O Cafezinho: Bem-vindos ao Cafezinho no almoço. Hoje, vamos
falar de geopolítica, política internacional, soft power. Eu estava
conversando com o Celso, o embaixador Celso, sobre essas estratégias
norte-americanas de soft power, do imperialismo, e estava lembrando-o
sobre o Brazil Institute, do Wilson Center, criado em 2006, cujo
presidente é Anthony Harrington. Os nossos ministros do Supremo Tribunal
Federal não saem de lá, o Barroso esteve recentemente lá, dando uma
palestra, falando sobre a vergonha que é o Brasil, que tem muita
corrupção em todas as estatais, inclusive, cita o BNDES como caso de
corrupção, sendo que não houve, até agora, nada provado contra o BNDES.
Eu acho muito interessante isso, porque o presidente do Brazil Institute
é CEO da Albright Stonebridge, que é uma das grandes firmas dos Estados
Unidos, ela presta consultoria ao governo. Então, eu queria que o
senhor falasse sobre soft power: como os Estados Unidos conseguem
construir estratégias de soft power e manter a hegemonia global depois
da Guerra Fria, não apenas a hegemonia militar? O senhor acha que a
gente é ingênuo ao permitir que juízes brasileiros vão lá e falem mal do
Brasil?
Celso Amorim: Bom, não sei se a gente deveria proibir. Agora, eu acho
que, obviamente, é preciso entender porque as coisas acontecem. Eu
mesmo, fui convidado duas vezes pela Cambridge School. Então, eles sabem
fazer as coisas. Agora, é ingenuidade nossa, sobretudo, imaginar que
essas coisas são neutras, são apenas templos de saber, que aquilo não
tem um objetivo determinado. Uma vez que você saiba disso, claramente, o
risco diminui muito.
Eu não posso julgar comportamentos individuais, não tenho
conhecimento, inclusive não assisti a essas palestras que você se
referiu, mas há um certo deslumbramento. Na realidade, o ápice, pra quem
segue uma carreira político-intelectual, no Brasil e, infelizmente, em
outros países subdesenvolvidos da América Latina, é ser considerado nos
Estados Unidos. No fundo, a nossa mídia inventa isso. Eu me lembro que
eu era ministro do Exterior, constantemente atacado pelo mídia, quando a
Foreign Policy me colocou em sexto lugar [como “pensador global”], aí
curiosamente, a mídia brasileira teve que me tratar com respeito. Então,
existe um plano muito bem feito, muito bem articulado, estimulando você
a querer esse reconhecimento.
Agora, soft power é uma coisa muito complexa também, um conceito que
foi desenvolvido recentemente, pelo Joseph Nye, mas é um fato real, não é
só através dessas ações. Tem o soft power pela cultura, pelo cinema,
muitas ações. E que é uma coisa antiga também. Eu me lembro que, no
início dos anos 60, havia uma revista, aparentemente intelectual, que
era financiada pela CIA. Então, é preciso não ser ingênuo, acho que essa
é a questão fundamental.
O Cafezinho: O que eu sou crítico, Celso, é que tem juízes
que estão à frente de processos, de investigações, que serão revisados
ainda por cortes superiores e esses juízes investigam empresas que
concorrem com empresas norte-americanas. No caso, por exemplo, Odebrecht
e Petrobrás. Aí esse juiz recebe prêmio lá fora…eu não vejo outro país
permitir esse tipo de coisa.
CA: Outros países subdesenvolvidos, principalmente da nossa região,
provavelmente, permitem. Mas eu acho que não é um problema de permitir
ou deixar de permitir. O problema é a capacidade de perceber que isso
existe e que isso tem uma influência. Obviamente, com o que ocorreu no
Brasil, há aspectos que merecem ser investigados e penalizados, não há
dúvida. Agora, a conjunção de fatos que houve no Brasil, digamos assim, a
convergência disso nos ataques especialmente à presidenta Dilma e ao
presidente Lula, é que eu acho que é algo que espanta e chama a atenção.
