Por Mauro Santayana, no "Jornal do Brasil"
"Há
alguns dias, terroristas franceses, ligados, aparentemente, à Al Qaeda,
atacaram a redação do jornal satírico parisiense "Charlie Hebdo", em
represália pela publicação de caricaturas sobre o profeta Maomé.
Doze
pessoas foram assassinadas, entre elas alguns dos mais famosos
cartunistas e intelectuais do país, e dois cidadãos de origem árabe, um
deles, estrangeiro, que trabalhava há pouco tempo na publicação, e um
membro das forças de segurança que estava nas imediações.
Logo em
seguida, houve, também, outro ataque, a um supermercado kosher na
periferia de Paris, em que quatro judeus franceses e estrangeiros
morreram.
Dias depois, milhões de pessoas e personalidades de
vários países do mundo, se reuniram nas ruas da capital francesa, para
protestar contra o atentado, e se manifestar contra o terrorismo e pela
liberdade de expressão.
Na mesma primeira quinzena de janeiro,
explodiram carros-bomba, e homens-bomba, também ligados a grupos
radicais islâmicos, no Líbano (Beirute), na Síria (Aleppo), na Líbia
(Benghazi), e no Iraque (Al-Anbar), com dezenas de mortos, em sua
maioria civis.
Mas, como sempre, não seria normal esperar que
algum desses fatos tivesse a mesma repercussão do atentado em Paris,
capital de um país europeu, ou que a alguém ocorresse produzir cartazes e
neles escrever "Je suis Ahmed", ou "Je suis Ali", ou "Je suis Malak",
Malak Zahwe, a garota brasileira, paranaense, de 17 anos, que morreu na
explosão de um carro-bomba, junto com mais quatro pessoas (20 ficaram
feridas), no dia 2 de janeiro, em Beirute.
No entanto, os homens,
mulheres e crianças, mortos, todos os dias, no Oriente Médio e no Norte
da África, são tão frágeis e preciosos, em sua fugaz condição humana,
quanto os que morreram na França, e vítimas dos mesmos criminosos,
criados pela onda de radicalização e rápida expansão do fundamentalismo
islâmico, nos últimos anos.
Raivosas, autoritárias, intempestivas, numerosas vozes se alçaram, em vários países, incluído o Brasil, para gritar - em raciocínio tão ignorante quanto irascível - que o terrorismo não tem que ser "compreendido" e, sim, "combatido".
Os
filósofos e estrategistas chineses ensinam, há séculos, que sem
conhecê-los, não é possível vencer os eventuais adversários, nem mudar o
mundo.
Além disso, não podemos, por aqui, por mais que muitos
queiram emular os países "ocidentais", em seu ardoroso
"norte-americanismo" e "eurocentrismo", esquecer que existem diferenças
históricas, e de política externa, entre o Brasil, os EUA, e países da
OTAN como a França.
Podemos dizer que "Somos Charlie", porque
defendemos a liberdade e a democracia, e não aceitamos que alguém morra
por fazer uma caricatura, do mesmo jeito que não podemos aceitar que uma
criança pereça bombardeada pela OTAN no Afeganistão ou na Líbia, ou
porque estava de passagem, no momento em que explodiu um carro-bomba,
por um posto de controle em Aleppo, na Síria.
Mas é preciso
lembrar que, ao contrário da França, nunca colonizamos países árabes e
africanos, não temos o costume de fazer charges sobre deuses alheios em
nossos jornais, não jogamos bombas sobre países como a Líbia, não temos
bases militares fora do nosso território, não colaboramos com os EUA em
sua política de expansão e manutenção de uma certa "ordem" ocidental e
imperial, e, talvez, por isso mesmo - graças à sábia e responsável
política de Estado, que inclui o princípio constitucional de não
intervenção em assuntos de outros países - não sejamos atacados por terroristas em nosso território.
As
raízes dos atentados de Paris, e do mergulho do Oriente Médio na maior,
e, com certeza, mais profunda tragédia de sua história, não está no Al
Corão ou nas charges contra o Profeta Maomé, embora essas últimas
possam ter servido de pretexto para ataques como o que ocorreu em Paris.
Elas
começaram a se tornar mais fortes, nos últimos anos, quando o
"ocidente", mais especificamente alguns países da Europa e os EUA,
tomaram a iniciativa de apoiar e insuflar, usando também as redes
sociais, o "conto do vigário" da "Primavera Árabe" em diversos países,
com a intenção de derrubar regimes nacionalistas que, com todos os seus
defeitos, tinham conquistado certo grau de paz, desenvolvimento e
estabilidade para seus países nas últimas décadas.
Inicialmente
promovida, em 2011, como "libertária", "revolucionária", a "Primavera
Árabe" iria, no curto espaço de três anos, desestabilizar totalmente a
região, provocar massacres, guerras civis, golpes de Estado, e alcançar,
por meio da intervenção militar direta e indireta da OTAN e dos EUA em
vários países, a meta de tirar do poder, a qualquer custo, regimes que
lutavam para manter um mínimo de independência e soberania em suas
relações com os países mais ricos.
