Ladislau
Dowbor sustenta: país exige mudanças, mas para fazê-las é
preciso redistribuir riqueza. Herança da ditadura, impostos
atuais são injustos e bloqueiam direitos
Um
certo clima de impasse marca a cena brasileira, depois da
grande onda de manifestações em junho. Qual será o próximo
lance? Mídia e conservadores, ávidos por capturar os protestos,
constroem uma narrativa primária, porém relativamente
eficaz. Tem dois eixos: “a culpa é do governo, incompetente;
será preciso apertar os cintos”. Tal simplismo, presente em
toda a cobertura midiática, é duplamente funcional. Volta o
foco do descontentamento contra um projeto político que a
maior parte das elites não aceita; e, em especial, evita que
a luta por direitos, ainda difusa, evolua para o perigoso
questionamento da desigualdade.
Mas e
entre os que fomos às ruas para exigir cidades habitáveis,
um país menos injusto e uma nova democracia? Quais os
próximos passos, após a redução das tarifas de ônibus? Que
propostas são capazes de sensibilizar novamente a multidão?
Como criar uma alternativa ao discurso conservador? Na
busca de respostas, vale considerar o que sugere Ladislau
Dowbor, um economista com vasta experiência em temas como
redistribuição de riquezas e formas colaborativas de
produção. Ele quer recolocar na pauta nacional o tema da Reforma
Tributária. Seu raciocínio é claro: não há
mágicas, na vida pública; para conquistar direitos, é
preciso enfrentar privilégios; só se abre espaço para o
Comum impedindo que poucos se apropriem da riqueza produzida
por todos.
Ladislau
constrói esta trilha com base em informação relevante e
capaz de mobilizar. Ele lembra que o país ainda vive sob o
sistema tributário construído pela ditadura militar em 1966.
Sua característica essencial é concentrar riquezas. Ele
isenta de impostos as fortunas e as grandes empresas. Fecha
os olhos à sonegação e ao ocultamento de dinheiro nos
centros “off-shore”. Concentra a carga tributária sobre os
salários e o consumo. Como resultado, priva o Estado
brasileiro dos recursos necessários a expandir direitos
sociais.
O
professor não se limita à crítica. Em entrevista concedida a Gilson
Camargo, do valoroso jornal sindical Extra-Classe, ele elenca
quatro caminhos para a Reforma Tributária. São facilmente
compreensíveis e sensibilizadores. Os ricos devem pagar
impostos. Os tributos precisam incidir principalmente
sobre a renda (concentrando as contribuições sobre quem
podem oferecê-las) e não sobre o consumo (porque neste
caso, pobres pagam as mesmas alíquotas dos milionários).
As atividades financeiras não podem ficar isentas. Além de
arrecadar, a tributação deve, complementarmente, inibir
atividades pouco desejáveis, como as que geram emissões de
CO² ou produzem lixo desnecessário.
Para
abraçar a Reforma Tributária, alerta Ladislau, é necessário
superar um mito interesseiro. Mídia e elites alegam que “a
carga tributária brasileira é altíssima” e tratam como
inaceitável qualquer proposta que implique mais impostos.
Vencer este tabu exige esforço. É preciso contestar dogmas
com fatos. Vale muito associar tributação com justiça social
e direitos. Impostos progressivos nas cidades podem, por
exemplo, transformar o sistema de mobilidade urbana e ou
assegurar tarifa zero.
O
Brasil vive um momento raro. Centenas de milhares de
pessoas, que foram às ruas, estão dispostas a examinar
criticamente a sociedade em que vivem. Podem ir além dos
discursos tolos — mas para tanto, é preciso abrir com elas
diálogos estimulantes. Segue a entrevista em que Ladislau
expõe, em detalhes, suas ideias. (A.M.)
A
aprovação do Código Tributário Nacional, em 1966, foi a
última alteração no sistema de arrecadação de impostos do
país. Quase meio século depois, quais são os re flexos dessa
reforma?
