José Carlos de Assis no GGN
Conta-se que um general da ditadura, escrupuloso em relação à estrita
obediência das leis na condução dos negócios públicos, perguntou ao
vice-presidente e jurista Pedro Aleixo, pouco antes que o pano negro do
AI-5 caísse sobre a cidadania brasileira, se o AI-5 era mesmo
constitucional. Pedro Aleixo teria respondido, laconicamente, que era
preciso acabar com os cursos de introdução ao Direito nos colégios
militares. Se os generais fossem se preocupar com o Direito seria
preciso desfazer tudo que se tinha feito desde o golpe de 64.
Essa fábula – talvez mito, talvez com fundo de verdade – me veio à
mente quando vi a entrevista do candidato Eduardo Campos no Jornal
Nacional de quarta-feira. Patrícia Poeta, tão graciosa, cresceu nos
saltos ao espremer o entrevistado com uma questão mais ou menos assim: O
senhor tem feito promessas de cortar o gasto público aqui e ali.
Entretanto, os economistas dizem que é necessário, para reduzir a
inflação, cortar profundamente. Sem cortar fundo nos gastos públicos,
deixou entender ela, o país mergulharia em inflação.
Há muitas bobagens nessa pergunta, que procura ditar a resposta. Em
geral, essas bobagens se devem aos cursos rápidos de economia
frequentados por jornalistas. Na verdade, às vezes nem chegam a ser
cursos; são conversas da vida cotidiana elevadas a categorias de
sabedoria convencional nas entrevistas de televisão. Como regra geral, a
sabedoria econômica convencional repete os mantras da direita que
atendem, essencialmente, aos interesses da comunidade financeira e do
empresariado que se ceva nas taxas de juros elevadas.
Mas façamos uma pequena exegese da pergunta da espertíssima Patrícia
Poeta. Ela afirma: “economistas dizem que tem que cortar profundamente
nos gastos públicos para controlar a inflação”. Vamos decompor a frase:
primeiro, “os economistas dizem”. Bem, serão todos os economistas?
Melhor ainda, haverá um consenso de economistas nessa matéria? Quais são
esses economistas? Bem, eu posso adiantar que são os economistas
neoliberais. Contudo, ela, se fosse uma jornalista honesta, ou se fosse
simplesmente informada, diria: “economistas neoliberais”, ou
“economistas que se dizem ortodoxos”, ou coisa que o valha.
O que dizem os “economistas” de Patrícia Poeta? Dizem que, para
acabar com a inflação, é preciso cortar fundo nos gastos públicos. Bem,
isso é simplesmente uma estupidez. A relação entre orçamento público e a
economia em seu conjunto está intimamente relacionada com o ciclo
econômico. Se me disserem, numa situação de boom econômico, que se deve
aumentar os gastos públicos, eu discordaria. Contudo, em situação de
recessão ou perto dela, eu sustento que o aumento do gasto público, na
verdade o aumento do gasto deficitário público é absolutamente essencial
para a recuperação.
O que Eduardo Campos deveria ter respondido? Teria dito: Patrícia
querida, um economista muito importante do século XX, na verdade, o
maior do século, ensinou uma coisa que se chama “política fiscal
anticíclica”, pela qual você aumenta o gasto público deficitário na
recessão e o reduz ou elimina no boom. Em outras palavras, você aumenta a
dívida pública num movimento e a reduz no movimento simétrico. Não
conheço nenhum economista sério que se contraponha a isso, exceto os
ditos ortodoxos.
Entretanto, o que afirmam os ditos ortodoxos? Dizem que, para sair da
recessão, é preciso recuperar a confiança do empresariado. Isso é uma
tautologia. Se a economia está em recessão, não há demanda suficiente
para aumento de produção; assim, sem demanda, não é possível recuperar a
confiança do empresário. E ficamos todos, como disse Marx em outro
contexto, dans la même merde.
De fato, só existem três instrumentos de política econômico para
aumentar a demanda agregada: a política monetária (juros mais baixos e
maior disponibilidade de crédito), aumento das exportações (exportação
para fora gera demanda interna) e política fiscal. A política monetária
em geral não funciona, pela mesma razão da confiança: ninguém vai tomar
dinheiro emprestado para investir, mesma a taxa zero de juros, se o
resultado é produzir para as prateleiras e ficar com uma obrigação
bancária, mesmo barata; portanto, primeiro vem a pressão da demanda,
depois a dita “confiança” e o investimento.
