
salário capaz de prover a poupança futura de todos.
Ou ricos
e pobres pagam em escala progressiva para um caixa único tributado pelo Estado,
ou a maioria dos idosos morrerá em depósitos humanos de solidão e barbárie.
Se essas
mudanças –como outras, caso da representação e da expressão da sociedade em uma
reforma política -- virão por plebiscito ou constituinte específica
é uma questão a ser decidida pela correlação de forças expressa nas urnas de
2018.
Uma coisa
é certa: sem elas será impossível tirar o país do trilho do arrocho.
Arrebatar
o sonho que leva multidões a dar o endosso a essas mudanças, porém, exige mais
que descrever equações de contabilidade fiscal.
Exige a
prefiguração crível de um Brasil onde caibam todos os
seus segmentos sociais em convivência digna e isonômica no acesso às conquistas
básicas da civilização.
Isso não
acontecerá a partir da convergência de ganhos incrementais por categorias
isoladas.
Será nas
esfera pública da vida social, nos espaços comuns a todos, de trabalhadores
especializados a motoqueiros delivery, da classe média a
assalariados pobres, que a democracia social será ancorada e construída.
Esse
espaço ecumênico generoso será constituído de bens e equipamentos
públicos, de serviços republicanos de alta qualidade, bem como de direitos
universais bancados por receita fiscal justa e competente, a partir
de avanços progressivos pactuados por eleições e plebiscitos.
A cidade
da cidadania, com espaços, equipamentos e atividades de refinada qualidade e
acesso universalizado será a ‘Brasília’ da nossa geração.
Nesse
guarda-chuva de uma democracia revitalizada devem caber todos os cidadãos em
todos os seus ciclos de vida: da criança em idade de creche, ao jovem ávido por
experiências e oportunidades, passando pelo idoso merecedor de dignidade e
desfrute social.
Dar forma
crível a essa travessia é a esfinge de cuja decifração dependem as linhas de
passagem para uma verdadeira e duradoura vitória contra o conservadorismo que
empurra o Brasil para a lógica oposta.
O vapor
político que se acumula na fornalha da incerteza, das privações e do asco
aguarda esse sinal crível para se traduzir em ação política vigorosa e
renovadora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário