quinta-feira, 23 de maio de 2013

A INFÂNCIA VISTA DE CIMA

Escrito por Leonardo Alves de Lima . Postado em Sociedade
A inundação de imagens nesta era digital vem flexionando a realidade, que de relacional pende cada vez mais para o imagístico. É o fotográfico registrando o que já foi raro e transformando-o em banal, pois quando sete bilhões de humanos disparam flashes capturando o milissegundo no tempo – espaço significa que, ver uma foto de alguém desfrutando de suas férias na praia será igual a milhares de outras imagens semelhantes. Ver uma é ter visto outras centenas sem jamais ter visto nenhuma outra. Ainda assim, há algo de interessante no mundo das imagens, a perspectiva de largura e altura. É o enquadramento, e por isso o enclausuramento de quem foi fotografado, a imagem só faz sentido presa em sua ótica.
Mas mude, por um momento, o ângulo de visão. Deixe, por um segundo de focar rostos e sorrisos, frentes e versos, sofrimentos ou alegrias para suspender sua câmera imaginária a noventa graus, até que a única coisa que possa ser vista seja o alto das cabeças humanas como pequenos pontos salpicados por calçadas e avenidas. Da clausura da imagem para a contemplação do homem sem altura e sem profundidade. Que significação poderia se atribuir a isso senão a distorção ótica que a sociedade da imagem vem fazendo de sua própria infância?
De todo o conjunto, da soma de um todo cujo resultado será a vida humana, a infância é aquela parte da vida que menos conhecemos. Mesmo entre especialistas o termo “infância” é cercado de significados, consonâncias e dissonâncias. Sabemos como nascemos desde a concepção do termo. Sabemos como o corpo jovem se desenvolve junto à abstração cognitiva do aprendizado e por fim, sabemos como morremos e assim abrimos mão da vida, mesmo a contragosto. Mas como abstraímos as primeiras informações e atribuímos a elas significado, isso se mantém como foco de estudo científico-filosófico há mais de duzentos anos. Não à toa as melhores propostas para essa fase da vida vieram de Freud.
É o período fálico do menino-Édipo que concorrerá com o pai pelo amor indivisível da mãe. O impulso no desejo de matar o pai contido pelo medo da castração e por fim, em algum momento, a identificação paterna. Período conturbado e intenso do que, para Freud, realiza-se a formação do aparelho psicológico. Podemos retratar a vida, a morte. A juventude ou a velhice, mas nenhuma imagem é capaz de dizer o que significa a infância, nesse sentido somos todos pontinhos negros vistos de cima. Iguais, sem profundidade e ainda no “raso” de toda uma vida.
Nesse raso, feitos completamente vulneráveis, e é nessa vulnerabilidade que residem as maiores violações de direitos civis da história humana. Do infanticídio de recém-nascidos considerados imperfeitos desde tempos ancestrais aos atuais que ainda são realizados em solo amazônico. Do trabalho escravo em minas de carvão cujo combustível alimentou a revolução industrial às lavouras de tabaco e as confecções “piratas” capitalistas travestidas de comunismo até as crianças-soldado africanas as quais não aparecem no jornal das oito, a infância é aquele ponto obscuro, cano de descarga de todas as perversidades, mas que são esquecidas na juventude das imagens cotidianas.
A infância vista de cima não cresce, permanece como um ponto na calçada, mas é tratada como vitrine de nossas esperanças, um eterno amanhã o futuro de uma nação. Então, qual é o retrato, a imagem da infância brasileira? É aquela analfabetizada e beijada nas duas bochechas magras pelo candidato da vez. Enclausurada na creche da esquina ou em casa onde faz a guarda dos irmãos menores. A infância brasileira é um espectro fantasmagórico que hora se apossa de um corpo são e que repousa em berço esplêndido, hora agoniza na favela, aquela mesmo ali vista da sua janela. Brasil infantil na democracia do “eu não sei, não sabia e jamais saberei”. Infância perdida em todas as nossas desigualdades, imagens não compartilhadas, não curtidas, mas que estão ai, espalhadas em todas as nossas casas legislativas re-eleitas para representar nossa própria meninice.
A infância é esta imagem vista de cima, o pontinho preto sem identificação. Acovardada no terror da auto castração e da dor da vida adulta. A boa notícia é que passa. O sujeito cresce, amadurece e torna-se senhor de sua própria vida para finalmente aparecer, ser fotografado e estampar o post de alguém e aí perder-se de novo entre milhares outras imagens.
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Leonardo Alves de Lima nasceu em Barra Mansa cidade industrial do Sul do estado do Rio de Janeiro. Estudou em escola pública ingressando ainda jovem na indústria metalúrgica até se voluntariar em uma Organização Não Governamental de cunho humanitário. Casado, pai de dois filhos atualmente é gestor de conhecimento.

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