terça-feira, 19 de agosto de 2014

Juros e Previdência

Paulo Kliass no Carta Maior



O avanço da agenda do debate eleitoral começa a colocar a questão econômica no centro do palco. Diz respeito à discussão a respeito das alternativas que se colocam para o Brasil para o próximo quadriênio. No entanto, as dificuldades e os impasses vividos por nossa economia no momento atual não deve abrir espaço para o retorno de pretensas soluções milagreiras, que já foram ultrapassadas pela história.

Na verdade, assiste-se a uma tentativa das forças conservadoras de pautar os meios de comunicação quanto à suposta “inevitabilidade” de um profundo choque ortodoxo para o ano que vem. E dá-lhe espaço para os “especialistas” de plantão - todos eles ligados aos interesses do financismo - criando falsas unanimidades quanto à inflação descontrolada, à necessidade de um tarifaço energético ou à urgência de cortes profundos nas despesas orçamentárias.

Assessores econômicos e consultores do mercado financeiro saem logo a divulgar o catastrofismo de plantão. O foco da estratégia é a insistência em desqualificar toda e qualquer tentativa de enfrentar os desafios econômicos lançando mão dos instrumentos da chamada heterodoxia. Esses personagens são os mesmos que justificam a alta ou a baixa da cotação das ações da Petrobrás em função de boatos a respeito de suposta divulgação de resultado de pesquisa eleitoral. São eles também os responsáveis pela divulgação de informações responsabilizando o governo argentino, nessa disputa que trava a equipe de Cristina Kirchner contra os chamados “fundos abutres”. Enfim, segundo eles, nada disso pode ser qualificado como especulação que tangencia a esfera do econômico e do político - trata-se tão somente da avaliação das conhecidas forças de mercado...

No caso aqui tratado, saem clamando contra a dita irresponsabilidade do governo da Presidenta Dilma por ter relaxado a rigidez na condução da política econômica.

O discurso do retrocesso pretende retomar o arrocho, por meio do restabelecimento da radicalidade do tripé da política econômica. Isso significaria não mais aceitar o regime de metas de inflação com um centro e as bandas superior e inferior. Isso significaria não mais aceitar qualquer tipo de intervenção da autoridade monetária (ainda que branda, como a atual) no mercado de câmbio. Finalmente, isso significaria promover uma elevação no superávit primário, comprimindo despesas com rubricas sociais do orçamento, para drenar recursos para o pagamento de juros e encargos da dívida pública.

Um dos temas preferidos pelos colunistas conservadores é a necessidade de mudança na lei de reajuste do salário mínimo. O modelo atual tem validade até 2015 e prevê um reajuste com dois componentes: i) a reposição da inflação anual e ii) um ganho real associado ao crescimento do PIB da economia no ano anterior. Nada mais justo para a imensa maioria do povo brasileiro, que recebe esse piso como remuneração mensal. Como se pode imaginar, a proposta de alteração vem no sentido de redução de direitos, de diminuição do valor real do salário mínimo. Uma loucura!

Todo mundo sabe que uma das bases para o processo de redução da miséria e melhoria das condições de vida dos que estão na base da pirâmide social de nosso País foi a recuperação do piso da renda do trabalhador. Ao lado de outros instrumentos importantes de políticas públicas (como o Programa Bolsa Família), a elevação do rendimento das famílias, por meio da valorização do salário mínimo, foi também responsável pela melhoria das condições de consumo, assegurando a recuperação da nossa economia pela demanda interna - mesmo no quadro da crise internacional.

Mas isso pouco importa nessa espécie de fixação tresloucada das forças conservadoras com a redução de direitos e o enxugamento da presença do Estado na economia. Alguns “especialistas” do financismo já voltam a martelar na necessidade de um pacote de diminuição das despesas orçamentárias. E o principal alvo, como sempre, é a previdência social. Afinal, eles nunca engoliram o fato de que nosso Regime Geral de Previdência Social (RGPS) não tenha sido privatizado, como foram obrigados a fazer Chile e Argentina. Caminho, aliás, que logo em seguida abandonaram e se arrependeram da aventura irresponsável. Afinal, o olho gordo dos que lidam com patrimônio financeiro próprio e alheio não consegue ficar imune às cifras do volume movimentado pelo sistema gerido pela União. São mais de R$ 436 bilhões relativos a pagamentos de benefícios gerais da previdência social, dos quais R$ 357 bi voltados ao pagamento de aposentadorias e pensões do INSS. Imaginem só mais essa massa de dinheiro sendo operada pelas mãos dos bancos privados!