E, ao mesmo tempo, uma conjunção de fatos e acusações que debilitam
todas as empresas, sejam privadas ou estatais, no Brasil. Isso que eu
acho que é uma coisa muito importante.
Você mencionou o BNDES, quer dizer, praticamente se criminaliza uma
operação que é absolutamente comum e muitos países fazem, que é dar um
subsídio. Se, ao mesmo tempo, a empresa for lá e fizer alguma coisa
errada, aí é outro problema, que eu não sei. Eu, como ministro do
Exterior, nunca soube, nunca fui informado, nunca vi ninguém fazendo
denúncia. Agora, a percepção que se criou é que se, digamos, uma empresa
brasileira recebeu financiamento do BNDES para atuar em determinado
país, já se inicia uma coisa criminosa. Então, é lamentável, porque não é
só a Odebrecht, são várias empresas. E várias delas com importância em
outras áreas, algumas com capacidade própria de financiamento. Mas,
enfim, eu não vou defender aqui o que foi feito de errado, seguramente
há coisas que foram feitas. O que eu acho é que há um ato de
autoflagelação no Brasil e um desejo de mostrar pra fora essa
autoflagelação, que é único. Por exemplo, nós tivemos há pouco tempo o
caso do software alemão usado para medir o grau de poluição causado
pelos motores dos carros da Volkswagen e, enfim, foi resolvido,
provavelmente a pessoa foi demitida, algo assim, mas eu não vejo a
justiça alemã constantemente incriminando e afetando a credibilidade da
Volkswagen. E a mesma coisa acontece com os Estados Unidos. Não me
consta que membros da justiça americana tenham vindo ao Brasil pra dizer
“olha, aconteceu isso, vocês olhem aí também”. Quer dizer, ninguém se
separa: o ministro da corte americana, é claro que ele cuida da justiça,
mas ele também tem noção da soberania nacional dos Estados Unidos. Ele
não precisou ouvir o Trump com o “Americans first” para que tivesse
noção da soberania nacional. Aliás, os Estados Unidos é um dos países
que mais preza a soberania nacional deles. Nas negociações de tratados
internacionais, por exemplo, a constituição americana está sempre acima e
qualquer tratado internacional, para ter uma vigência e derrubar os
americanos, é um processo complicadíssimo. Eles têm uma visão muito
clara da soberania nacional, que já não existe aqui. Eu acho que as
pessoas daqui pensam, as bem intencionadas, elas têm uma impressão de
que a justiça é uma coisa imparcial, internacional e eles são a
representação dessa justiça imparcial e internacional no Brasil. Não é
assim. Cada país está lutando pelo seu interesse próprio também. Se,
internamente, você quer punir alguma coisa, tudo bem. Agora, fazer disso
uma peça de demonstração é inédito.
O Cafezinho: Acho isso aí particularmente grave quando a
gente vai pra área de petróleo. O senhor também é do Rio de Janeiro e
sabe como a indústria do petróleo é importante para o Rio de Janeiro. É
uma das razões da crise econômica que devastou o estado do Rio de
Janeiro. Foi um desmantelamento de um certo projeto, desmantelamento da
indústria naval…você vê: o secretário de Estado dos Estados Unidos hoje,
o Tillerson, é ex-CEO da Exxon. Então, a gente vê que os Estados Unidos
têm uma diplomacia muito conectada com os interesses internacionais
deles. E o Rio de Janeiro foi o mais afetado pela Lava-Jato, opinião
minha, porque a gente sabe que o Rio de Janeiro, diferentemente de São
Paulo, que tem uma indústria diversificada, tem uma indústria muito
concentrada na área do petróleo, indústria avançada.
CA: Os grandes empregadores do Rio de Janeiro eram ligados à cadeia
de petróleo e à indústria naval. Indústria naval que, por sua vez,
também é ligada à indústria do petróleo, porque as encomendas da
Petrobrás são absolutamente fundamentais para os estaleiros existentes
no Rio de Janeiro. Outro dia, eu li uma estatística sobre o estaleiro
Mauá, que é uma coisa impressionante a redução de empregos. Basta você
pegar um Uber pra ver que boa parte dos motoristas são pessoas que
ficaram desempregadas, é o fulano que era engenheiro, outro que era
técnico. Estou falando de casos concretos que vi.
