Martín Granovsky - Pagina/12 - extraído da Carta Maior
– Depois da repressão aos trabalhadores da avícola Cresta Roja, houve novo episódio com balas de borracha a queima roupa aos funcionários do governo regional de La Plata. Faz parte de um plano? Uma nova forma de agir?
– Antes de tudo, os Estados modernos devem cuidar dos rituais. Por mais que consideremos que existem funcionários ociosos ou apadrinhados, antes de qualificar é preciso colocar a pessoa para trabalhar, e demitir aquele que não trabalha. Não se pode demitir todos indiscriminadamente, porque dessa forma se destrói um ritual que custou muito construir: não se “fabricam” funcionários de um dia para outro. Provocar desemprego massivo para depois colocar gente própria nos cargos é coisa que se fazia há um século atrás, não de um Estado contemporâneo, que necessita de rituais fortes e consolidados. Com relação à repressão, é uma burrice política perigosíssima. Vão acabar matando alguém desse jeito, não sejam tão brutos. Estão gerando uma massa de gente com raiva. Ou será que isso é uma provocação? Querem que alguém se descontrole para justificar um homicídio? Isso, além de ser um crime, teria um alto custo político. O mundo popular deve refletir urgentemente sobre como conduzir essas pessoas, contê-las. É preciso evitar que respondam a essas provocações. Não se pode cair nessa armadilha mortal.
– De que modo?
– Nada de violência, nem a mais mínima, é preciso dar outro tipo de resposta. Esse deve ser o lema. Seguir protestando quando se deve protestar, mas aguentando de pé. Não obstruir ruas nem estradas, deixar os veículos passarem, ocupar uma parte apenas. Não dar pretexto para a criminalização. Protestar com a presença, como deve ser, e de pé, firmes. Sem violência. Sem dar motivos que possam ser usados para justificar a repressão. Até para ser mais fácil identificar alguém que atua de forma suspeita, um possível infiltrado ou um mais exaltado que deve ser contido rapidamente. Muito cuidado, porque essas coisas podem custar vidas.
– Resistência pacífica.
– Que, como toda resistência pacífica, tem seu preço: consiste em aguentar as provocações que tentam fazer com que os manifestantes sejam vistos como os violentos. Às vezes é difícil conter, mas sempre é possível. No final sempre se ganha. Gandhi levou a Índia à independência assim. Mesmo contra uma ditadura terrível, se um dia a população decide simplesmente não sair mais de suas casas, a ditadura cai. Não necessitamos novos mártires, já temos muitos, até demais. Necessitamos pessoas racionais e lutadoras, mas vivas, bem vivas.
– Os Decretos de Necessidade e Urgência (conhecidos como DNU) transformaram os cidadãos em constitucionalistas. Como se deve ler e interpretar a Constituição?
– Com bom senso, que é a famosa “racionalidade”. As autoridades democráticas podem fazer muitas coisas. Podem escolher se farão isso ou não farão aquilo. Isso se chama política. Mas o que não se pode é “fazer qualquer coisa”, e menos ainda invocar necessidades que não existem. Que urgência existe em desarticular a Lei de Meios e os organismos criados por ela? Quem necessita disso urgente é o Grupo Clarín, não o governo.
– Então, qual é a urgência do governo com respeito a esse decreto?
– Não sei. Que necessidade e urgência pública existe para esse decreto? Alguém sabe me dizer que urgência pública existe em passar o mérito sobre a interceptação de comunicações telefônicas da Procuradoria para a Corte Suprema? Será que os promotores não estão realizando corretamente, como os juízes estão solicitando? Há denúncias de juízes contra a Procuradoria por não intervenção de telefones solicitados? Os criminosos estão escapando por causa disso? Enfim, é claro que não existe essa urgência, de forma que a própria Corte resolveu postergar tudo até fevereiro. Então, não será esse um tema que poderia ser discutido no Congresso, em março, caso a Corte não o torne efetivo até fevereiro? O bom senso é o que determina quando algo é racional, mesmo quando a gente não gosta. E quando não é racional, mesmo quando a gente goste. A necessidade e a urgência não se podem inventar, devem responder à realidade. Não se pode invocar urgência só por vontade própria. Se esse critério se tornar norma, temo que, no futuro, podarão invocar a urgência em aplicar até mesmo o artigo 23 da Constituição.
– A atribuição do Presidente de estabelecer o estado de sítio e suspender garantias constitucionais.
