Autor: Felipe Coutinho (presidente da AEPET)
A
operação lava-jato conduzida pela Polícia Federal e pela Justiça Federal
do Paraná que investiga as denúncias de corrupção na Petrobrás tem sido
o foco de diversas manchetes e reportagens dos meios de comunicação
empresariais. A declaração de culpa e a opção pela utilização da
alternativa legal da “delação premiada” pelo ex-diretor de Abastecimento
da estatal, além de declarações públicas suas e de outros envolvidos,
fornecem a matéria prima que as empresas de comunicação selecionam e
interpretam para exposição via jornais, televisão e internet, neste
caso, em período eleitoral.
A
opinião pública e o senso comum são em grande medida formados pelas
opiniões publicadas que, via de regra, correspondem aos interesses dos
proprietários dos meios através dos quais são veiculadas. Os meios de
comunicação são instrumentos privilegiados de divulgação e persuasão. O
advento da internet e a atuação de jornalistas e comunicadores
independentes têm sido capaz de também influenciar o público e
contrabalancear a influência do chamado quarto poder.
O
senso comum está sempre em modificação, este ensaio pretende contribuir
para construir o novo senso comum. A nova interpretação comum será fruto
da atuação, consciente ou não, dos muitos agentes sociais envolvidos,
sob circunstâncias economicamente desiguais que não podem ser escolhidas
por nenhum deles.
Senso comum vigente sobre a corrupção
1. É
essencialmente moralista e apresenta o corrupto como o principal agente
responsável (e beneficiário) da corrupção que, por sua vez, é entendida
como o principal problema da vida nacional.
2. A interpretação do problema é superficial e não correlacionada a causas e consequências sistêmicas.
3. Os
casos são tratados em forma de espetáculo, as denúncias são
precocemente assumidas como verdadeiras, os acusados pré-condenados e o
processo judicial não é acompanhado.
4. O
agente ativo da corrupção, o corruptor, é ignorado ou entendido como
vítima e não beneficiário do mecanismo ilegal da corrupção para obtenção
de vantagem empresarial.
5. As leis são consideradas imparciais e adequadas, a atuação do judiciário é posta acima de qualquer crítica.
6. O
poder econômico e as disputas entre empresários não são consideradas
como possíveis motivadores da ação de corrupção e/ou da revelação ao
público do desvio ocorrido.
7. A
formação de cartéis de empresários para obter lucros extraordinários
através do fornecimento de bens e serviços a instituições de caráter
público e a relação do cartel com a burocracia estatal e com os
políticos não é compreendida como nociva ao interesse social.
8. A
condenação pública da burocracia estatal e dos políticos corruptos, por
vezes precoce e por outras justificada, não corresponde a igual
tratamento dos empresários corruptores. O tratamento desproporcional que
se dá pelos meios empresarias de comunicação e pela justiça se reflete
no senso comum hegemônico.
O papel deletério, porém secundário do burocrata e do político corruptos
9. Os
ocupantes da superestrutura estatal, administradores, executivos,
diretores, presidentes ou conselheiros de administração de estatais e os
políticos são aqueles que, no modelo de organização da produção
vigente, devem zelar pelo patrimônio público. A prática da corrupção por
tais agentes deve ser alvo de punição exemplar, respeitado o amplo
direito de defesa e a presunção da inocência.
10. A
punição aos corruptos com restrição a sua liberdade e a recuperação dos
recursos desviados ao erário público, apesar de necessária, não é
suficiente para sanar o dano ou para prevenir que novos casos ocorram.
11.
Os meios empresariais de comunicação se beneficiam da abordagem
espetacular dos casos de corrupção na medida em que, com eles, vendem
publicações, cativam audiências e contabilizam acessos aos meios
digitais. Também aproveitam o humor fabricado para reforçar a retórica
ideológica empresarial que através do autoelogio classista faz sua
apologia à suposta eficiência da iniciativa privada em contradição com a
declarada ineficiente e corrompida natureza de qualquer organização de
caráter público.
12.
Os meios empresariais de comunicação e, via de regra, a justiça se
limitam em condenar os corruptos cuja função pode ser comparada a de um
fusível que, quando queimado, preserva o sistema e é substituído.
13.
Segundo o economista indiano Prabhat Patnaik a corrupção é funcional ao
capitalismo porque da forma como é apresentada pelos meios ela
desacredita a "classe política", ela arrasta o descrédito sobre o
parlamento e outras instituições da democracia representativa e, ao
mesmo tempo, através da hábil manipulação dos holofotes, através dos
media por ela controlados, a elite corporativo-financeira assegura que
nem uma pitada de humilhação moral lhe caiba por estes atos de
"corrupção". O discurso da "corrupção" facilita a solene introdução do
domínio corporativo através do desmantelamento de obstáculos que o
estorvam.