Então, na crise no Rio de Janeiro pode ter havido desmandos
administrativos também, ninguém vai negar que isso aconteceu, mas a
profundidade da crise vem desse problema do petróleo. E aí tem dois
atores: primeiro, a redução brutal do preço do petróleo, que atrapalhou
muito a Petrobrás e afetou muitos projetos; e, segundo, eu diria, no
caso da indústria naval, a flexibilização que continua havendo das
encomendas de conteúdo nacional, que acho que é outro crime que se está
cometendo contra a economia brasileira. Quer dizer, todos os países do
mundo cresceram à base da proteção do Estado, antigamente era tarifa,
hoje em dia tarifa só não basta, é muito pouco. Então, compra
governamental é um instrumento fundamental para política industrial e
nós estamos abrindo mão desse instrumento, não só voluntariamente, mas
também, digamos, o Brasil, nessa questão de entrar para OCDE e
participar inicialmente como observador de um acordo do qual o Brasil
nunca fez parte, enfim, esses pactos todos – teria sido com a ALCA
também, que nós conseguimos evitar, esses pactos todos são muito
relacionados com o debilitamento da indústria do Rio de Janeiro.
Agora, o preço do petróleo, eu não sei. Aí é pra quem acredita em
teoria conspiratória ou não acredita. O fato é que se você pegar os
países que foram muito afetados por essa baixa do preço do petróleo,
você tem Rússia, Irã (que é o inimigo mortal da Arábia Saudita, cujo
apoio foi necessário para manter os preços baixos), Venezuela e Brasil,
são os grandes países que foram afetados.
O Cafezinho: Vou insistir um pouco mais nessa questão do
petróleo, porque é ligada a essa questão da geopolítica. O senhor
concorda que o petróleo é um dos assuntos mais importantes da
geopolítica.
CA: A energia em geral, mas o petróleo, em particular.
O Cafezinho: Não sei se o senhor acompanhou que os Estados
Unidos liberaram a exportação de petróleo. Há uns dois anos, liberaram a
exportação de petróleo cru, mas eles sempre foram um grande exportador
de derivados de petróleo. O senhor conhece a história, sabe que uma das
pressões para o Brasil desmantelar o sistema ferroviário veio dos
Estados Unidos também, pra gente importar grandes quantidades de óleo
diesel dos Estados Unidos. Quando se analisa o gráfico, se vê que a
produção norte-americana de derivados vem crescendo a uma velocidade
muito grande e, ao mesmo tempo, a partir de 2008, o consumo deles começa
a cair (de derivados). Então, eu sei que é uma questão de teoria da
conspiração, só que, na realidade, é uma análise que eu faço da
geopolítica. É uma teoria, se é da conspiração, eu não sei. Mas que o
Brasil é o maior mercado de óleo diesel.
CA: Desculpa interromper, só queria lembrar a frase do Millôr
Fernandes: “o fato de eu ser paranóico não quer dizer que eu não esteja
sendo perseguido”. É a mesma coisa: o fato de parecer uma teoria da
conspiração não quer dizer que não seja verdadeira.
O Cafezinho: Exatamente. O que eu acho é que tem um pessoal
ingênuo, que acha que o imperialismo desapareceu. O imperialismo existe,
existem interesses econômicos. A gente tem que analisar até onde a
gente pode defender a nossa soberania. Nessa mesma época, em 2008, o
pré-sal estava começando a ser confirmado e o Brasil começando a fazer
refinarias. Ou seja, interesse exatamente oposto ao americano, que era
que a gente aumentasse a compra dos excedentes dos derivados do petróleo
americano. Então, essa é a teoria.
