O economista Luiz Gonzaga Belluzzo
afirma que a crise brasileira se assemelha à da Grécia. Com uma única
diferença: “A nossa troika está aqui. É representada pelo mercado
financeiro e pela visão truncada e míope de seus economistas”.
Professor da Unicamp, sócio da FACAMP, da consultoria Una e da revista Carta Capital, Belluzzo diz que a presidenta Dilma Rousseff deveria ter negociado o ajuste fiscal – de resto, necessário – com os sindicatos e os movimentos sociais, que a reelegeram.
Professor da Unicamp, sócio da FACAMP, da consultoria Una e da revista Carta Capital, Belluzzo diz que a presidenta Dilma Rousseff deveria ter negociado o ajuste fiscal – de resto, necessário – com os sindicatos e os movimentos sociais, que a reelegeram.
Infelizmente, não é o único problema.
Para Belluzzo, a economia nacional tem vários “cadáveres”, que
apareceram com mais contundência neste ano. A valorização do câmbio nos
últimos 20 anos é um deles, o que provocou um processo de
desindustrialização. Um segundo é o injusto sistema tributário. Nada
menos do que 58% da receita dos impostos é paga pelas camadas de renda
de até dois salários mínimos.
O economista defende uma total
reestruturação nas empresas envolvidas na operação Lava Jato. A exemplo
do que fizeram os Estados Unidos na crise das hipotecas, o governo
deveria assumir as companhias, saneá-las e, posteriormente, vendê-las em
leilões ou em operações de abertura de capital.
Ex-secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda (governo Sarney), Belluzzo recebeu a reportagem da
Brasileiros em seu apartamento em São Paulo, que mais se assemelha a
uma bem cuidada e catalogada biblioteca. A seguir, os principais trechos
da entrevista.
Brasileiros – Por que a recessão no Brasil chegou com uma velocidade tão acentuada?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Temos algumas vulnerabilidades que se
manifestaram agora. É preciso traçar a trajetória real do que aconteceu.
Vamos voltar à reação da economia brasileira à crise de 2008. Foi muito
rápida. O Brasil vinha em um ritmo de expansão, impulsionado pelo ciclo
de commodities e pelo crescimento da economia mundial. Nossa economia
cresceu com base no consumo. Naquele momento, entre 2004 e 2008, fomos
muito bem, também amparados pelas políticas sociais e pelos reajustes
reais do salário mínimo. Isso elevou o poder de compra de grande parte
da população. E houve uma queda muito pronunciada dos preços dos bens
duráveis, por conta da agressividade chinesa nas exportações,
principalmente os eletroeletrônicos. Isso fez com que a renda real,
sobretudo das pessoas que ascenderam economicamente, tivesse o auxílio
dos preços relativos. Eu sempre dou o exemplo da televisão de tela
plana. Na Copa do Mundo de 2006, comprei uma de 42 polegadas por R$ 12
mil; hoje, custa R$ 2 mil. Além disso, veio a expansão do crédito
consignado e a ampliação do crédito imobiliário, com o programa Minha
Casa, Minha Vida. O cenário todo colaborou para o aumento do bem-estar
das famílias. Conseguimos recuperar rapidamente o crédito em 2009. A
crise era de contágio, uma vez que no Brasil não havia calote de
hipoteca, como nos Estados Unidos. Mas, em 2011, o ciclo de consumo foi
perdendo força.
“A OPERAÇÃO LAVA JATO FOI A PÁ DE CAL NA CRISE. O PROGRAMA DE CONCESSÕES DE INVESTIMENTO PÚBLICO FICOU DANIFICADO GRAVEMENTE E A FUZILARIA MORALISTA ACABOU APAVORANDO O GOVERNO”
Mas do ponto de vista fiscal a situação não foi se deteriorando?
A relação entre o crescimento do PIB e da renda é de 2,5 por um. Quando a
economia desacelera, isso se reverte. Se olharmos os primeiros anos do
governo Dilma, é muito claro que a receita e o superávit primário
continuaram a crescer, mas em menor ritmo. Em 2015, o superávit já é
negativo na ponta. Portanto, a desaceleração da economia abriu espaço
para o desequilíbrio fiscal. Outro dia, li uma análise de uns
economistas mais ortodoxos, que dizia que as políticas sociais não cabem
no PIB. Até brinquei: vai ver que eles querem jogar os velhos do
penhasco.
Quais são as maiores deficiências do Brasil?
