Da revista "Carta Capital"
Por Salem H. Nasser (Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais)
"A
evidente decisão israelense de alvejar preferencialmente os civis e de
multiplicar de modo terrível o número de massacres nos últimos dias tem
uma explicação e uma razão que se misturam.
Em um documentário
chamado "Os Guardiões", Ami Ayalon, que dirigiu o serviço de segurança
interna de Israel de 1996 a 2000, se refere à noção de banalidade do mal
para nos contar como matar intencionalmente grandes contingentes de
civis vai se tornando, para os israelenses, algo banal, desprovido de
importância, desprovido de peso psicológico, algo a que se acostumaram
gradualmente.
Em outro momento, o mesmo Ayalon nos diz algo precioso: se vencer a guerra é poder viver em paz e segurança, então Israel vence todas as batalhas, mas perde a guerra.
A
razão e a explicação são ao mesmo tempo a banalidade e a
inevitabilidade da derrota. Os civis são alvejados em massa porque a
coisa tornou-se banal, e eles são alvejados em massa porque Israel está
perdendo a batalha, e, também porque eles são alvejados em massa, Israel
perderá a guerra no sentido pensado por Ayalon.
Mas, antes da
guerra, a batalha, esta última campanha contra Gaza. A esta altura,
sabemos todos que, em meio à violência contínua contra os palestinos,
Israel escolheu o episódio dos três colonos mortos como pretexto para um
ataque massivo contra a Faixa de Gaza.
As razões reais para a
nova campanha, no entanto, tornaram-se objeto de conjecturas para cujo
esclarecimento Israel não contribui muito. É razoável supor que os
ataques tivessem por alvo, num primeiro momento, a recém-conquistada
união nacional entre Fatah e Hamas. E é razoável pensar que, como
acontece a cada 2 ou 3 anos, Israel estivesse tentando atingir as
capacidades de resistência militar que desenvolvem os grupos armados
palestinos.
Esses objetivos mais prováveis foram logo sendo envoltos numa sucessão de objetivos declarados e depois revistos: o
bombardeio para a eliminação da capacidade de lançar foguetes, a
incursão terrestre para acabar com os túneis, a continuidade da incursão
até o desarmamento total da resistência e, logo mais, até a libertação
[de algum eventual soldado] capturado.
A confusão dos objetivos é ajudada pelas descobertas desagradáveis que fez Israel desde que iniciou os ataques à Faixa: a
surpreendente capacidade de lançamento de mais foguetes, mais precisos,
de maior alcance, que tem a resistência palestina; o perigo
representado pelos túneis e o que estes dizem sobre o preparo dos grupos
armados; a disposição e a qualidade dos combatentes palestinos no
confronto de proximidade, uma vez iniciada a incursão terrestre; as
altas perdas em número de soldados e equipamentos no campo de batalha da
Faixa; a capacidade da resistência de levar a guerra até o território
israelense.
Tudo isso mostrou que alguns dos objetivos
possivelmente concebidos por Israel são simplesmente inatingíveis e que
outros demandariam concessões importantes. Mostrou também que a
continuidade da guerra traria custos que Israel não pode suportar. É por
isso que Israel quer e os Estados Unidos tentam lhe fornecer um
cessar-fogo.
Já a resistência, consciente de suas possibilidades
no campo de batalha, pensa que não pode haver outro resultado final para
esta rodada de violência que não seja o fim daquela violência, mais
longeva e igualmente dolorosa, do cerco à Faixa. Qualquer outra
resultante fará, em sua própria linguagem, com que o sangue das vítimas
tenha corrido em vão.
É por isso que, para Israel, matar o maior
número de civis apresenta-se como o melhor meio de levar os palestinos,
população e resistência, à exaustão, e fazê-los aceitar um fim das
hostilidades sem que Israel tenha que fazer concessões, é o que
permitiria aos israelenses dizer que venceram esta batalha, que
machucaram os grupos armados, reduziram suas capacidades, mataram vinte
vezes mais do que morreram, e mantiveram o cerco.
Mas, apesar dos
números, a batalha está sendo perdida por Israel. A partir de certo
momento, os números que contarão a vitória serão outros: a
resistência palestina poderá dizer que 95% dos que matou eram militares e
morreram no combate direto, e Israel terá que explicar por que 95% dos
que matou eram civis, mulheres, crianças, velhos. E as fábulas da
"legítima defesa", dos "escudos humanos", do "desejo de morrer", do
"desamor à vida" já não servirão a estancar a verdade da banalidade de
que falava Ayalon.
E a guerra também está sendo perdida. Ao menos desde o ano de 2000, a capacidade militar de Israel – sempre fenomenal –
tem crescido em impotência. Naquele ano, pela primeira vez, o exército
israelense se viu forçado a sair de um território ocupado, o sul do
Líbano, por força das ações armadas de grupos de resistência. Isso
aconteceu de novo na Faixa de Gaza em 2005. Em 2006, na guerra de julho,
o Hezbollah libanês impôs os foguetes como instrumento de dissuasão e
de equilíbrio – relativo – do poder de fogo, e assustou os israelenses
com a sua proficiência na guerra de guerrilha. O resultado final foi a
descoberta de que agora Israel já não conseguia operar uma ocupação
terrestre, quanto mais manter uma. Algo parecido aconteceu em Gaza em
2008-2009 e em 2012. O que está trazendo este último episódio que
testemunhamos agora é o anúncio de que os próximos, e inevitáveis,
confrontos entre Israel e os grupos da resistência palestina e libanesa
poderão acontecer no território israelense.
A profecia de Hannah
Arendt de que Israel degeneraria em uma Esparta realizou-se há muito.
Mas, o que acontece quando Esparta vai deixando de ser Esparta e vai
deixando de assustar?
Muitos israelenses – e muitos de seus apoiadores
– nos apresentam a sua Esparta como uma necessidade da autopreservação:
um Davi cercado por um Golias de muitas cabeças. Essa tese mereceria
maior crédito se Israel não nos provasse, dia após dia, por mais de sete
décadas, por ações – e por palavras que cada vez mais escapam entre as cortinas de fumaça da encenação da paz –
que o seu projeto é de ocupação e domínio permanente sobre qualquer
pedaço de terra que se pudesse candidatar a ser um Estado palestino, e
ao gradual esvaziamento desses espaços da população palestina
originária. Simplesmente, para não falar de mais nada, não há explicação
plausível para os assentamentos na Cisjordânia e em torno de Jerusalém,
que já abrigam perto de 700.000 colonos, que não seja essa apropriação e
essa expulsão.
O que Israel vem ensinando, aos palestinos e a
outros, é que não há processo negociador que possa por fim a essa
gradual despossessão, especialmente quando o único mediador aceito por
Israel é a superpotência [EUA] que parece funcionar sob suas ordens, que
não há esperança a ter na ONU quando ali também opera a mesma
superpotência, que não há caminho senão a resistência armada, que nada
fez Israel recuar senão a resistência armada.
Israel está
perdendo a guerra não apenas porque não conseguirá, ao fim de sucessivas
batalhas, viver em segurança, mas porque, à força de querer manter a
todo custo a sua dominação colonial sobre um outro povo, corre o risco
de realizar outra profecia, a de Henry Kissinger, de que em alguns anos
já não haverá Israel."
FONTE: escrito por Salem H. Nasser (Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais) na revista "Carta Capital". O autor é professor de Direito Internacional na FGV Direito SP e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais(GR-RI). Transcrito no "Jornal GGN" (http://jornalggn.com.br/noticia/por-que-israel-esta-perdendo-a-guerra).
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