14. A
corrupção que, muitas vezes, é motivada pela disputa entre grupos
empresariais ou pela busca de superlucros por cartéis corporativos não
cessa porque é de origem sistêmica. Os atos consagrados pela abordagem
espetacular da mídia resultam no descarte de um elo secundário e
facilmente substituível do mecanismo que é preservado intacto.
15. A
legislação e os intermináveis recursos judiciais favorecem aqueles que
podem contratar as tradicionais bancas de advogados que encontram os
meandros da lei em favor dos que podem arcar com seus altos honorários.
Os acionistas majoritários, conselheiros de administração, diretores e
executivos das empreiteiras e dos bancos não sentam no banco dos réus,
ou se sentam não são condenados a perder a liberdade e a ressarcir o
patrimônio público. Os corruptores, salvo exceções, são preservados.
Petrobrás, da produção à apropriação e distribuição do valor
16. A
Petrobrás é uma empresa de economia mista, com ações negociadas em
bolsa de valores e cujo controle acionário pertence ao Estado Nacional
brasileiro.
17. A
Petrobrás é uma organização produtiva que explora (procura) petróleo e,
ao encontrar e considera-lo viável técnica e economicamente, o produz e
refina para abastecer a sociedade com os derivados de petróleo e os
petroquímicos. Também atua na produção de energia elétrica e de
biocombustíveis.
18. O
petróleo é uma riqueza natural finita, podemos dizer que nele está
incorporado o trabalho da natureza por centenas de milhões de anos.
Sobre este recurso emprega-se o trabalho humano, dos petroleiros e de
terceiros, para produzir mercadorias úteis que são responsáveis por
cerca de 90% do transporte de pessoas e mercadorias em termos mundiais.
19. A
atividade produtiva da Petrobrás disponibiliza uma riqueza, um valor,
excedente aquele requerido para arcar com os custos de capital
(depreciação, matérias primas, insumos etc.) e do trabalho. Este
excedente está em disputa que é histórica, assim como a contenda pelo
próprio petróleo que é a riqueza primária cujo valor (trabalho
incorporado pela natureza) confere riqueza e poder.
20. O
excedente de valor é distribuído entre os seguintes agentes econômicos,
entre parênteses a forma da transferência do valor: Estado Nacional
(dividendos), acionistas minoritários (dividendos), bancos e seguradoras
privados (juros e lucros), fornecedores de bens e serviços (lucros),
industriais consumidores de combustíveis e petroquímicos (subsídios),
comerciantes revendedores de combustíveis e petroquímicos (subsídios),
industriais produtores de biodiesel e etanol (subsídios e mecanismos
indiretos de preços relativos), petroleiras de capital privado ou
estatal estrangeiro (subsídios ou vantagens indiretas como o acesso as
tecnologias), meios empresariais de comunicação (lucros), trabalhadores
assalariados petroleiros (excedente ao mínimo requerido para
sobrevivência, na forma de parte dos salários).
21.
Os acionistas (estatal e privados) também percebem vantagem econômica no
crescimento do valor patrimonial negociado em bolsa de valores através
das ações.
22.
Como se dará a apropriação e a distribuição desta riqueza cabe ao
conselho de administração da empresa, controlado pelo governo federal. A
gestão da presidência da empresa e da diretoria também influencia na
distribuição da renda petroleira.
23.
Em torno da fração de valor distribuída para o governo federal ocorre
nova disputa pela redistribuição que não cabe neste artigo aprofundar,
apenas registrar o destino significativo da receita federal para o
pagamento de juros e serviço da dívida pública, cuja maior fração é
destinada ao sistema financeiro.
24. O
fenômeno da corrupção se dá na interface entre o público e o privado, é
a “taxa de serviço” cobrada pelo burocrata para servir ao interesse
privado motivado pelos superlucros. O compromisso muitas vezes vem desde
a nomeação na qual é notória a participação de políticos que
representam interesses de frações do empresariado que tem relações com a
empresa, conforme descrito anteriormente, reflexo do cerco ao valor
excedente produzido.
25.
Entendido o mecanismo, fica evidente que os superlucros auferidos são
muito maiores que as “taxas de serviço ilegais” pagas para obtê-los. Os
maiores beneficiários do fenômeno da corrupção são os empresários
corruptores, secundariamente o agente público corrupto, enquanto as
maiores vítimas são a Petrobrás e a sociedade que perdem acesso à parte
da riqueza excedente produzida.