O aumento das exportações pode ajudar. Mas o que dizer quando, como
hoje, todos – todos – os países industrializados avançados, Europa,
Estados Unidos e Japão, querem exportar mais e importar menos, isso pela
primeira vez na história do capitalismo, exceto na Grande Depressão dos
30? Para onde vamos mandar nós as nossas exportações, a não ser de
primários para a China? E o que fazemos com nossa indústria de
transformação e, sobretudo, de bens de capital? Vejam no balanço
comercial com os países industrializados avançados: nossas exportações
desabam e as exportações deles para nós crescem. Se isso não mudar por
uma mudança estratégica na nossa economia (falo disso posteriormente),
não demora muito e esgotaremos nossas belíssimas reservas externas de
380 bilhões de dólares!
Na ausência de qualquer eficácia da política monetária e na política
de exportações, resta, vamos dizer de novo nessa modesta aula de
economia heterodoxa para Patrícia Poeta, a política fiscal. Se nós a
abandonarmos, vamos da recessão para a depressão. Exatamente o que está
acontecendo na Europa. Por pressão da Alemanha, uma economia conduzida
por exportações, todos os países da área do euro se subordinaram a
políticas ortodoxas de corte do gasto público e pagamento da dívida
pública. A Alemanha faz uma política egoísta, de roubar o vizinho.
Contudo, de te fabula narratur: neste trimestre deve ter
crescimento zero, pela circunstância óbvia de que 40% de suas
exportações iam tradicionalmente para a área do euro que ela está
estrangulando.
Quanto aos demais países da área do euro que seguiram a lição
econômica de Patrícia Poeta – vou passar a chamar de Lei Patrícia Poeta,
ou Lei da Globo -, mergulharam numa tragédia social: a Espanha tem taxa
de desemprego de 25%, sendo que, entre os jovens, vai a mais de 60%; o
mesmo acontece com a Grédia. A Inglaterra, fora da área do euro mas
assim mesmo se aplicando as mesmas políticas ortodoxas, continua
oficialmente em recessão. A França se arrasta, pois o socialista
Hollande não tem peito para enfrentar a ortodoxia alemã. Enfim, está
acontecendo o que Mário Draghi, ao assumir a presidência do Banco
Central Europeu, pontificou: Precisamos destruir o estado de bem estar
social da Europa.
É isso, dona Patrícia, que a senhora quer que se faça na economia
brasileira? Cortar profundamente, cortar salário mínimo, cortar Bolsa
Família, cortar os parcos investimentos que ainda fazemos em habitação e
infraestrutura?
Estou escrevendo tudo isso não para comentar a resposta de Eduardo
Campos, porque também ele é um neoliberal, mas porque tenho certeza de
que os “economistas” de Patrícia vão perguntar a Dilma nesta quinta
feira na mesma direção. Ah, como gostaria de fazer uma pergunta de
público, uma só, a Dilma: Nós, presidenta, economistas de linha
keynesiana, queremos saber da senhora porque não manda Mantega acabar
com essa bobagem de superávit primário quando a economia patina em torno
de crescimento de 1%? Não tema, Presidenta, qualquer efeito
inflacionário nisso: inflação, como se sabe desde os tempos de Adam
Smith, é um fenômeno de mercado real, um fenômeno de oferta e de
demanda, não um fenômeno monetário – exceto, neste caso, em situações de
boom.
A inflação brasileira, Presidenta, me permita um adendo: ela é efeito
sobretudo de indexação legal que ainda existe na economia na áreas dos
serviços públicos, que respondem por quase 40% do índice. E isso é uma
herança maldita dos tucanos que acabaram com a indexação dos salários e
de outros preços, mas preservaram a indexação das tarifas nesses
serviços para facilitar, e dar “confiança”, aos especuladores da
privatização. Se a senhora acabar com a indexação legal dos serviços
públicos, será caminho andado para trazer a inflação para 4% no limite
superior da meta. Isso, cortando o superávit primário e mantendo em
nível razoável o déficit público até a economia voltar a um crescimento
de 6 a 7% ao ano.
J. Carlos de Assis - Economista, doutro em Engenharia da Produção pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.
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