Ladislau
Dowbor – O código de 1966 é aprovado como parte de
um conjunto de medidas que consolida a concentração de renda
no país. Trata- -se da mesma lógica do arrocho salarial
promovido com o golpe de 1964. Durante os anos 1950,
expandem-se no Brasil as empresas multinacionais, com
particular importância do automóvel. No país pobre da época
havia a opção de reformas de base, com aumento do salário
mínimo e reforma agrária, o que expandiria o mercado interno
popular. E havia a opção inversa, de concentração maior ainda
da renda. A primeira opção geraria mais mercado de bens
populares, ou bens-salário. A segunda geraria maior mercado de
luxo, expandindo a classe média e o consumo do tipo
apartamento/carro/ eletrodomésticos. Esta última foi a opção
imposta, e a lógica da reforma tributária foi de desonerar as
classes abastadas para que pudessem comprar os produtos
so fisticados produzidos pelas multinacionais. Com isso, os
instrumentos distributivos da tributação, como uma elevada
alíquota de Imposto de Renda, bem como impostos sobre a
fortuna, sobre herança e sobre a terra foram ignorados em
proveito de tributos indiretos embutidos no preço dos bens que
compramos. De finiu-se assim a principal característica do
sistema tributário nacional, que permanece até hoje, que é dos
pobres pagarem proporcionalmente mais impostos do que os
ricos, e de se abandonar a visão redistributiva dos impostos,
que foi, por exemplo, o fator principal do sucesso do modelo
de desenvolvimento europeu.
Por
que é difícil promover nova reforma tributária? Que
interesses estão em jogo e qual a relação dessa agenda com o
sistema político-partidário?
A
dificuldade maior reside no modelo de financiamento das
campanhas políticas. Uma das heranças mais pesadas da era FHC
foi a autorização, a partir de 1997, do financiamento
corporativo das campanhas. Isso elevou fortemente os custos de
uma eleição. Em texto recente, Alceu Castilho (jornalista,
autor do livro Partido da Terra, Ed. Contexto, que revela o
percentual do território brasileiro que está nas mãos de
políticos) a firma que existe uma bancada da Friboi no
Congresso, com 41 deputados federais eleitos e sete senadores.
Dos 41 deputados financiados pela empresa, só um, o gaúcho
Vieira da Cunha, votou contra as mudanças no Código Florestal.
O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25
milhão de agropecuárias, de um total de doações para a sua
campanha, que foi de R$ 2,3 milhões. A conclusão a que
Castilho chega é que a Friboi não patrocinou essas campanhas
para que eles votassem contra os interesses da empresa, que
evidentemente é a favor das mudanças no Código Florestal, pois
a plantação de soja empurra os rebanhos de gado para o Norte,
para a Amazônia, o que interessa à empresa. Ou seja, com o
financiamento corporativo, temos uma bancada ruralista, da
grande mídia, das montadoras, dos grandes bancos, das
empreiteiras, e temos de ficar à procura de uma bancada do
cidadão. Esta deformação maior do próprio núcleo de aprovação
das leis torna difícil, na atual composição do Congresso, e
enquanto não se instituir o financiamento público e
controlado das eleições, fazer qualquer modificação tributária
que seja do interesse da população em geral.
Quais
diretrizes devem orientar uma reforma tributária voltada
para os interesses da sociedade e para os princípios da
justiça tributária?
As
diretrizes de uma reforma decente são bastante claras. O
objetivo geral é de se assegurar que o dinheiro público seja
utilizado de maneira produtiva, estimulando as atividades que
promovem o desenvolvimento equilibrado, e taxando as que são
mais prejudiciais. Nesse sentido busca- se desonerar as
atividades que geram emprego, por exemplo, e a folha de
pagamento em geral. Mas também se trata de taxar as atividades
especulativas financeiras. O melhor imposto que havia no
Brasil, a CPMF, taxava essencialmente as movimentações
financeiras dos grandes intermediários, era simples de cobrar
e favorecia o financiamento da saúde pública, tendo,
portanto um impacto redistributivo. Outro princípio é de se
assegurar um peso maior aos impostos diretos progressivos,
como o IR com alíquota parecida com as dos EUA e Europa,
reduzindo- se o peso relativo dos impostos indiretos (sobre
bens de consumo), que oneram proporcionalmente mais os pobres.
Um terceiro princípio está ligado à tributação sobre a riqueza
familiar acumulada como, por exemplo, o imposto sobre a
fortuna na França, que é pago pelos muito ricos e permite
financiar o RMI, renda mínima dos mais pobres. Um quarto
princípio consiste em tributar as chamadas externalidades
negativas. Uma empresa que emite dióxido de carbono está
gerando impactos climáticos, poluindo o meio ambiente e
gerando doenças, mas não paga pelas emissões. Na Austrália,
por exemplo, as maiores empresas pagam uma taxa fixa por
cada tonelada de dióxido de carbono que emitem, o que as
estimula a instalar filtros e a pesquisar formas mais limpas
de produção.