As manchetes de alguns jornais já começam a metralhar: “Rombo da previdência deve atingir R$ 55 bilhões em 2014”. As estimativas são feitas com base nas atualizações dos números oficiais, que falam da “necessidade de financiamento” de R$ 40 bi para o RGPS. A diferença de tratamento não é gratuita! A previdência social não é deficitária e não cabem as expressões preferidas por seus inimigos, como “rombo”, “buraco”, etc. O que existem são 2 grandes subgrupos que não podem receber o mesmo tipo de tratamento. Os trabalhadores urbanos compõem um conjunto que está mais do que equilibrado: ele é mesmo superavitário. Em 2013, por exemplo, arrecadou R$ 307 bi e teve uma despesa equivalente a R$ 282 bi. Isso significa que as receitas das empresas e dos trabalhadores são mais do que suficiente para cobrir os benefícios pagos. E ainda sobraram R$ 25 bi.

Já os trabalhadores rurais compõem um outro subconjunto que apresenta um quadro distinto. Eles foram incorporados ao RGPS apenas depois da década de 1990, em razão da previsão da constituição cidadã. Com isso, uma parcela importante dessas famílias passou a ter direito a receber a aposentadoria de 1 salário mínimo (sm), mas nunca haviam contribuído ao longo de sua vida passada.

A responsabilidade dessa contrapartida deveria ser efetuada por meio de aportes do Tesouro Nacional ao regime previdenciário, uma vez que não se trata de nenhum tipo de “desequilíbrio estrutural”. Pelo contrário, foi uma decisão histórica do País em reconhecer a injustiça anterior e incorporar essa parcela de nossa população a critérios mínimos de vida republicana e de igualdade de direitos. Por essas razões, a receita arrecadada pelos rurais é de apenas R$ 6 bi, ao passo que as despesas com benefícios alcançam R$ 82 bi. À medida que as gerações forem avançando, essa diferença vai diminuir, uma vez que os mais novos contribuem para o regime e ele deverá tornar-se tão equilibrado quanto o dos urbanos.

No entanto, a diferença de tratamento dos órgãos de comunicação é muito diferente quando se trata de outra despesa do Estado: os gastos com juros. Não se vê nenhuma indignação ou manchete escandalosa denunciando o “rombo de R$ 251 bilhões!”. Sim, pois é exatamente esse o montante de recursos que a Administração Pública dedicou ao pagamento de juros ao longo dos últimos 12 meses. Isso significa que 5% do PIB são destinados a uma despesa totalmente descolada do setor real da economia, um verdadeiro gasto parasita.

A necessidade de financiamento do RGPS para cumprir as transferências a dezenas de milhões de famílias da “fortuna” de um salário mínimo mensal é apontada como um enorme descalabro. Já o aporte de valores orçamentários muito superiores a esses a título de desoneração tributária, de subsídio de empréstimos oficiais ou de pagamento de juros não parece incomodar muito o financismo.

Esse desajuste estrutural, essa ineficiência do gasto público, esse enorme desperdício de recursos públicos não recebem jamais o destaque merecido nas páginas impressas ou nas telas. Para eles, a razão é óbvia: as despesas de natureza financeiras são intocáveis! De acordo com as orientações do oráculo, os cortes orçamentários necessários devem ocorrer apenas nas áreas de maior sensibilidade – nas contas sociais e nos investimentos. Assim, o financismo berra que 2015 deverá ser um ano de redução nas contas como saúde, educação, previdência, saneamento e assemelhadas. Tudo isso para viabilizar a sobra de recursos para o pagamento de juros da dívida pública. E vamoquevamo!


(*) Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.




Nenhum comentário:

Postar um comentário