Há vários cadáveres enterrados. O primeiro deles, que os conservadores
não gostam de discutir, é a valorização do câmbio nos últimos 20 anos.
Agora, por exemplo, o câmbio está desvalorizando. E muitos dizem que
isso prejudica a inflação. O efeito é maior, dado o percentual de
componentes importados dos produtos feitos no País, que é de 27%. O
problema não começa quando se deixa o câmbio desvalorizar, mas quando
permite que ele se valorize, porque há uma mudança total nas cadeias
produtivas. O Brasil passou 30 anos se afastando das cadeias produtivas
globais. Os conservadores dizem – e isso é binário: precisa abrir a
economia. Foi o que fizeram no governo Fernando Henrique. Quando Lula
foi eleito, a taxa de câmbio se desvalorizou e o dólar foi a R$ 4, por
medo do PT. Na média, ficou em R$ 3,58. Essa desvalorização foi
acompanhada do ciclo de commodities. No fim de 2003 e início de 2004, a
economia começou a crescer. Nós fomos muito bem em exportações de
manufaturados. A Argentina cresceu 8% depois da crise da dívida de
2001/2002, o que elevou a demanda por produtos industrializados
brasileiros. Havia superávit comercial de manufaturados e commodities.
Em 2006/2007, a economia ainda estava bombando, mas esse efeito sobre a
indústria foi se tornando menor, dada a política adotada pelo Antonio
Palocci e seus agregados. No ano passado, o déficit comercial da
indústria foi de US$ 117 bilhões. O agronegócio segurou a balança. Mas
agora, o superávit desse setor está menor. Aumentamos as quantidades
exportadas, mas os preços caíram. O que estava programado? O Brasil
iniciar investimentos em infraestrutura. O Brasil é um importador
líquido. Tínhamos uma participação importante no comércio internacional,
durante o governo dos militares, com programas como o BEFIEX (Concessão
de Benefícios Fiscais e Programas Especiais de Exportação). Isso era
coisa do Delfim Netto e do Roberto Campos. O Delfim era
desenvolvimentista e o Campos era sem saber. Ele se dizia liberal, mas
não era. A partir dos anos 1990, a curva da competitividade da indústria
brasileira começa a declinar de uma maneira impressionante. No
campeonato da indústria nacional, o Brasil caiu para a terceira divisão.
Quais são os outros cadáveres?
O segundo cadáver é o sistema fiscal e tributário brasileiro, que é dos
mais regressivos do mundo. As alíquotas, que eram elevadíssimas após a
Segunda Guerra, começaram a retroceder. Nos Estados Unidos, começaram a
taxar menos os riscos, porque supostamente são eles que investem, o que
foi um desastre. E as pessoas no Brasil continuam a repetir essa
besteira. No nosso sistema, 58% da receita fiscal é extraída das camadas
de renda de até dois salários mínimos. O curioso é que dividendo não
paga imposto; nem na fonte, nem na declaração. É a mesma lógica
americana. O dividendo pertence ao acionista e supõe-se que, se ele
receber mais, vai investir. É uma tolice, porque precisamos proteger a
empresa, e não os acionistas. Portanto, nosso sistema fiscal é iníquo,
além de ser muito sensível às flutuações da renda. Quando se fala em
ajuste fiscal, eu penso: por que não temos um sistema tributário que
taxe os mais ricos? Por que não taxar a renda, os ganhos de capital?
Bill Clinton quando fez superávit, foi possível por cobrar imposto dos
lucros em bolsa. No caso brasileiro, o sistema é todo marcado pela
desigualdade. Qual é a participação dos juros da dívida pública no PIB? É
8% e vai crescer. De 2007 a 2011, o País pagou um PIB de juros. É uma
transferência de renda perversa. Isso tem muito a ver com o
conservadorismo de uma fração da sociedade.
E a Operação Lava Jato?
Foi, como dizia o general Ernesto Geisel, a pá de cal. A operação
produziu uma paralisia na economia. O programa de concessões de
investimento público ficou danificado gravemente e a fuzilaria moralista
acabou apavorando o governo, que ficou imobilizado. Ninguém quer ver
livres as ações inidôneas das empresas. Mas é preciso separar as coisas.
Parece que agora o juiz Sérgio Moro acertou, pois disse ser preciso
fazer acordos de leniência. É necessário fazer uma reestruturação das
empresas envolvidas, e fazer com que paguem multas pesadas, entregando
as ações que têm para o governo, que eventualmente poderá revendê-las em
leilões ou aberturas de capital. Nos Estados Unidos, isso foi feito com
os bancos, como o Citibank, a General Motors e a Ford.
