Ignacio Godinho Delgado. do Conversa Afiada Oficial.
A leitura recente
de O homem que amava os cachorros, magnífico romance do cubano Leonardo
Padura, trouxe-me de volta à mente as farsas judiciais montadas por
Stalin na antiga URSS. Através do isolamento, chantagens, torturas
físicas e psicológicas, dirigentes comunistas, militares, chefes de
polícia, cientistas…, todos que representassem obstáculos ao processo de
concentração do poder nas mãos de Stalin, confessavam crimes
espetaculares e delatavam antigos companheiros por atividades
anti-soviéticas. Antes e depois, o opróbio, a execração pública, por via
de orquestrada campanha na imprensa e nos meios de comunicação.
Naturalmente
que não vivemos estes tempos, embora certa direita, por ignorância ou
má fé, pretenda ver riscos de comunização e bolivarianismo (seja lá o
que isso for) em governos que, desde 2003, a par de promoverem medidas
singelas, mas efetivas, de inclusão social, colocaram sempre em posições
chave do Executivo representantes do agronegócio, do empresariado
urbano e do capital financeiro, além de conduzirem uma política
macroeconômica rigorosamente conservadora. Os elementos totalitários da
situação brasileira não estão do lado do espectro político que tem o PT
como principal expressão. Delações derivadas de isolamento e chantagem,
antecipadas e seguidas de espetacular campanha para execração pública
das pessoas supostamente atingidas (desde que ligadas ao PT e aos
governos que lidera), partem sabidamente da articulação que reúne
segmentos golpistas da oposição e a nossa velha mídia, sob controle das
mesmas famílias que cumpriram triste papel em episódios cruciais da
história brasileira, a exemplo de 1954, com a ação contra Vargas, e em
1964, com o apoio ao golpe.
Moro não é Stalin, nem Youssef,
Roberto Costa e Ricardo Pessoa têm qualquer semelhança com Bukharin,
Kamenev e Yagoda, para nomear alguns delatores nas duas situações
apontadas acima. Stalin era o dirigente máximo de um regime totalitário.
Moro é um apenas um peão no jogo da oposição. Seus métodos, contudo,
obviamente em escala e intensidade infinitamente menor, são os mesmos,
para propósitos diversos. Para Stálin, a preservação, a ferro e a fogo,
de uma situação tirânica. Para Moro, o desgaste de um governo eleito
legitimamente. Nos dois casos, contudo, procedimentos insustentáveis
para qualquer abordagem jurídica civilizada, como o atesta o insuspeito
Marco Aurélio Melo. Nos dois casos, a instrumentalização do Estado (para
usar uma expressão cara à oposição), com organismos de investigação e
personagens do Ministério Público (no Brasil alguns jovens e intocáveis
procuradores, que não se constrangem de revelar simpatias
oposicionistas), cumprindo um papel descaradamente político.
Os
elementos totalitários da situação brasileira complementam-se com a
identificação do inimigo do povo, que reuniria em si a capacidade de
produzir todo o mal existente na sociedade. É o petista. Ele é o
trotskista da URSS stalinista; o comunista, o judeu, o cigano, da
Alemanha nazi. A corrupção é apontada como inerente à condição petista e
só pode ser extirpada se seu hospedeiro também o for. Não importa que
nos últimos anos tenha sido criado o Portal da Transparência, a
Controladoria Geral da União, reequipada a Polícia Federal e acentuada
sua autonomia e a do Ministério Público. Não importa que os delatores
assinalem que alguns esquemas investigados tenham nascido antes da
ascensão do PT ao governo federal (quando finalmente começam a ser
investigados) e que um empresário tucano, relatando suas desventuras em
licitações desde a ditadura militar, alerte que nunca se roubou tão
pouco no Brasil, porque finalmente a corrupção está sendo investigada e
punida
(http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/11/1551226-ricardo-semler-nunca-se-roubou-tao-pouco.shtml).
Não interessa debater as raízes institucionais da corrupção e fazer as
reformas que possam debelá-las. Importa é execrar, submeter o petista ao
opróbio, ensejando as manifestações fascistas que têm atingido diversos
personagens ligados ao partido. Quando virá a primeira morte?
A
direita brasileira sempre se valeu das denúncias de corrupção para
atacar seus adversários trabalhistas, do PTB ao PT, dada a dificuldade
de obter êxito eleitoral com suas propostas reais. Imaculados Aloysio
Nunes, Aécio Neves, Ronaldo Caiado… Apenas com FHC, por conta do êxito
do Plano Real na contenção da hiperinflação, as forças políticas cuja
linhagem remonta à velha UDN venceram diretamente as eleições
presidenciais. Jânio e Collor eram outsiders e nuclearam seu discurso
eleitoral na abordagem moralista do tema da corrupção. Nenhum dos três
enfatizou as disposições de acentuação da subordinação externa da
economia brasileira e de dissolução do legado trabalhista, centrais à
visão de mundo udenista e peessedebista. Nos últimos tempos, após três
derrotas seguidas, tais forças têm dado vezo a atitudes intolerantes, o
ovo da serpente do totalitarismo, estimuladas por uma mídia, cujos elos
com o capital financeiro foram desvendados por estudo seminal de
Francisco Fonseca (2005), e que, hoje, precisa mais que nunca do golpe,
para salvar-se da insolvência anunciada, através de contratos polpudos
com o governo, a exemplo do que ocorre em São Paulo
(http://www.viomundo.com.br/denuncias/namarianews-governo-paulista-desova-mais-de-r-155-mi-na-abril-folha-estadao-istoe-epoca-e-panini.html).
O
acirramento da última campanha eleitoral, o atropelo na condução da
política de ajuste fiscal e a tragédia que é a comunicação do governo
Dilma favoreceram o cenário de intolerância que hoje vivemos. Todavia,
nos próximos meses não há coisa mais importante a fazer do que resistir
ao golpe. Vitorioso, vai-se o Pré-Sal, o que nos resta de soberania
nacional e parecerão suaves as dificuldades que hoje atingem o mundo do
trabalho.
FONSECA, F. (2005) O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo: Hucitec
Ignacio
Godinho Delgado é professor de História e Ciência Política na
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e
Desenvolvimento (INCT-PPED). Doutorou-se em Ciência Política pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e foi Visiting
Senior Fellow na London School of Economics and Political Science (LSE),
entre 2011 e 2012.
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