
Do Le Monde Diplomatique
Desde 2003 vem ocorrendo um processo de
inversão de prioridades. Com isso, houve menor deslocamento de recursos
públicos ao rentismo, bem como o estabelecimento de novas políticas de
renda acrescidas ao apoio às classes trabalhadoras na forma de emprego
em profusão e elevação da renda na base da pirâmide social


A livre evolução das forças de mercado
aponta historicamente para a concentração da renda e da riqueza. Pela
mão do Estado, a intervenção sobre a dinâmica capitalista permite
produzir resultados distintos, dependendo da correlação de forças
políticas, capaz de reverter a trajetória distributiva centralizadora na
forma de ações institucionais que desloquem fluxos de renda apropriados
por proprietários e segmentos privilegiados da sociedade para as
classes do trabalho.
De acordo com a atual literatura
internacional especializada, países capitalistas avançados que até pouco
tempo eram referência em termos de trajetórias distributivas menos
concentradoras voltaram a se conectar com o passado perverso. Ou seja,
um retorno dos indicadores alarmantes da crescente pobreza e da piora na
repartição da renda em decorrência das políticas neoliberais.1
O Brasil, por outro lado, segue
perspectiva distinta desde 2003, quando abandonou o receituário
neoliberal e passou a reduzir simultaneamente a pobreza e a desigualdade
de renda. Esse positivo movimento se mostra específico na comparação
com os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que não
conseguem combinar a redução da pobreza com a diminuição da desigualdade
de renda.
Já os países do continente americano que
realizaram mudanças constitucionais progressistas por meio da formação
de maiorias políticas avançadas (Bolívia e Equador) apresentam
desempenho superior em termos do rebaixamento conjunto na pobreza e na
concentração da renda. No caso de nações da região que prosseguem
aliadas às políticas neoliberais (Colômbia e México), a performance
brasileira tem sido bem melhor em comparação.
Diante disso, o presente artigo procura
identificar as distintas trajetórias distributivas no Brasil desde 1960,
quando o IBGE passou a pesquisar a renda da população. Na sequência
busca-se descrever o recente deslocamento no fluxo da renda a partir dos
anos 2000, capaz de explicar a queda tanto na pobreza como na
desigualdade no país.
Trajetórias distributivas
Nas últimas cinco décadas, a
distribuição na renda do trabalho no Brasil apresentou três trajetórias
distintas, em conformidade com as estatísticas oficiais. A primeira
ocorreu entre os anos de 1960 e 1980, com a diminuição no peso relativo
do rendimento do trabalho na renda nacional de 11,7% e com a piora da
desigualdade na distribuição pessoal da renda de quase 22%.
A segunda trajetória distributiva
aconteceu entre os anos de 1981 e 2003, quando a participação do
rendimento do trabalho na renda nacional acumulou prejuízo de 23%. Ao
mesmo tempo, a desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho
permaneceu praticamente inalterada, com a queda média anual de 0,1%.
Por fim, a terceira trajetória
distributiva encontra-se em curso desde 2004, com a elevação na
participação do rendimento do trabalho na renda nacional de 21,2%. Em
relação à desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho,
constata-se diminuição de 12,3%.
O gráfico 1 registra a evolução dos
índices de participação no rendimento do trabalho na renda nacional e na
desigualdade pessoal na renda do trabalho, medida pelo índice de Gini.
Deslocamento recente nos fluxos de renda
Na primeira década do século XXI, o
deslocamento no fluxo de renda expressou tanto a contenção dos ganhos
financeiros (rentismo) como o crescimento do rendimento do trabalho
acima da expansão da renda nacional. A deflação dos ganhos financeiros
sustentados pela transferência de recursos públicos enquanto proporção
da renda nacional resultou da inversão de prioridades por parte das
políticas governamentais.
Para que ocorresse a redução relativa
das transferências de recursos públicos aos proprietários de aplicações
financeiras foi necessário o reposicionamento do governo federal em
relação ao endividamento do setor público herdado em 2003. Inicialmente,
ressalta-se o encerramento da longa fase dos repasses de parcela do
excedente econômico gerado pelo país ao exterior, por meio da resolução
da dívida externa durante o governo Lula.
Recorda-se que a partir da crise da
dívida externa, logo no início da década de 1980, o Brasil passou a
transferir parte anual da renda interna aos credores externos. Por força
da política econômica de ajuste exportador, o país conseguiu deslocar
para o exterior cerca de 4% do PIB como média ao ano.
Essa quantia chegou a ser maior em
alguns anos, como na crise financeira de 1998, que levou o Brasil a
solicitar novamente um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI)
para evitar a quebra de sua economia. Mas, a partir dos anos 2000, o
Brasil transitou da condição de devedor para a de credor do FMI, tendo
resolvido o problema da dívida externa que implicava deslocar ao
exterior parcela dos fluxos de renda interna gerada.
Na sequência, ressalta-se a contenção do
processo de deslocamento no fluxo da renda interna para o processo de
financeirização da economia brasileira. Isso porque na década de 1980,
por exemplo, as transferências dos recursos públicos para os detentores
das aplicações financeiras ocorriam por meio das altas taxas de inflação
e acompanhadas da ampla indexação financeira.
Assim, a dívida pública interna, que era
responsável pelo deslocamento de recursos públicos para os segmentos
com posse de títulos financeiros, passou de 29,7% do PIB em 1981 para
57,6% em 1984. Em 1994, a dimensão da dívida líquida do setor público
representava 30,9% do PIB.