– Claro, é um artigo da Constituição. Mas isso não quer dizer que pode se inventar uma realidade para que, em qualquer momento, nos metam nesse estado de sítio. Aí sim estaríamos todos em liberdade condicional. O tom usado para a reforma, através desses DNU, como o usado contra a Lei de Meios, me fez lembrar o decreto 4161, de Pedro Eugenio Aramburu (ditador argentino), em março de 1956. O que estão fazendo me faz pensar que o governo pensa que é como uma “metralhadora”, tentando derrubar a “ditadura cristinista”. Só falta um decreto que condene todos os que falem sobre o peronismo ou cante seus hinos. Quando um decreto de necessidade e urgência não responde a nenhuma necessidade, a nenhuma urgência não é constitucional, porque é uma simples lei ditada pelo Poder Executivo, o que se está dizendo é que está proibido legislar. Nós já vimos uma manobra muito perigosa: por um lado, a multiplicação de decretos sem necessidade nem urgência, ou seja, de decretos-lei, ao estilo dos regimes “de fato” e, por outro, a tentativa de introduzir dois juízes na Corte Suprema através de decretos, com o óbvio objetivo de fazer com que esses decretos-lei sejam declarados constitucionais, ou pelo menos que adiem qualquer decisão que os faça perder vigência. Creio que a manobra não deu certo, mas a intenção se mantém.
– A dúvida sobre o por quê de invocar a urgência e a necessidade pode ter uma resposta simples: à primeira vista o novo governo terá o Congresso contra si.
– Sim, mas a necessidade constitucional não pode ser entendida como a necessidade política de evitar o Congresso. Isso é uma anormalidade. Se o Executivo legisla através dos decretos-lei porque o Congresso não sancionaria a lei que se quer aprovar, por que não o fecha logo e assume sua quota de poder? A necessidade constitucional deve ser uma necessidade republicana: a necessidade existe quando há perigo de algo para a República, para o país. Devo ascender a um oficial das Forças Armadas porque pode haver um problema de defesa nacional, por exemplo. Devo nomear um embaixador porque uma negociação crucial está em risco. Devo nomear um juiz porque a Justiça não se move e não há um substituto, e há delinquentes que podem ficar soltos. Mas não há nenhuma necessidade republicana se ascendo o meu primo subtenente ao cargo de general, ou se quero nomear o meu cunhado como embaixador na Síria, para mandar ele para longe. Ou se quero nomear os meus compadres como ministros da Corte Suprema e sei que o Senado não aceitaria. Isso não é uma necessidade republicana, é pura e simplesmente esquivar o sistema de pesos e contrapesos da Constituição. Não precisa ser jurista para entender isso. É o que diz o bom senso.
– Qual seria o objetivo de fomentar a presença massiva de ex-gerentes ou altos executivos de empresas multinacionais em importantes cargos do Estado?
– Sinceramente, creio que não se trata de um plano. É algo mais simples que isso: se trata de uma forma que adquirir a etapa superior do colonialismo que vivemos. O neocolonialismo já acabou. No mundo de hoje, as corporações mandam e competem. Nem Mr. Obama nem Frau Merkel estão fazendo o que querem. O poder político em todo o planeta está sitiado pelas corporações multinacionais, controladas pelos burocratas, os CEOs. Não são os donos do capital. Não são os Henry Ford nem os gordos com correntinha de ouro e charuto das caricaturas de jornal de outras épocas. São gerentes, burocratas que têm como missão obter para a sua corporação a melhor renda no menor tempo. Se não o fazem serão jogados de lado e substituídos por outros que esperam a sua vez de fazer o mesmo. Por isso digo que não é um plano, mas sim uma nova forma de reinado. Pura e simplesmente. Eles são os que mandam, as multinacionais, com seus agentes em funções políticas. Não há um partido político em combinação com o establishment que funciona como fusível. Não. Diretamente, tomaram o poder, sem mediação política. Já não nos ocupam por meio de oligarquias nem por nossas próprias Forças Armadas, aquelas que foram alienadas no Panamá, não precisam mais, e tampouco dos cursos ditados por fascistas franceses. O que acontece agora é que as corporações tomaram o comando da economia e da política através de seus CEOs. É um fenômeno novo dentro do marco do colonialismo, que deve ser lido num contexto mundial. Enquanto analisamos esse fenômeno, penso que devemos ser profundamente autocríticos com algo no qual falhamos. Não nos preocupamos com as instituições. Não demos bola para elas quando era preciso. O campo popular não pensou nisso e o campo jurídico tampouco, e não sei qual dos dois é mais responsável. Os políticos têm a desculpa de que sua atividade é sumamente competitiva, própria do dia a dia, mas os juristas temos o dever de pensar, porque estamos mais longe da competição cotidiana. Não podemos confundir uma democracia republicana com uma democracia plebiscitária. Se as confundimos, chegaríamos à conclusão de que Hitler e Mussolini eram democratas. Não é assim: quem ganha as eleições deve respeitar a minoria, porque deve deixar intangível o direito da maioria de mudar de opinião. E isso deve estar estabelecido claramente numa engenharia institucional que impeça que a maioria conjuntural faça qualquer coisa. Isso que está acontecendo nos coloca sobre o tapete da realidade, nos mostra que não temos a melhor Constituição do mundo, mas sim um texto de 160 anos, remendado de forma inconstitucional em 1957, com mais remendos em 1994, dessa vez de forma constitucional, mas com urgência para garantir uma reeleição, sem maior reflexão institucional nem valorização do parlamentarismo, por exemplo. Hoje, nós pagamos pelas consequências. Por isso digo que o campo político popular deve fazer sua autocrítica. É indispensável.
Tradução: Victor Farinelli
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