Quando os EUA, com suas "primaveras" - que não dão flores, mas são fecundas em crimes e cadáveres
- não conseguem colocar no poder um governo alinhado com seus
interesses, como na Ucrânia e no Egito, jogam irmão contra irmão e
equipam com armas, explosivos, munições, terroristas, bandidos e
assassinos para derrubar quem estiver no comando do país.
O
objetivo é destruir a unidade nacional, a identidade local, o Estado e
as instituições, para que essas nações não possam, pelo menos durante
longo período, voltar a organizar-se, a ponto de tentar desafiar, mesmo
que em pequena escala, os interesses norte-americanos.
Foi assim que ocorreu com a intervenção dos EUA e de aliados europeus como a Itália e a França - contra a recomendação de Brasil, Rússia, Índia e China, no Conselho de Segurança da ONU - no Iraque, na Líbia e na Síria.
Durante décadas, esses países - com quem o Brasil tinha, desde os anos 1970, boas relações -
viveram sob relativa estabilidade, com a economia funcionando,
crianças indo para a escola, e diferentes etnias, religiões e culturas
dividindo, com eventuais disputas, o mesmo território.
Estradas, rodovias, sistemas de irrigação, foram construídos - também com a ajuda de técnicos, operários e engenheiros brasileiros
- com os recursos do petróleo, e países como o Iraque chegavam a
importar automóveis, como no caso de milhares de Volkswagen Passat
fabricados no Brasil, para vender aos seus cidadãos de forma subsidiada.
Na
Líbia de Muammar Kadafi, segundo o próprio "World Factbook" da CIA, 95%
da população era alfabetizada, a expectativa de vida chegava, para os
homens, segundo dados da ONU, a 73 anos, e a renda per capita e o IDH
estavam entre os maiores do Terceiro Mundo, mas esses dados nunca foram
divulgados normalmente pela imprensa "ocidental".
Pode-se
perguntar a milhares de brasileiros que estiveram no Iraque, que hoje
têm entre 50 e 70 anos de idade, se, naquela época, sunitas e xiitas se
matavam aos tiros pelas ruas, bombas explodiam em Basra e Bagdá todos os
dias, como explodem hoje, a qualquer momento, também em Trípoli ou
Damasco, ou milhares de órfãos tentavam atravessar montanhas e rios
sozinhos, pisando nos restos de outras crianças, mortas em conflitos
incentivados por "potências" estrangeiras, ou tentavam sobreviver
caçando, a pedradas, ratos por entre escombros das casas e hospitais em
que nasceram.
São, curdos, xiitas, sunitas, drusos, armênios, cristãos maronitas, inimigos?
Antes,
trabalhavam nos mesmos escritórios, viviam nas mesmas ruas, seus filhos
frequentavam as mesmas salas de aula, mesmo que eles não tivessem
escolhido, no início, viver como vizinhos.
Assim como no caso de
hutus e tutsis em Ruanda, e em inúmeras ex-colônias asiáticas e
africanas, as fronteiras dos países do Oriente Médio foram desenhadas,
na ponta do lápis, ao sabor da vontade do Ocidente, quando da partilha
do continente africano por europeus, obedecendo não apenas ao resultado
de "Conferências" como a de Berlim, em 1884, mas também à máxima de que
sempre se deve "dividir para comandar", mantendo, de preferência, etnias de religiões e idiomas diferentes dentro de um mesmo território ocupado pelo colonizador.
Eram Saddam Hussein e Muammar Kadafi, ditadores? É Bashar Al Assad, um déspota sanguinário?
Quando eles estavam no poder, não havia atentados terroristas em seus países.
E
qual é a diferença deles e de seus regimes, para os líderes e regimes
fundamentalistas islâmicos comandados por xeques e emires, na mesma
região, em que as mulheres - ao contrário dos governos seculares de Saddam, Kadafi e Assad -
são obrigadas a usar a burka, não podem sair de casa sem a companhia do
irmão ou do marido, se arriscam a ser apedrejadas até a morte ou
chicoteadas em caso de adultério, e não há eleições, a não ser o fato de
que esses regimes são dóceis aliados do "ocidente" e dos EUA?
Se
os líderes ocidentais viam Kadafi como inimigo, bandido, estuprador e
assassino, por que ele recebeu a visita do primeiro-ministro britânico
Tony Blair, em 2004; do Presidente francês Nicolas Sarkozy - a quem, ao que tudo indica, emprestou 50 milhões de euros para sua campanha de reeleição -
em 2007; da Secretária de Estado dos EUA, Condoleeza Rice, em 2008; e
do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi em 2009?