CA: É, eu acho que é uma coisa mais profunda. Claro que o petróleo é
importantíssimo. Eu fui ministro da Defesa e quando você discute as
hipóteses de conflito nas próximas décadas, uma delas é a escassez de
energia no mundo e a luta pelas fontes de energia. Sobre isso, tem
estudos americanos, mas tem também estudos russos, que concordam que a
luta pelos recursos naturais vai ser muito forte. Se o objetivo era
tomar o mercado naquele momento e tal, evidentemente que isso faz parte
da geopolítica global, não tenha a menor dúvida. E veja bem, o Brasil
não é só o petróleo, acho que tem também os parques aí, a
criminalização, eu também não posso entrar na discussão forense de cada
caso, agora, nossa energia nuclear também é afetada.
O Brasil era um dos pouquíssimos países do mundo, sem ser do conselho
permanente de segurança, que tinha submarino nuclear, submarino de
propulsão nuclear. E, de repente, você vê esse setor também afetado, com
falta de recursos. O presidente de uma dessas empresas ligadas à
termonuclear, que era o almirante, que foi o pai do programa…bom, se ele
fez alguma coisa errada, volto a dizer, eu não tenho meios de saber nem
de julgar, mas acho que tudo isso ao mesmo tempo é algo que
impressiona. Porque, se você fosse imaginar, digamos assim, o soft power
brasileiro, além da música e do futebol, você ia ver essa capacidade
econômica, essas empresas de energia presentes na América do Sul, na
África, presentes nos próprios Estados Unidos, ao mesmo tempo, a
descoberta do pré-sal, o Brasil produzindo, tendo a capacidade de
enriquecimento de urânio – são muito poucos os países que têm essa
capacidade – e aí, de repente, tudo isso fica sob ataque? É muito
curioso, né, você fica se perguntando: é tudo coincidência? Então, eu
não sei, aí é que eu acho que há uma falta de visão do interesse da
soberania nacional. Não é pra evitar que haja punição, não é isso. Eu
acho que o que foi feito errado tem que ser apurado, tem que ser punido.
Agora, também não pode haver uma falta de noção do que é a realidade
internacional. Quando houveram escândalos nos Estados Unidos, eles não
vieram aqui mostrar para os juízes brasileiros, porque não é assim. Esse
deslumbramento, que beira a subserviência, eu acho que é algo muito
grave e isso faz parte, se a gente quiser usar uma expressão mais
simples, do velho complexo de vira-lata, de que falava Nelson Rodrigues.
O Cafezinho: Imagina se General Motors, General Eletrics,
todas as grandes empresas industriais americanas…eu acho que uma coisa
que a gente não pode esquecer é o seguinte: o Brasil está montando uma
estratégia de produção de derivados que era baseada na Petrobrás, na
compra de produtos locais, da indústria naval e da indústria. De
repente, você ataca todas essas indústrias ligadas ao setor de petróleo.
Isso aí, pra mim, foi uma irresponsabilidade enorme.
CA: E sem a preocupação de preservar as empresas, né?! Enfim, eu não
posso entrar no julgamento de cada uma. Agora, eu acho que tudo isso ao
mesmo tempo, do petróleo ao enriquecimento de urânio, todos esses
setores, a capacidade de financiamento das nossas empresas no exterior…
O Cafezinho: Agora, já que a gente está falando de
geopolítica, hoje, as grandes potências mundiais são Estados Unidos, a
China e a União Europeia, só que mais no satélite americano. Ou não?
CA: Não, não diria que a União Europeia é um satélite americano. Eu
acho que há interesses comuns. Havia mais, na época em que existia a
União Soviética, porque naquela época a questão de defesa tinha um peso
muito grande e, hoje, eu diria que isso diminuiu muito. Há óbvias
divergências, por exemplo, entre Alemanha e Estados Unidos,
principalmente agora, com Trump. A chanceler de lá e primeira-ministra
Angela Merkel, mais de uma vez, manifestou estranheza, preocupação, quer
dizer, não é um conflito direto, mas há interesses.
