quinta-feira, 16 de julho de 2015

Considerações do pescoço dentro do garrote

Saul Leblon, na Carta Maior

  O acordo assinado entre a Grécia e a comissão do euro influenciará  a  luta pelo desenvolvimento em nosso tempo, inclusive no Brasil.

Assim deve ser analisado.

Não como um ponto fora da curva, mas  como a expressão da tirania financeira levada às últimas consequências contra um povo em busca de sua redenção.

Sua singularidade não consiste em escancarar o antagonismo sabido entre o poder do dinheiro e a democracia.

O que a tragédia evidencia é o desembaraço devastador de  um poder de coação ilimitado. Exercido com a virulência das tropas de ocupação. Sem qualquer pejo, escrúpulo ou restrição.

A quantidade muda a qualidade e enseja lições à luta pelo desenvolvimento sob a suoremacia das finanças desreguladas no século XXI.

As condicionalidades do socorro, da ordem de 60 a 80 bilhões de euros, incluem desde minúcias desconcertantes,   como abrir o comercio aos domingos,  à redução da economia grega a um protetorado da troika.

Subtraiu-se  de Atenas, inclusive,  a soberania na gestão das receitas a serem obtidas com as privatizações compulsórias, outra exigência do ‘ajuste’.

O radicalismo germânico gostaria que esses recursos fossem diretamente geridos por uma estatal  ‘neutra’, quer dizer, alemã. Não será assim, mas os credores terão a última palavra na movimentação dos recursos, reduzindo o poder de Estado grego a um colegiado propositivo.

Conservadores de diferentes matizes em distintas latitudes, inclusive anfíbios da esquerda brasileira , saborearam o massacre de forma desabrida ou velada.

Não poucos evocarão o suplício grego como uma advertência ao governo e ao PT: é impossível violar a  rendição aos mercados financeiros.

Essa, a leitura capciosa da tragédia.

Os que sibilam a suposta  fatalidade  são os  mesmos que desdenham dos avanços na construção do aparato institucional dos Brics, cujo banco de desenvolvimento começa a funcionar este ano como a  primeira dissidência séria ao ferramental do FMI e assemelhados.

Nada disso importa.

Diante do suplício da nação em carne viva, adicionalmente açoitada no pelourinho dos mercados globais, o jogral dos abutres grasna  à moda Thatcher: ‘there is no alternative’.

Possivelmente tenha sido esse um dos principais objetivos do massacre do último domingo.

Ou seja, renovar a resignação diante da falta de alternativas aos intermináveis programas de ajuste, causa e consequência, eles mesmos, de novos desequilíbrios paralisantes.

Não por acaso, o sugestivo  título do editorial de O Globo desta 4ª feira é:  ‘Grécia serve de alerta aos opositores do ajuste fiscal’.

A circularidade do ardil é eficiente.

A rosca sem fim consiste em aspergir recessão nos déficits fiscais, impondo cortes sucessivos, crescentes, em condições cada vez mais adversas e impossíveis de serem cumpridas  na  vida  dos povos e nações.

A dízima periódica levou a Grécia ao ponto em que chegamos.

O país perdeu 1/5 de tudo em seis anos de políticas de arrocho; a atrofia do PIB foi além , recuou 25%.

Saldo: a dívida hoje é superior a 170% do PIB –não por qualquer salto nos gastos , mas pela retração imposta ao numerador.

O corolário dessa espiral descendente é a execração dos hereges que inicialmente fustigaram o arrocho com a democracia para depois se tornarem vítimas dele.

Esse papel que já foi do PT, resvalou em Morales, persegue Correa, agora  pertence ao Syriza.

‘Populistas’, diz a direita; ‘medrosos’, assacam à esquerda...

As duas críticas guardam  pontos de contato com a longa sucessão dos protagonistas da esperança. Estes que de forma recorrente ascendem na vida das nações, sendo em seguida mastigados junto com promessas e compromissos entre os dentes da tríade inconciliável: democracia social- tirania financeira-governabilidade .

Mutatis mutandis somos todos gregos.

O que pode haver de mais parecido com a troika do que as chantagens e concessões impostas pela coalizão conservadora ao governo Dilma? Obrigado, a exemplo do Syriza, a engolir compromissos populares em troca da indulgência (ilusória) dos mercados locais e globais, seu mandato perambula à beira do sumidouro diante do qual se equilibra sua legitimidade.

Como reagir aos que cavalgarão essa tragédia acenando como alternativa o estandarte  da rendição incondicional?

Essa é a reflexão urgente, incontornável, atualíssima que o episódio grego impõe.

Em primeiro lugar, não se trata de medo ou coragem pessoal; de plano B ou Y , se isso significar apenas depositar tinta em papel.

Nunca é demais insistir, aos que se se rendem  à prostração e aos que a justificam como fatalidade.

Existe uma correlação de forças internacional adversa.

Ela explica  que um punhado de burocratas representantes do mercado financeiro mundial possa submeter um jovem líder progressista como  Tsipras ao garrote vil em praça pública.

E girar a rosca  do anel  no seu pescoço durante meses.

Até ele babar clemência e submissão.

Tudo isso à luz dos holofotes globais; sem que nenhum contrapoder equivalente interfera para socorre-lo ou  fustigar seus algozes.

Ressente-se a cena recorrente de um contrapoder não apenas financeiro, a exemplo das instituições internacionais em fraldas, a engatinhar no interior dos Brics, por exemplo.

Mas também  de uma aliança internacional militante.

Utopia?

O Fórum Social Mundial  já mostrou o quanto isso  é exequível e capaz de levar o calor do inferno emitido pelos algozes, diretamente ao seu habitat.

Tsipras e o Syriza foram garroteados até dobrarem os joelhos sem que uma praça do mundo gritasse, exceto Syntagma, em Atenas. A ressoar só a exultação das bolsas e mercados de câmbio urbi et orbi, sôfregos a galgar picos de lucratividade diante do novo deslizamento da esquerda mundial.

Não há como esquivar a inquietação de uma segunda  e mais dura reflexão e de seus desdobramentos.

O Syriza, a exemplo de muitos nas fileiras progressistas  –Carta Maior se inclui nessa autocrítica-- supôs que um escrutínio plebiscitário vitorioso, como o do ‘Não’ ao arrocho, no domingo, obrigaria o poder financeiro global a negociar e a mitigar seu devastador programa de escalpo e sangria.

Deu-se o oposto.

Teria sido um erro apostar no plebiscito, como afirmam os cirurgiões da rendição sem anestesia?

Não. Chávez, para citar um precedente histórico próximo, defendeu e fortaleceu o poder de barganha interno e externo de seu governo e o da Venezuela dessa forma.

Com uma diferença substantiva.

Havia sob seu abrigo um poder de Estado determinado a honrar o veredito das urnas. Preparado para isso, para ser mais exato --sem o que, o aluvião plebiscitário se reduz  a espuma ornamental.

Algozes sabem distingui-la da determinação organizada, capaz de transformar proclamações em correlação de força política.

A referência serve  ao Brasil dos dias que correm.

Os manifestos antigolpistas,  as evocações à retomada do desenvolvimento cumpriram seu papel de sirene.

Chegou a hora da práxis. E não apenas plebiscitária ou resumida à agenda distante e imponderável de 2018.

É forçoso dar às palavras o seu peso material na história. Passa da hora. O garrote não vai afrouxar, exceto pela ação organizada.

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