26.
Os meios de comunicação empresariais participam diretamente do cerco à
Petrobrás em busca de contratos de publicidade. Participam também
indiretamente quando assumem a defesa de uma das frações empresarias que
tem relação com a Petrobrás ou que visam acesso direto a riqueza do
petróleo. Notadamente apresentam o espetáculo da corrupção e a partir
dele defendem o interesse das petroleiras multinacionais pelo acesso
direto ao petróleo brasileiro ou pela privatização da Petrobrás. A maior
vítima institucional do mecanismo, a Petrobrás, é então, novamente,
vilipendiada e sua imagem, construída por décadas de lutas populares e
do trabalho dos petroleiros, é maculada.
27. O
espetáculo midiático ocupa semanas de programação televisiva, páginas e
páginas de jornais, telas e telas de meios digitais. Os petroleiros,
quando inconscientes do que está em disputa, também se abalam e podem
fragilizar o corpo técnico que é a principal defesa da instituição ao
lado da própria sociedade.
Soluções institucionais para enfrentar o problema
28.
Transparência, democracia no local de trabalho, controle social do
conselho de administração diretamente pelos petroleiros e pela
sociedade, desmonte da estrutura corporativa tipicamente hierárquica e
antidemocrática, para substitui-la por organização horizontal e
democrática, são iniciativas que podem contribuir em termos estruturais e
sistêmicos em defesa da Petrobrás e do interesse da sociedade.
29. A
transparência para a sociedade e para o conjunto dos petroleiros de
todas as relações entre a Petrobrás e os agentes de capital privado
podem prevenir desvios de gestão. A transparência não é suficiente, mas
pré-condição para que o conjunto dos petroleiros e a sociedade tenham o
conhecimento necessário para exercer o seu poder que também precisa ser
garantido.
30. A
adoção de mecanismos democráticos no local de trabalho possibilita
maior eficiência na gestão e garante ao conjunto de trabalhadores que,
ao sinal de alguma decisão ou critério suspeito de que possam determinar
vantagem indevida ou desproporcional a algum agente privado na relação
com a Petrobrás, possam intervir e pedir esclarecimento. A
democratização da gestão, associada à transparência e garantia de acesso
às informações, estão em contradição com a burocratização e a
hierarquização da organização. O ambiente de trabalho democrático é mais
resistente à ação do corruptor ou ao oportunismo do corrupto do que o
ambiente burocrático e hierárquico, no qual as principais decisões são
tomadas por poucas pessoas em gabinetes herméticos.
31.
Adoção corporativa de medidas para combater a eventual formação de
cartel de empresários privados para fornecimento de bens e serviços com
superlucros. Entre as medidas, abolir os contratos de amplo escopo para o
fornecimento de projetos de engenharia, seleção e compra de
equipamentos, construção e montagem que, por vezes, incluem as
tecnologias envolvidas. Utilização do corpo técnico funcional, das
tecnologias proprietárias e de mecanismos de compra direta para
minimizar eventos em que, através de brechas contratuais, os
fornecedores obtenham recursos extras por pleitos e aditivos
contratuais. Evitar a obtenção de empréstimos condicionados a compra de
bens e serviços de origem definida pela entidade financiadora e que
comprometam a qualidade, os custos ou o prazo dos empreendimentos.
32.
Eliminação de subsídios a grupos econômicos de natureza privada,
notadamente grupos industriais e comerciantes. Definição de critérios
transparentes para a atuação corporativa em parceria com petroleiras de
capital privado ou estatal estrangeiro, com a quantificação de eventuais
ganhos indiretos como o acesso a tecnologia e os remunerando
devidamente em ressarcimento para a Petrobrás.
33. A
distribuição da riqueza excedente, como dito anteriormente, é
determinada pelo conselho de administração. Entre 10 e 20 pessoas
decidem como destinar a riqueza obtida pela apropriação do trabalho da
natureza, acumulado por centenas de milhões de anos (o petróleo) e a sua
transformação em produtos úteis, através do trabalho de centenas de
milhares de pessoas. Esta forma de organizar a produção produz desvios e
não atende ao interesse da maioria. Também possibilita que os poucos
que administram tamanho excedente o destinem de forma a favorecer este
ou aquele agente privado que tem relação com a Petrobrás, a semente da
corrupção.
34.