E aí, isso é uma coisa importante de dizer também, porque você que
esses neoliberais brasileiros estão dizendo “não, as empresas estatais
são inexistentes”. É curioso, inclusive, quando se fala em privatização,
você não está privatizando. Em último caso, está dando a uma estatal
estrangeira. Eu não tenho nada contra elas, mas porque dar privilégios a
elas ao invés das estatais nacionais? Eu não sei que visão é essa.
Mas, pra voltar a um caso, vamos dizer, por exemplo, o Macron: se
elegeu, de um lado com uma agenda positiva, a de ser contra a Le Pen e a
extrema direita, mas ele tinha um lado neoliberal também, mas quando
ficou ameaçado de ser vendido um estaleiro francês para um consórcio
italiano (por trás do qual poderiam ter também chineses), ele foi lá e
estatizou. Quer dizer, aí é uma visão nacional. Há poucos anos, eu me
lembro também de algo semelhante: houve uma fusão de um grande consórcio
alemão ligado à área de defesa e a Merkel não deixou também que
houvesse a fusão que iria dar mais força para os britânicos.
Então, essa visão de que não há um interesse nacional, de que tem que
se procurar o melhor negócio, é uma visão ingênua. Eu fico triste de
ver, porque, às vezes, são pessoas que falam de boa fé. Quando alguém
pergunta aos economistas: não vai ser grave para o Brasil todas as
empresas irem à falência? Eles dizem: “não, porque eles fazem uma
licitação, vem outra de fora e vende mais barato”. Quer dizer, é uma
falta de visão do que é o interesse nacional. O interesse nacional,
naturalmente, na democracia – não pode separar a democracia, porque
nossa força vem do exercício do poder popular – mas é à base de
empresas, estatais ou privadas, predominantemente nacionais e da
capacidade dos nossos instrumentos.
Quer dizer, o BNDES, que está presente no mundo, a Petrobrás, fazendo
pesquisas espantosas, como já fez. As pessoas, quando falam mal, elas
esquecem que o Cenpes, segundo o ministério da Tecnologia, foi visto, em
determinado momento, como o maior centro de pesquisa de petróleo do
mundo. Talvez, a Exxon, com vários centros espalhados pelo mundo, fosse
maior, mas não havia um centro de pesquisa maior do que o da Petrobrás. E
a gente só vê as debilidades do país e a fraqueza, como se, na
realidade, a soberania nacional fosse um bem menor diante, digamos, da
busca de uma pseudo eficácia empresarial. O Brasil, as pessoas têm que
colocar isso na cabeça, mesmo como uma empresa, ele não está sendo bem
cuidado. Mas ele não é uma empresa. O Brasil é um país, é um povo. Você
não pode chegar para o povo brasileiro e dizer o seguinte, como Brecht
falava em uma peça: o Congresso não está bom, dissolve o Congresso; o
povo não está apoiando, dissolve o povo. Não pode, você está falando de
um povo. Quando se tem essa crise, 100 mil desempregados, ainda que se
beneficie as empresas, supondo que isso aconteça, você tem que pensar de
outra forma. Como, aliás, todos os países fazem. Isso não é privilégio.
Por exemplo, essa falsa ideia de que no Brasil existe muito imposto.
Existe imposto distorcido. Lá nos Estados Unidos, que são a pátria do
capitalismo, os impostos são mais altos, sem falar em França, Suécia,
enfim.
O Cafezinho: Aproveitando o gancho da questão tributária, a
gente tem um sistema de comunicação no Brasil que não permite que o
brasileiro saiba como funciona o sistema tributário em outros países.
Criam-se lendas, por exemplo, de que o brasileiro paga muito imposto.