Com o fim da fase de superinflação, a
partir de 1994, o endividamento do setor público voltou a crescer,
chegando a atingir 55,5% do PIB em 2002. Além disso, o predomínio das
políticas neoliberais nos anos 1990 levou ao aumento da carga tributária
e à venda de parte do patrimônio produtivo estatal ao setor privado.
O deslocamento no fluxo de renda interna
ao rentismo se apresentou contínuo, tendo o pagamento dos juros da
dívida pública alcançado 14,2% do PIB em 2002. Na média do período de
1995 a 2002, o Estado transferiu anualmente cerca de 9% do PIB para os
detentores da dívida pública brasileira. Em oito anos, a quantidade de
recursos públicos transferida acumuladamente ao rentismo equivaleu a 70%
do PIB de 2002.
O abandono da política neoliberal desde
2003 implicou a reversão gradual do volume de recursos deslocados do
setor público ao rentismo. Por meio da substancial diminuição da dívida
pública, acompanhada do alongamento nos prazos dos títulos do
endividamento, da recomposição de seus indexadores e do rebaixamento da
taxa de juros, a economia no pagamento dos juros se fez presente.
Em 2013, por exemplo, a quantidade de
recursos comprometida com o pagamento dos juros da dívida pública foi de
5,7% do PIB, o que equivaleu a apenas 40,1% do que havia sido
transferido para o rentismo em 2002. Contribuiu para isso a redução
relativa da dívida pública em 40%, uma vez que passou de quase 60% do
PIB, em 2002, para menos de 35% do PIB, em 2013.
Em 1980, quando o processo de
financeirização de riqueza ainda não havia se instalado no Brasil, o
pagamento de juros da dívida com recursos públicos representava menos de
2% do PIB ao ano. Naquele ano, a dívida pública equivalia a apenas um
quarto do PIB.
Em síntese, a contenção do fluxo de
renda gerado para as aplicações financeiras a partir de recursos
públicos equivaleu à economia de cerca de cinco a seis pontos
percentuais do PIB na comparação dos anos 2000 com a década de 1990.
De todo modo, a interrupção do
neoliberalismo no Brasil permitiu a poupança do setor público em torno
de 8,5% do PIB, se comparados os gastos com despesas financeiras entre o
ano de 2013 e o de 2002. Com o esvaziamento dos recursos públicos
transferidos ao rentismo, novas oportunidades de realocação de parcela
do fluxo da renda nacional foram abertas para os investimentos públicos,
as políticas sociais e as garantias de renda aos segmentos pertencentes
à base da pirâmide social.
Em função disso, a massa de rendimentos
do trabalho cresceu acima da expansão do PIB nos anos 2000, o que
apontou para a inflexão da trajetória de parcela da renda nacional
tradicionalmente apropriada pelos proprietários (renda da terra, lucros,
juros e aluguéis). De acordo com o gráfico 2, verifica-se o
deslocamento concentrado nos segmentos de baixa renda na curva de
distribuição dos rendimentos individuais dos brasileiros entre 2011 e
2001.
Nos termos da distribuição do rendimento
monetário auferido pela população brasileira em 2011, constata-se que a
faixa de remuneração situada entre R$ 150 e R$ 600 mensais foi a que
mais se distanciou da curva da distribuição de 2001. Em grande medida,
esse estrato de rendimento expressa o impacto dos aumentos no valor do
salário mínimo nacional, assim como das políticas sociais de garantia de
renda aos inativos beneficiados pela Previdência Social.
Também se destaca que a ampliação na
quantidade e nos valores reais dos benefícios pagos pelos programas de
transferência de renda, como o Bolsa Família, se mostrou determinante
para o deslocamento da curva da distribuição da população nos menores
rendimentos entre os anos de 2011 e 2001.
Por força da geração de mais de 20
milhões de novas ocupações ao longo dos anos 2000, sendo 90% delas com
remuneração de até dois salários mínimos, passou a se conformar o novo
proletariado brasileiro, que expressa o movimento do deslocamento de
parte do fluxo de renda para os trabalhadores. Em outras palavras, o
crescimento da massa de rendimento do trabalho acima da renda nacional
convergiu para que o segmento que responde a entre 6% e 38% dos
brasileiros mais pobres no conjunto da população pudesse ascender
econômica e socialmente.
Em função disso, o sucesso recente do
Brasil no enfrentamento da pobreza e desigualdade de renda refere-se à
mudança na trajetória distributiva herdada até 2002. Para que isso
viesse a ocorrer, foi necessário alterar o deslocamento de renda
anteriormente concentrado na transferência de parcela dos recursos
públicos para o rentismo e no esvaziamento das políticas de apoio à
massa dos rendimentos dos trabalhadores.
Desde 2003, todavia, vem ocorrendo o
processo de inversão de prioridades. Com isso, houve menor deslocamento
de recursos públicos ao rentismo, bem como o estabelecimento de novas
políticas de renda acrescidas ao apoio às classes trabalhadoras na forma
de emprego em profusão e elevação da renda na base da pirâmide social.
Ainda há muito mais o que fazer em
termos de combate à má repartição de renda, bem como no processo de
inclusão social; entretanto, o que já foi feito apresenta resultados
inegáveis e de difícil comparação histórica.
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