Para que a semente da corrupção não encontre solo fértil no conselho de
administração é necessário democratizá-lo. O conjunto dos petroleiros,
responsáveis pelo acesso e transformação do petróleo em produtos úteis e
a sociedade, responsável pela criação da Petrobrás e por direito
herdeira da riqueza natural encontrada em território nacional, devem ter
participação decisiva no conselho. A riqueza socialmente produzida deve
ser socialmente repartida de acordo com o interesse, e em compensação
pelo trabalho, da maioria dos brasileiros.
Soluções políticas de caráter nacional
35. O
financiamento público das campanhas. Necessário para combater a
subordinação dos políticos ao interesse empresarial porém insuficiente
se não acompanhado de outras medidas. O custo das campanhas políticas é
cada vez maior, entre outros motivos, pela sua mercantilização.
Candidatos com agenda econômica similar utilizam os recursos do
marketing para se diferenciar. Propaganda, noticias plantadas, viagens
por todo território nacional, “militância” de aluguel, tudo muito
dispendioso.
36. A
legislação vigente é leniente com relação ao trânsito de burocratas e
executivos entre instituições de natureza pública e corporações de
capital privado. É necessário o trancamento legal dessas portas
giratórias. São “portas” que giram e permitem o livre fluxo de
executivos e conselheiros de administração das corporações de capital
privado para instituições de natureza pública e vice-versa. São comuns
também as consultorias que efetivam tráfico de influência similar. Esta
relação íntima é perniciosa e compromete a gestão do patrimônio público,
37. É
pratica comum e recorrente a absorção de trabalhadores a superestrutura
estatal. Existem “filtros” que selecionam entre os trabalhadores,
notadamente os líderes sindicais ou associativos, para ocupar funções do
alto escalão do aparato estatal responsáveis pela distribuição do
produto social ou pela mediação de interesses entre entes privados.
Diferente do fenômeno anteriormente descrito, esta via, salvo exceções, é
de mão única. A prática é perniciosa à organização dos trabalhadores e
também contribui para desvios com potencial prejuízo ao patrimônio
público. Os trabalhadores organizados devem combater esta prática
autonomamente em suas organizações sindicais e associações.
38. A
força motora da prática da corrupção é sistêmica e deriva da estrutura
das corporações capitalistas e da competição entre elas. Os executivos
das empresas são escolhidos pelos acionistas e sofrem pressões para
maximizar os dividendos e/ou garantir crescimento que reflita no preço
das ações. Executivos e conselheiros precisam garantir o acesso a
matérias primas e força de trabalho baratas, aumentar a produtividade e
vender seus produtos pelo maior preço possível. A estrutura organizativa
incentiva e recompensa os bem sucedidos. Para atender a expectativa
recebem os meios e buscam na relação com a burocracia estatal as
vantagens consequentes da tomada de decisões estratégicas favoráveis, da
privatização do patrimônio público ou na forma de subsídios e contratos
que garantam os superlucros. Para tanto, muitas vezes, assumem o risco
de pagar uma taxa de serviço mesmo que ilegal.
39.
Capitalistas individualmente agem junto à burocracia estatal para
garantir o atendimento às necessidades corporativas. Em grupo, através
de câmaras comerciais, federações ou carteis atuam para garantir o
interesse de determinada fração da classe capitalista. Quando a
corrupção não é secreta ou ilegal defendem publicamente que as medidas
que lhes interessam serão benéficas para a sociedade como um todo.
40.
Muitas leis, regulações e códigos éticos já foram criados em todo mundo
para restringir ou punir a prática da corrupção. Os resultados não
parecem promissores considerando a profusão de escândalos em escala
mundial. Muitos países têm optado por legalizar o que antes era
considerado corrupção ilegal, oficializando toda a corrupção, através do
reconhecimento dos lobbies, por exemplo.
41.
Para realmente atingir a corrupção é necessário atacar o que a motiva e
os meios através dos quais ela se materializa. É necessário alterar a
estrutura produtiva, sua organização. Enquanto os capitalistas puderem
auferir os ganhos da corrupção e enquanto tiverem os meios econômicos de
perpetra-la, eles o farão ou então estarão em desvantagem competitiva.
42. A
democratização na gestão dos meios de produção e a participação da
sociedade no planejamento e na tomada das principais decisões
corporativas, numa relação transparente com as entidades públicas,
transformariam a sociedade e eliminaria as motivações e os meios para a
prática da corrupção legal ou ilegal.
43.
Para problemas sistêmicos devem ser construídas soluções sistêmicas. A
apropriação privada da produção social pode se dar por vias legais ou
ilegais, mas ambas precisam ser enfrentadas porque se alimentam
reciprocamente, em benefício de uma minoria, em prejuízo da grande
maioria.
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