Por que, apenas dois anos depois, em março de 2011 - depois
de Kadafi anunciar sua intenção de nacionalizar as companhias
estrangeiras de petróleo que operavam, ou estavam se preparando para
entrar na Líbia (Shell, ConocoPhillips, ExxonMobil, Marathon Oil
Corporation, Hess Company) - esses mesmos países e os EUA,
atacaram, com a desculpa de criar uma "Zona de Exclusão Aérea" sobre o
país, com 110 mísseis de cruzeiro, apenas nas primeiras horas, Trípoli, a
capital líbia, e instalações do governo, e armaram milhares de bandidos
- praticamente qualquer um que declarasse ser adversário de Kadafi - para que o derrubassem, o capturassem e finalmente o espancassem, a murros e pontapés, até a morte?
Ora,
são esses mesmos bandidos, que, depois de transformar, com armas e
veículos fornecidos por estrangeiros, a Líbia em terra de ninguém,
invadiram o Iraque e, agora, a Síria, e se uniram para formar o Estado
Islâmico, que pretende erigir uma grande nação terrorista juntando o
território desses três países, não por acaso os que foram mais
devastados e destruídos pela política de intervenção do "ocidente" na
região, nos últimos anos.
Foram os EUA e a Europa que
geraram e engordaram a cobra que ameaça agora devorar a metade do
Oriente Médio, e seus filhotes, que também armam rápidos botes no velho
continente. Serpentes que, por incompetência e imprevisibilidade,
depois da intervenção na Líbia, a OTAN e os EUA não conseguiram manter
sob controle.
Os Estados Unidos podem, pelo arbítrio da força a eles concedida por suas armas e as de aliados - quando não são impedidos pelos BRICS ou pela comunidade internacional - se empenhar em destruir e inviabilizar pequenas nações - que ainda há menos de cem anos lutavam desesperadamente por sua independência - para
tentar estabelecer seu controle sobre elas, seu povo e seus recursos,
objetivo que, mesmo assim, nunca conseguiram alcançar militarmente.
Mas
não podem cometer esses crimes e esses equívocos, diplomáticos e de
inteligência, e dizer, cinicamente, que o fizeram em nome da "defesa da
Liberdade e da Democracia".
Assim como não deveriam armar
bandidos sanguinários e assassinos para combater governos que querem
derrubar, e depois dizer que são contra o terrorismo que eles mesmos
ajudaram a fomentar, quando esses mesmos terroristas, além de explodir
bombas e matar pessoas em Bagdá, Damasco ou Trípoli, todos os dias,
passam a fazer o mesmo nas ruas das cidades da Europa ou dos próprios
Estados Unidos.
O "terrorismo" islâmico não nasceu agora.
Mas
antes da balela mortífera da "Primavera Árabe", e da Guerra do Iraque,
que levou à destruição do país, com a mentirosa desculpa da posse, por
Saddam Hussein, de armas de destruição em massa que nunca foram
encontradas - tão falsa quanto o pretexto do envolvimento de Bagdá
no ataque às Torres Gêmeas, executado por cidadãos sauditas, e não
líbios, sírios ou iraquianos - não havia bandos armados à solta, sequestrando, matando e explodindo bombas nesses três países.
Hoje,
como resultado da desastrada e criminosa intervenção ocidental, o
terror do Estado Islâmico, o ISIS, controla boa parte dos territórios e
da sofrida população síria, iraquiana e líbia, e, a partir deles, está
unindo suas conquistas em torno da construção de uma nação maior, mais
poderosa, e extremamente mais radical do ponto de vista da violência e
do fundamentalismo, do que qualquer um desses países jamais o foi no
passado.
O
ataque terrorista à redação e instalações do semanário francês "Charlie
Hebdo", e do Mercado Kosher, em Vincennes, Paris, foram crimes brutais e
estúpidos.
Mas não menos brutais, e estúpidos, do que os
atentados cometidos, todos os dias, contra civis inocentes, entre
muitos outros lugares, como a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão.
Quem
quiser encontrar as sementes do caos que também atingiram, em forma de
balas, os corpos dos mortos do "Charlie Hebdo" poderá procurá-las no
racismo de um continente que se acostumou a pensar que é o centro do
mundo, e que discrimina, persegue e despreza, historicamente, o
estrangeiro, seja ele árabe, africano ou latino-americano; e no
fundamentalismo branco, cristão e rançoso da direita e da extrema
direita norte-americanas, cujos membros acreditam piamente que o Deus
vingador da Bíblia deu à "América" do Norte o "Destino Manifesto" de
dirigir o mundo.
Em nome dessa ilusão, contaminada pela vaidade e
a loucura, países que se opuserem a isso, e milhões de seres humanos,
devem ser destruídos, mesmo que não haja nada para colocar em seu lugar,
a não ser mais caos e mais violência, em uma espiral de destruição e
de morte, que ameaça a sobrevivência da própria espécie e explode em
ódio, estupidez e sangue, como agora, em Paris, neste começo de ano."
FONTE: escrito por Mauro Santayana, no "Jornal do Brasil". Transcrito no "Patria Latina" ( http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=d41d8cd98f00b204e9800998ecf8427e&cod=15009).
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