Da Carta Capital
João Sicsú
Os novos tempos exigem uma economia política que tenha lado. O lado da classe trabalhadora
A sociedade brasileira entrou nos anos 2000 adormecida pelo
neoliberalismo do salve-se quem puder e anestesiada pelas precárias
condições econômicas. Grande parte da população tentava apenas
sobreviver depois do desastre das administrações neoliberais (1990-2002)
de Collor, Itamar e FHC. Faltavam empregos, renda, investimento,
produção, crédito e consumo.
Os governos Lula e Dilma conseguiram reduzir a taxa de desemprego,
elevar o salário mínimo, distribuir renda, ampliar o crédito e criaram
um enorme mercado de consumo de massas. Um mercado onde mais de 120
milhões de brasileiros podem consumir de forma regular.
Muito foi feito nos últimos dez anos em quase todas as áreas, mas a
única política que foi capaz de atingir seus objetivos de forma plena
foi a política macroeconômica. A inflação foi mantida sob controle, as
contas públicas estão organizadas e seus resultados sociais são
extraordinários. O desalentado se motivou e encontrou emprego. O
desempregado ganhou uma carteira de trabalho assinada. O trabalhador
virou consumidor. O crédito chegou às mãos do consumidor e das empresas.
O trabalhador brasileiro típico é aquele que ganha até três salários
mínimos. Casado com uma trabalhadora, ganham juntos entre 1,5 mil e 3
mil por mês. Moram nas grandes regiões metropolitanas em bairros e
localidades pobres e degradadas. Nas idas e vindas do trabalho, nos
passeios de domingo, descobriram que existem regiões seguras, com
iluminação, varrição, coleta de lixo, saneamento, transporte fácil,
habitadas por gente com saúde e estudo. Existem, portanto, pessoas que
vivem plenamente a cidade onde moram.
As famílias de trabalhadores passaram, então, a desejar viver. Pensaram
que podem ser mais que rudes trabalhadores que têm direito ao consumo.
Desejam alcançar o patamar de famílias com pleno direito à cidade.
Afinal, já estavam sobrevivendo com segurança tendo emprego, salário e
consumo.
Esta é a mudança de pauta, o desejo de viver, que já estava nítida
antes das manifestações de junho. Mas, o governo continuava fazendo a
velha economia política do governar “para todos” que objetivava
crescimento econômico com distribuição de renda. Tentava fazer mais do
mesmo.
A economia política do governar “para todos” é um conjunto de políticas
que convergem classes sociais distintas para objetivos comuns: lucros,
investimentos, produção, salários e consumo, tudo em ascensão,
compuseram o ciclo econômico do período 2004-2010. Gerar empregos,
distribuir renda com crescimento e ampliar o crédito e o consumo não
ferem interesses.
Na nova situação econômica e social do país, a diferença é que a
realização por parte do governo de uma pauta voltada para a satisfação
da vida, uma pauta que vai além da sobrevivência, não é mais possível
com uma economia política voltada “para todos”.
Para solucionar o problema crítico dos transportes urbanos, interesses
das máfias empresariais necessariamente devem ser contrariados (e das
montadoras multinacionais de veículos também). Para solucionar o
problema da saúde pública, interesses corporativos e econômicos
internacionais devem ser enfrentados. Para fazer uma reforma política
que impeça o poder econômico de financiar partidos e campanhas, será
necessário se opor a grandes empresas, bancos e seus representantes no
parlamento. Para promover um financiamento justo dos serviços públicos,
será necessária uma reforma tributária que enfrente os interesses dos
detentores de grandes riquezas, fortunas, heranças e rendas.
Deram excelentes resultados a economia política do governar “para
todos” do decênio 2003-2012. Mas os tempos mudaram - ou evoluíram. Os
novos tempos exigem uma economia política que tenha lado. Uma economia
política que esteja voltada para a nova pauta da classe trabalhadora
será uma economia política que provocará enfrentamento de ideias,
mudanças de alianças na sociedade e recomposição da base de apoio ao
governo no Congresso, que necessariamente se estreitará.
Esse é o xadrez político atual. Há duas opções para o governo: tentar
manter a economia política do governar “para todos” ou enfrentar o foco
da questão social dirigindo as baterias políticas contra ideias,
instituições, empresas e partidos que estão no campo adversário.
No momento, o governo está entre as duas opções: quer atender a nova
pauta, mas quer reduzir o enfretamento se utilizando de desonerações
tributárias e fazendo concessões políticas (por exemplo, os médicos
cubanos foram esquecidos).
A conjuntura é histórica: é hora de escolher com quem governar e para
quem governar. Não é possível mais governar “para todos”, ainda mais na
era dos pibinhos. Também não será possível permanecer entre duas opções
irreconciliáveis. Tal caminho será considerado muito limitado por uma
classe trabalhadora que está exigente. É hora de o governo fazer
escolhas. Os trabalhadores já fizeram as suas.
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