CA: Na verdade, nós temos uma das taxas mais baixas do mundo. Acabou
de sair isso no livro do Picketty, que é um economista respeitado, e
está longe de ser um militante, mas certamente é contra as desigualdades
criadas pelo capitalismo. Com esse imposto altamente regressivo que
existe no Brasil fica difícil combater a desigualdade. Você pode
melhorar, e melhorou o lado social, nos governos recentes de Lula e
Dilma, sobretudo pela incorporação, através de programas como Bolsa
Família, Prouni, salário mínimo, junta tudo, o fato é o seguinte: você
vai dar aula, hoje, em uma universidade (eu fui professor nos anos 70,
80) e a cor dos alunos mudou. Isso é um fato importante. Mas quando você
começa a tirar esses programas, isso vai regredir. Eu não sei se as
pessoas estão suficientemente organizadas para impedir que isso ocorra.
Essa é uma grande preocupação. Agora, com relação à estrutura fiscal do
Brasil, é extremamente regressiva.
Eu participei ativamente desse projeto Brasil Nação, que foi liderado
pelo ex-ministro Bresser, que foi ministro do Fernando Henrique Cardoso
e do governo Sarney, ninguém pode acusá-lo de petralha, nem nada disso.
E uma das coisas que a gente chamou atenção, entre outras, na parte
econômica (câmbio, juro), pra poder permitir uma política industrial,
uma das coisas importantes era a estrutura tributária e a necessidade de
ter uma estrutura tributária mais progressiva. Agora, ficam diariamente
os grandes meios de comunicação – como eles não querem pagar impostos –
dizendo que não pode mudar e tal.
O Cafezinho: A grandeza do país está ligada também ao sistema
tributário. Porque a grandeza econômica, a quantidade de dinheiro
disponível para investimento público, evidentemente, vai ter que sair de
algum lugar e o único lugar de onde ela pode sair é a receita fiscal.
Então, eu acho que, quando a gente discute soberania, a gente tem que
ver que discutir o sistema tributário é fundamental para fortalecer o
país.
CA: Não tenho a menor dúvida. Vou citar um exemplo: eu trabalhei no
Ministério da Ciência e Tecnologia e, na época, o investimento em
ciência e tecnologia no Brasil era 0,6% do PIB. Depois aumentou um pouco
– acho que passou de 1%, chegou a 1,5% – agora está caindo de novo,
caiu bastante. E, por exemplo, na Coreia, naquela época, eram 2%, hoje
são 4% do PIB. Ora, isso vem de recursos fiscais. E as pessoas daqui
mentem e muitas pessoas acreditam. Naquela época, eu ouvia dizer: “mas a
maior parte do investimento em pesquisa e desenvolvimento é de empresas
privadas”. É empresa privada, mas financiada pelo Pentágono, que
encomenda as pesquisas. 50% das pesquisas nos Estados Unidos têm ligação
com os gastos armamentistas.
O Cafezinho: É, as pessoas falam “ah, os Estados Unidos tem o
Estado mínimo”. O que eu acho uma falácia, os Estados Unidos, na
realidade, são o maior Estado do mundo. Se você ver, por exemplo, o
tamanho do exército deles, das forças armadas, o que gastam.
CA: Não sei dizer exatamente o dado, mas é uma coisa assim: o gasto
militar norte-americano é mais do que a soma dos dez seguintes, alguma
coisa assim. E todas essas coisas que se desenvolveram na área civil (se
não todas, grande parte), seja na área de biotecnologia, seja na área
de química, novos materiais, informática, quase tudo nasceu (se não
inteiramente, boa parte) com o apoio do governo e das forças armadas.
Nós, não. Eu defendo que o braço de defesa do Brasil aumente também, mas
enfim. São esses os mitos que se criam. A própria privatização,
inclusive, não é privatização, é desnacionalização. Usam uma palavra
aparentemente mais bonita, mas, na realidade, não tem nenhum empresário
brasileiro comprando.