A presidenta Dilma Rousseff agiu acertadamente ao baixar a meta fiscal?
Eu tenho dois cachorrinhos: o Karl Marx e o John Maynard Keynes. Eles me
falavam: esse ajuste fiscal não vai dar certo. É óbvio. A economia em
2014 já começou a desacelerar fortemente. Em cima disso, a equipe
econômica fez uma série de cortes na boca do caixa. Simultaneamente,
para colocar a inflação na meta, o Banco Central subiu os juros de
maneira agressiva. A dívida pública cresceu 3,5% somente em junho. Eles
dizem que a dívida em 2018 vai chegar a 66% do PIB; é uma conta bastante
frágil. Porque o mercado já aponta que ela vai além de 70% ainda neste
ano.
“DILMA FOI ELEITA COM O COMPROMISSO DE MANTER AS CONQUISTAS SOCIAIS. MAS O ATUAL AJUSTE PROVOCA DESEMPREGO. O ERRO FUNDAMENTAL É QUE O CORTE DE GASTOS FOI FEITO DE CIMA PARA BAIXO”
De alguma forma, a crise brasileira tem similaridade com o que acontece na Grécia?
Tem sim, pela ideia de que o ajuste vai fazer com que seja restaurada a
confiança dos investidores e a irrealidade da meta. É uma falsificação
da ideia de Keynes de confiança. O economista dizia que, para progredir,
os empresários precisariam melhorar as condições de seus balanços. Mas o
que vai acontecer é a piora dos balanços. Para os consumidores, a
mensagem é: vocês correm o risco de ficar desempregados. A população,
então, corta gastos. Como os empresários estão vendo isso, os setores de
bens de consumo não investem. Os indivíduos olham uns aos outros e
chegam à conclusão de que não vai dar certo.
Qual seria a alternativa a esse modelo para o Brasil?
A situação fiscal não era, de fato, das melhores. As pessoas não gostam
de falar de capitalismo; elas fogem do conceito. Dilma foi eleita com o
compromisso de manter as conquistas sociais. A crise fiscal hoje tem um
fundamento político. A independência do econômico do político é ingênua e
de má-fé. Mas o atual ajuste atinge setores e pessoas diferentemente.
Se provoca o desemprego, quem paga é o sujeito que chega em casa e diz:
perdi meu trabalho. Qual foi o erro fundamental? Não foi a necessidade
de se fazer um rearranjo das contas públicas. Foi feito de cima para
baixo, na base tecnocrática. O governo deveria ter consultado as bases
sociais que votaram na presidenta. Ela foi eleita com 54% dos votos. E
quem a escolheu? Foram os eleitores do Lula, das regiões mais pobres do
Brasil, cuja vida melhorou muito; cidadãos que subiram na escala social
com a valorização do salário mínimo e o Bolsa Família. Os sindicatos e
os movimentos sociais deveriam ter sido consultados. A Dilma vai me
perdoar, e eu gosto muito dela, mas tem uma visão tecnocrática da
situação. Isso não deu certo em nenhum lugar do mundo. Nisso somos muito
parecidos com a Grécia. Só que a nossa Alemanha está aqui dentro. Não
está fora. A nossa Troika está aqui: é representada pelo mercado
financeiro e pela visão truncada e míope de seus economistas.
Além de um ajuste mais criterioso, quais seriam medidas que conduziriam o País ao crescimento?
Tenho grande resistência em aceitar a dicotomia pessimismo/otimismo. Nós
devemos ter esperança. Ou seja, todos vamos trabalhar para que as
coisas deem certo. Temos de deixar o câmbio desvalorizar mesmo, para
proteger a indústria brasileira e recuperar a capacidade de coordenação
do Estado brasileiro dos investimentos de infraestrutura.
O senhor tem conversado com a presidenta Dilma?
Não. A última vez que conversei com ela foi em um almoço, junto com João
Manuel Cardoso de Mello, em Campinas. Somos amigos dela. Mas isso não
quer dizer que vamos concordar com o que ela está fazendo.
E com o Lula?
Com o Lula converso sempre. Ele sempre tem uma atitude muito positiva e
criadora. Não se deixa abater, a despeito do que têm feito com ele. Isso
de querer processá-lo por ter jantado com empresários, francamente! Eu
gostei muito de uma entrevista com Ciro Gomes. Ele não tem medo e
afirmou: “Ninguém vai dar golpe aqui, não! Nós vamos nos mobilizar
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