Como
explicar, para não iniciados, por que o país precisa da
reforma?
De forma
geral, transita pelo governo um terço do PIB do país, hoje 34%
da totalidade da produção de bens e serviços. Essa carga
tributária é moderada e há uma correlação rigorosa entre o
tamanho do imposto e o nível de desenvolvimento: quanto mais
pobre o país, menor a carga tributária, piores são os serviços
públicos, o que por sua vez trava o desenvolvimento. Sai mais
barato para a população ter um sistema público de transporte
de massa do que ter de tirar diariamente o carro da garagem e
enfrentar os engarrafamentos. Nos Estados Unidos, gasta-se US$
7,3 mil por pessoa por ano com saúde, dominantemente com
gastos privados, e resultados pífios, enquanto no Canadá
vizinho, onde se gasta cerca de US$ 3,2 mil com sistema
público, os resultados são incomparavelmente melhores. Assim,
produzir meias e bonecas Barbie é muito mais produtivo com um
sistema empresarial privado, mas saúde, educação, cultura,
segurança e outros serviços essenciais para a nossa qualidade
de vida funcionam melhor e tornam-se mais baratos para todos
quando são assegurados com sistemas públicos, como é o caso na
Inglaterra, na França e em outros países que avançaram na
qualidade de vida. O mais produtivo é gerar um esforço de
informação para a população. Os grupos mais ricos, que não
querem mexer no imposto, colocam por toda parte os
“impostômetros”, mas não vemos em nenhum lugar um
“lucrômetro”. Temos pela frente um grande esforço didático, no
sentido de se mostrar que não se trata do tamanho do imposto,
mas sim de quem paga, sobre que atividades, e com que uso
final dos recursos.
É
viável alterar o sistema tributário sem promover reformas em
outros setores?
Uma
condição necessária para a reforma tributária é a difusão de
informação honesta sobre como funciona o sistema atual, e
porque ele favorece os mais ricos e frequentemente os menos
produtivos. O objetivo é o que se chama normalmente de
qualidade do imposto. Com a mídia que temos, hoje controlada
por um oligopólio de quatro grupos, a informação é
sistematicamente deformada. Por exemplo, quando foi abolida a
CPMF, a revista Veja apresentou uma capa de
um leão com boné de Papai Noel dizendo que o fisco estava
devolvendo R$ 80 bilhões à população. Evidentemente, não se
tratava de devolução nenhuma e sim da desoneração dos grandes
bancos, que deixariam de pagar o imposto que incidia
essencialmente sobre transações financeiras.
A
lavagem de dinheiro é uma variável a ser combatida antes da
reforma tributária?
Sim.
Outro eixo de iniciativas paralelas à reforma tributária tem a
ver com o controle dos recursos ilegais. Com a crise
financeira mundial gerou-se um conjunto de atividades de busca
de reforma institucional do sistema de intermediação, em
particular dos grandes bancos. Os primeiros resultados mostram
que o estoque de dinheiro ilegal, fruto de evasão fiscal,
lavagem de dinheiro de drogas, de comércio ilegal de armas e
de diversas formas de corrupção, é da ordem de US$ 21 trilhões
a US$ 32 trilhões de dólares, equivalente a algo entre um
terço e metade do PIB mundial, sob controle e gestão dominante
de bancos americanos e britânicos, além dos tradicionais Suíça
e Luxemburgo. Os dados levantados na pesquisa do Tax Justice
Network mostram que se trata, no caso do Brasil, de um
provável volume de US$ 520 bilhões, ou seja, cerca de 25% do
PIB brasileiro.
Qual
o custo para a sociedade e como combater essa subeconomia
criada pelo sistema bancário para se proteger?
Essa
ilegalidade e fraudes por parte dos grandes bancos
internacionais, que em nome de preservar a privacidade dos
seus clientes asseguram fluxos seguros e secretos de dinheiro
ilegal, penalizam os pagadores honestos, em particular os
assalariados cujos rendimentos são declarados pelos
empregadores, e desoneram as grandes fortunas, e em particular
os intermediários financeiros. Um elemento muito positivo
nesse quadro de gradual construção de um marco regulatório e
de busca de soluções mais adequadas é a aprovação em maio de
2012 da Lei da Transparência, que obriga todas as entidades
públicas a produzir as informações sobre todas as suas
atividades. É um primeiro passo importantíssimo, que deve
melhorar muito a redução do sistema de corrupção, mas falta
evidentemente evoluir para sistemas transparentes no setor
privado, em particular na linha da “disclosure” hoje demandada
por diversos governos, para que a população, ou pelo menos os
bancos centrais, saibam qual é o grau de desequilíbrio
financeiro que os grandes bancos estão gerando.