Nós criamos os BRICS. O Brasil está na origem dos BRICS. Na
realidade, a criação dos BRICS deriva de iniciativa brasileira. Nós
criamos os BRICS, junto com outros. Porque isso ajudava a equilibrar a
geopolítica e a geoeconomia mundial. Quer dizer, a atuação dos BRICS no
G-20 ajudou que, pela primeira vez, houvesse uma reforma no sistema de
cotas do FMI. Agora, talvez a gente também tenha contribuído para que
certos setores do chamado governo oculto da potência hegemônica tenham
ficado na defensiva. É BRICS, interação sul-americana, conselho
sul-americano de defesa, países árabes, Brasil sendo chamado para
conversar na Palestina, no Irã. Porque a questão é a seguinte: os
Estados Unidos não são monolíticos, mas existe lá um estabelecimento
profundo, que é bem marcado, e eu não estou inventando isso agora, isso
foi dito amplamente na década de 1960, 70. Eu acho que esse governo
profundo, quando ele passou a ver o Brasil atuando de uma forma
independente, procurando aglutinar a América do Sul, desenvolver
relações com outros países, ele começou a se preocupar.
Mas o que eu queria comentar é o seguinte: nesse processo de
privatizações também a China e a Rússia estão entrando, então, até os
países que contribuíram para essa mudança do cenário mundial, nós vamos
ter problemas com eles. Porque, como eles estão privatizando não apenas
por ideologia – também por ideologia – mas pra fazer caixa, então é tudo
em condições muito baratas.
O Cafezinho: Esse governo profundo, governo oculto, que o senhor fala, seriam as grandes corporações?
CA: Eu acho que as grandes corporações, o setor financeiro (cada vez
mais presente), mas também inclui o Estado de Segurança dos Estados
Unidos. Minha sensação, assim, eu nunca fiz jornalismo investigativo pra
ir atrás, mas se vê pela lógica que o presidente norte-americano tem um
grau de liberdade limitado. Quando o Obama disse para o Lula “esse é o
cara”, esse governo profundo disse “não, o que é isso, o cara tem que
ser um presidente nosso, não pode ser o presidente do nosso quintal”.
O Cafezinho: Então, são as corporações e a máquina do Estado. O Estado de Segurança é muito ligado também ao setor privado.
CA: É, tem o setor de inteligência, todo o departamento de Estado,
cada um vê de acordo com a posição que ocupa, mas não há uma
homogeneidade.
O Cafezinho: O senhor acha que a gente errou em não ter
antevisto alguns desses movimentos ocultos e não ter criado um sistema
de inteligência mais forte pra gente se defender desses ataques?
CA: Olha, eu vou dizer uma frase. Meu pai morreu com 101 anos, um
pouco lúcido ainda, mas ele costumava dizer assim: “vocês estão
cutucando a onça com vara curta”. Talvez, a gente tivesse que ter
aumentado a vara. Mas as coisas aconteciam em conjunto e, muitas vezes,
até o diálogo com os “governantes” americanos eram positivos. A própria
relação do Lula com o Bush, minha com a Condoleezza Rice [eram boas].
Depois, no governo Obama, de certa maneira, teve aquele problema no Irã,
que foi uma coisa curiosa, porque eles nos pediram e, quando nós
conseguimos, eles puxaram o tapete.
O Cafezinho: Talvez, por causa do governo oculto que o senhor mencionou.
CA: Talvez, por causa do governo oculto. Mas aí eu acho que foi mais
uma questão de lobby político, senão o governo oculto não teria deixado o
governo Obama fazer o acordo que fez depois, que foi um desdobramento.
Eu acho que ali, eles não quiseram o seguinte: era Brasil e Turquia, os
Estados Unidos não quiseram permitir que esses dois países entrassem no
grande jogo da política mundial.
O Cafezinho: O senhor viu que o Trump causou certo frisson na
imprensa americana, porque ele falou uma frase misteriosa, dizendo que
está vivendo uma bonança que precede a tempestade. Ele já tinha
levantado a hipótese sobre algum tipo de agressão ao Irã. O senhor tem
medo que o Trump desencadeie uma terceira guerra mundial?
