Leonardo Sakamoto 01/05/2013
A pior relação de exploração é
aquela que não percebemos como tal. É o machismo que lemos como
certos cavalheirismos, a homofobia que vemos como piadinha de
salão, o preconceito que sentimos em forma de dó ou pena. Porque
estes não flutuam na superfície mas estão lá no fundo, cravados em
nossos ossos, sob camadas e camadas sobrepostas ao longo de
gerações. Tá lá, quentinho, aninhado em nossa ignorância.
Algumas relações trabalhistas seguem o mesmo padrão.
Quando critico a desigualdade de direitos (direitos, não
condições econômicas) que se estabeleceu na maioria das
relações patrão-empregada doméstica, muitos amigos discordam.
Afirmam não ser o caso deles, pois a empregada sempre foi
tratada como muito respeito, sempre fez o que quis, é
considerada uma pessoa da família.
Pode ser, toda generalização esconde seus demônios. Mas
é exatamente aí que reside a perversidade dessas relações. O
processo de exploração existe, está lá, mas não é percebido
como tal. E não precisa ser reafirmado a todo momento, pois as
pessoas sabem muito bem qual papel desempenhar, principalmente
nas casas onde tudo parece reinar em ordem. Sabendo cada um o
seu lugar, as outras relações podem ser mais fluidas e livres.
Pela Casa Grande, circulavam muitos escravos, a senhora
cuidava dos bebês de cativas, mucamas eram confidentes e
brincavam com as sinhazinhas, alguns escravos tinham a
confiança do senhor para pegar o seu cavalo e ir resolver
assuntos na cidade quando necessário. A felicidade poderia até
reinar, mas – no fim – era uma liberdade assistida.
Não há como assistir ao excelente documentário “Doméstica”,
de Gabriel Mascaro, que estreia nos cinemas neste Primeiro de
Maio, sem pensar nisso. Tive a oportunidade de participar de
um debate com o diretor, no último dia 29, durante uma
pré-estréia em São Paulo. O seu objetivo não foi demonizar
patrões ou santificar empregados, mas mostrar as relações
muitas vezes perversas que se escondem nesse binômio –
perversidade que não se manifesta na forma de maus tratos, mas
na relação em si. Para isso, reuniu cenas do cotidiano dessa
relação gravadas por moças e rapazes filhos dos patrões.
O que houve em 13 de maio de 1888 foi uma abolição
formal do direito de propriedade de uma pessoa por outra. Mas
falhamos por mais de um século para garantir certos direitos e
mudar concepções de mundo, fazendo com que as nossas relações
trabalhistas e sociais ainda tenham muito de herança daquela
época. Alguns bradam que estamos mexendo com tradições.
Tradição, vale lembrar, não é algo necessariamente construído
de baixo para cima, mas pode ser imposto por alguém e
justificado ao longo de gerações por mil razões a ponto de
você esquecer de onde ela realmente veio.
Trabalho doméstico não é visto como trabalho, mas sim
obrigação, muitas vezes relacionado a um gênero, que tem o
dever de cuidar da casa. É sintomático, portanto, que apenas
recentemente a Organização Internacional do Trabalho tenha
conseguido que os países aprovassem direitos iguais para
trabalhadores domésticos em relação ao restante da sociedade.
E que, apenas agora, o Brasil tenha aprovado uma proposta de
emenda constitucional para equiparar direitos das empregadas
domésticas com o restante da sociedade.
Não visto como trabalho, é mais fácil não ver sentido em
determinadas reivindicações. Afinal de contas, ela é como se
fosse da família. Mas, com raras exceções, nunca terá os
mesmos direitos da família, receberá parte da herança e
participará das discussões sobre os rumos da casa.
(É como nós, jornalistas, que, devido às peculiaridades
da profissão, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em
seus espaços, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. E
só percebemos que essa situação não é real e que também somos
operários, transformando fato em notícia, quando nossos
serviços não são mais necessários em determinado lugar.)
A justificativa de que, com a nova PEC das Domésticas,
não haverá dinheiro disponível para pagar uma empregada que
durma no emprego, pois os direitos que elas têm vai aumentar é
real. Mas a mudança é necessária. Nossa sociedade foi
construída para funcionar assim, tendo como base de
sustentação trabalhadores de segunda categoria. Mudar isso
significa um aumento no custo do trabalho doméstico que vai
impactar diretamente no custo de vida de uma parcela da
população, pressionando por aumento de salários de quem
utiliza esses serviços e gerando demandas de mais dinheiro,
mais tempo livre e mais equipamentos públicos (como creches e
transporte público de qualidade para chegar antes em casa)
junto a empresas e governos. Enfim, não estou dizendo que há
vilões e mocinhos, as coisas são mais complexas que isso. Mas,
no contexto atual, perdemos todos como sociedade.
Sugiro, portanto, que vocês assistam ao documentário de
peito aberto. Julián Fuks, um dos expoentes da nova geração de
escritores brasileiros, escreveu: “sabe-se há tempos que não
existe estética sem política, que não existe política sem
estética. Tanto a política quanto a estética podem tomar as
formas mais diversas”. Quem procura extrair de um filme a
estética esquecendo que ela esconde por si uma verdade
política acaba voltando para casa com metade da experiência.
“Doméstica” traz esse debate e expõe
essa perversidade, ora de uma forma sutil, ora como um tapa na
cara. Há pessoas que ficarão irritadas com o documentário não
por questões estéticas, mas, talvez, por se verem nele. E, com
certeza, não será no papel de empregada.
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