O
senhor tem reafirmado que o país precisa sair da atual
estrutura tributária regressiva – que, ao invés de captar
dos mais ricos para repassar aos mais pobres na forma de
serviços e assim dinamizar o conjunto da economia, cobra
mais imposto dos assalariados – e adotar um sistema
distributivo. O que isso significa?
A
deformação do nosso sistema torna-se aparente ao compararmos
os impactos do imposto sobre o coeficiente Gini, que mede a
desigualdade de renda. O resultado final é a fragilidade
financeira do Estado e a dificuldade de exercer uma política
redistributiva. O contraste com os países desenvolvidos é
evidente. Enquanto na União Europeia, depois dos impostos, o
coeficiente Gini melhora em 32,6%, na média da América Latina
melhora em apenas 3,8%, o que com o nível de desigualdade
existente, é particularmente grave. A mesma deformação se
apresenta, com algumas variações, para os diversos países da
região. Acrescente-se que o sistema financeiro comercial não
cumpre as suas funções de fomento. A financeirização das
atividades econômicas levou à generalização das atividades
especulativas e do rentismo, com particular gravidade no caso
do Brasil. Com a fragilidade das finanças públicas, o desvio
do uso das poupanças privadas pelo sistema bancário comercial,
e a passividade dos bancos centrais na regulação do sistema de
intermediação financeira – a herança do princípio da
“autonomia do Banco Central” – orientar os recursos em função
das necessidades do desenvolvimento torna- -se um dos
principais eixos de enfrentamento.
Como
reverter a relação entre a tributação regressiva e a
desigualdade social, que é uma característica de grande
parte das economias latino-americanas?
Após a
aprovação de cláusulas mais democráticas nas leis dos países
latino-americanos, a exemplo da reação pendular aos desmandos
das ditaduras militares, o embate mais forte está se dando em
torno da inevitável reforma tributária. Ter políticas
tributárias regressivas na região mais desigual do planeta é
particularmente absurdo e explica, inclusive, a persistência
da própria desigualdade. Na América Latina, o imposto direto
(em particular o imposto de renda que melhor permite
progressividade segundo a riqueza e a renda) é da ordem de
5,6%, quando representa 15,3% nos países da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Não é
surpreendente que a pobreza dos países coincida com a baixa
participação dos impostos diretos: é resultado do poder dos
mais ricos de impedir a tributação que poderia visa-los. É de
se notar também a fragilidade da carga da seguridade social
nos países mais pobres, ainda que constantemente denunciada
como excessiva na mídia conservadora. O resumo da questão é
simples: os privilegiados querem guardar os seus privilégios,
ainda que a sua manutenção trave o desenvolvimento do
conjunto. A tributação, no entanto, é essencial à continuidade
das políticas sociais.
A
reforma tributária implica mudança na distribuição de renda
e no modelo de desenvolvimento do país, em renúncia fiscal e
impactos na Previdência. Como equacionar isso?
O Brasil
instituiu desde 2003 uma política de sistemática
redistribuição de renda. É um gigantesco avanço, com cerca de
40 milhões de pessoas tiradas da miséria, dinamização do
consumo na base da sociedade, o que por sua vez reativou a
economia e gerou mais de 15 milhões de empregos formais,
criando uma dinâmica qualificada de círculo virtuoso. No
entanto, com cerca de 15% dos recursos do Estado sendo
diretamente redistribuídos para a sociedade sob forma de
previdência, bolsa-família e outros mecanismos, a carga
tributária líquida disponível para o Estado situa-se em torno
de 21% do PIB, o que é relativamente limitado para um conjunto
de atividades, em particular de fornecimento de serviços
sociais públicos e de investimento em infraestruturas. É
importante notar que uma tributação mais sólida das atividades
de especulação financeira obrigaria os capitais parados em
atividades rentistas a buscar aplicações produtivas na
economia, o que tenderia a estimular mais as atividades.
Voltamos sempre ao mesmo princípio básico, de se tributar
melhor os mais ricos, os rentistas financeiros que ganham sem
produzir, os recursos acumulados em paraísos fiscais, para
orientar esses recursos para reforçar as políticas
redistributivas.
Entrevista
publicado originalmente na revista Extra Classe
Nenhum comentário:
Postar um comentário