CA: Olha, essas coisas são um pouco imprevisíveis. Eu tenho a
impressão de que ele faz aquela bazófia toda para amedrontar e fazer com
que o “inimigo” se retraia. Aliás, o mais grave de tudo, na minha
opinião, não para o mundo, mas para nós, aqui, é a ameaça do uso da
força na Venezuela. Isso é uma coisa que nunca aconteceu. Eles podem até
ter inspirado o golpe ou ajudado no golpe, mas, na América do Sul, eu
não me lembro, digamos assim, da 2ª Guerra pra cá, de nenhum presidente
norte-americano ter ameaçado o uso da força contra um país sulamericano.
O caso de Cuba é um pouco diferente. Mas eu não me lembro de nenhum
país na América do Sul.
Isso é uma coisa gravíssima, porque contraria, inclusive, princípios
da carta da ONU, no Artigo 2, parágrafo 4, que veda não apenas o uso da
força, mas a ameaça do uso da força.
Agora, voltando à sua pergunta: até que ponto isso vai se concretizar
ou não, eu não sei, mas acontece que já desencadeia forças negativas.
Então, por exemplo, eu não estou defendendo a Coreia do Norte, agora, a
arma atômica, infelizmente, virou símbolo de soberania. O Kim Jong-un
viu o que aconteceu com o Sadam Husseim, com o Kadafi, viu o que quase
aconteceu com o Irã, então, ele disse o seguinte: “eu tenho que ter como
me defender”. Eu não estou dizendo que isso é certo. Isso é outra
questão. Agora, eu acho que essa perspectiva e essa possibilidade do uso
da força apenas fortalece aqueles que procuram se armar para se
defender.
O Cafezinho: É verdade, incentiva a corrida armamentista, os orçamentos aumentam.
CA: É, eu acho que, no final das contas, isso pode acabar resolvido
negocialmente. Porque ele disse que pode destruir a Coreia do Norte,
mas, infelizmente ou felizmente, a Coreia do Sul iria junto. Então, eu
acho que não vão fazer isso. Agora, o que vai acontecer é o seguinte: a
Coreia do Norte quer ser reconhecida, se não de direito, pelo menos de
fato, como uma potência nuclear. Como, aliás, a Índia já é reconhecida,
como Israel já é reconhecido.
O Cafezinho: O senhor acha que foi um dos erros do Brasil, ao
longo dos últimos 50 anos, não ter desenvolvido uma tecnologia de
ponta…
CA: Ah, não sei, não vou entrar nisso. Isso é muito complicado,
porque o preço que teria com as rivalidades sul-americanas, seria muito
difícil imaginar a integração sul-americana com Brasil e Argentina tendo
programas nucleares militares. O que a gente não precisava, na minha
opinião, talvez, era ter assinado o TNP (Tratado de Não Proliferação de
Armas Nucleares). A gente ficava numa posição de certa ambiguidade. Do
ponto de vista tecnológico, a gente já tinha ficado com as garantias
necessárias. Mas enfim, eu acho que mais importante do que isso, é a paz
na nossa região. E acho até que nós devíamos ter programas conjuntos
com Argentina, por exemplo. Não armamentista, mas de desenvolvimento
nuclear. Já temos alguma coisa, mas podíamos ter mais.
O Cafezinho: Vou fazer uma última pergunta rápida sobre essa
questão de uma possível candidatura sua ao governo do Rio de Janeiro. O
ex-presidente Lula mencionou isso e eu sei que não é o momento de falar
sobre isso. Eu queria saber se, por acaso, o senhor pudesse ter uma
posição, o que pode ser feito para o estado do Rio de Janeiro, esse
drama?
CA: Olha, eu vou te dizer sinceramente: eu ainda não tomei nenhuma
decisão, também não quero me fazer de bonzinho, de procurado, nem nada
disso. Mas eu acho que é importante que haja aqui uma frente de forças
progressistas. Eu acho que o Rio de Janeiro está muito assolado,
problemas como o da segurança acabam assumindo uma proporção muito
grande. Apesar de serem reais também, as pessoas esquecem de ligar o
problema da segurança ao problema da saúde, ao problema do emprego.
Claro que tem ações que são específicas da segurança e que terão que
ocorrer. Mas, o que é muito importante é trabalhar para uma melhor
distribuição da renda aqui.
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