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“Houve um momento em que Grã-Bretanha, Alemanha e França
estavam, esses três países, na situação em que a Grécia está hoje. Houve
muitos modos para pagar dívidas, não um só. Isso é que Berlim e Paris
deveriam estar dizendo aos gregos”, argumenta o economista francês
Por [*] Tyler Durden, Zero Hedge (original – Die ZEIT) Piketty: “Germany Has Never Repaid Its Debts; It Has No Standing To Lecture Other Nations”. Traduzido do alemão para inglês por Gavin Schalliol e para português pela Vila Vudu, publicado em redecastorphoto
DIE ZEIT: Os alemães podemos ficar satisfeitos por até o
governo francês estar alinhado ao dogma alemão pró-austeridade? [não é
"austeridade": é ARROCHO (NTs)].
Thomas Piketty: Não. Absolutamente não. Não há razão nenhuma, nem
para a França, nem para a Alemanha, e especialmente não há razão alguma
para a Europa, ficarem “satisfeitas”. Temo muito nesse momento que os
conservadores, especialmente na Alemanha, estejam a um passo de destruir
a Europa e a ideia europeia, e tudo isso por causa de uma chocante
ignorância da história.
ZEIT: Mas nós, alemães, já nos reconciliamos com nossa história.
Piketty: Não. Não se reconciliaram com coisa alguma que tenha a ver
com pagar dívidas. O passado da Alemanha, nesse quesito, deveria ser
objeto de atento estudo dos alemães de hoje. Veja a história da dívida
externa, por exemplo: houve um momento em que Grã-Bretanha, Alemanha e
França estavam, esses três países, na situação em que a Grécia está
hoje. Na verdade, estiveram muito mais endividados que a Grécia hoje. A
primeira lição a extrair da história de dívidas governamentais é que
esse problema absolutamente não é novo. Houve muitos modos para pagar
dívidas, não um só. Isso é que Berlim e Paris deveriam estar dizendo aos
gregos.
ZEIT: Mas… E não têm de pagar o que devem?!
Piketty: Meu livro reconta a história da renda e da riqueza,
inclusive de nações. Quando estava trabalhando naquele livro, muito me
chamou a atenção a evidência de que a Alemanha é, na verdade, o único
bom exemplo de país que, em toda sua história, jamais pagou qualquer
dívida nacional. Nem depois da 1a. e da 2a. Guerra Mundial. Mas muito
frequentemente a Alemanha obrigou outras nações a pagarem, como depois
da Guerra Franco-Prussiana de 1870, quando cobrou reparações massivas da
França, e recebeu integralmente.
O estado francês padeceu ao longo de décadas, sob o peso dessa
dívida. A história da dívida pública é cheia de ironias. Só muito
raramente acompanha o que se entende por ordem e justiça.
ZEIT: Mas com certeza não se pode concluir daí que nada se poderia fazer, de melhor, hoje…
Piketty: Quando ouvi que os alemães dizem que mantêm posição de alta
moralidade sobre dívidas e que entendem que dívidas têm de ser pagas,
pensei: É piada! A Alemanha é o país que nunca pagou suas dívidas.
Nunca. Alemanha não tem competência para dar lições de moral sobre pagar
dívida externa.
ZEIT: O senhor está tentando apresentar como vencedores estados que não pagam o que devem?
Piketty: Pois a Alemanha é o melhor exemplo que há de, precisamente,
isso de que você fala: estado vencedor que não paga o que deve. Mas,
calma.
A história mostra que há duas vias para que um estado endividado saia
da condição de delinquente. Uma foi demonstrada pelo Império Britânico
no século 19, depois das dispendiosas guerras com Napoleão. É a via
lenta, que agora está sendo recomendada à Grécia. O Império pagou o que
devia mediante rígida disciplina orçamental. Funcionou, mas demorou
tempo extremamente longo. Durante mais de 100 anos os britânicos cederam
2-3% de toda a economia deles para pagar as dívidas – mais do que
gastaram com escolas e educação. Isso não tinha de acontecer, e não se
pode deixar que aconteça hoje.
O segundo método é muito mais rápido. A Alemanha é prova disso no
século 20. Essencialmente, há três componentes nesse método: inflação,
um imposto especial sobre riqueza privada e alívio na dívida.
ZEIT: O senhor está dizendo que o Wirtschaftswunder [“milagre
econômico”] alemão foi baseado no mesmo tipo de alívio na dívida que
hoje negamos à Grécia?
Piketty: Exatamente. Depois que a guerra acabou, em 1945, a dívida
alemã chegava a mais de 200% do PIB alemão. Dez anos depois, já restava
pouco: a dívida pública já era inferior a 20% do PIB. Mais ou menos no
mesmo tempo, a França conseguiu virada também muito semelhante, também
ardilosa. Ninguém jamais teria conseguido redução tão inacreditavelmente
rápida no montante da dívida, com essa “disciplina fiscal” que hoje
recomendamos à Grécia. Em vez de fazer o que aconselham que a Grécia
faça, os nossos dois estados, Alemanha e França, empregaram esse segundo
método, com os três componentes que mencionei, inclusive o alívio da
dívida. Considere o Acordo da Dívida, de Londres, em 1953, pelo qual 60%
da dívida externa da Alemanha foi cancelada e as dívidas internas foram
restruturadas.
ZEIT: Aconteceu, porque o povo reconheceu que as altas
reparações que estavam sendo cobradas da Alemanha depois da 1a. Guerra
Mundial foram uma das causas da 2a. Guerra Mundial. Dessa vez o povo
quis perdoar os pecados da Alemanha!
Piketty: Bobagem. Nada disso tem qualquer coisa a ver com limpidez
moral. O que houve foi uma decisão política e econômica racional.
Reconheceram, corretamente, que depois de grandes crises que tenham
criado cargas gigantescas de dívidas, as pessoas são obrigadas, em algum
ponto da crise, a pensar sobre o futuro. Ninguém pode exigir que novas
gerações paguem por décadas de erros acumulados dos próprios pais. Claro
que os gregos cometeram erros gigantescos, não há dúvidas disso.
Até 2009, o governo em Atenas “maquiou” seus livros contábeis. Mas
nem por isso a jovem geração de gregos teria mais responsabilidade pelos
erros dos que a precederam, que os jovens alemães, nos anos 1950s e
1960s. Todos temos de olhar à frente. A Europa foi criada sobre perdão
de dívidas e investimento no futuro. Não foi criada sobre a ideia de
padecimento infinito. É o que todos temos de ter em mente.
ZEIT: O fim da 2a. Guerra Mundial foi como a demolição de uma civilização. A Europa era um campo de morte. Hoje é diferente.
Piketty: É erro negar os paralelos históricos com o período do
pós-guerra. Considere a crise financeira de 2008/2009. Não foi simples
crise como qualquer outra: foi a maior crise financeira desde 1929. A
comparação entre os dois momentos, portanto, é válida. E é também válida
para a economia grega: entre 2009 e 2015, o PIB grego caiu 25%. São
números comparáveis às recessões na Alemanha e na França, entre 1929 e
1935.
ZEIT: Muitos alemães creem que os gregos ainda não
reconheceram os próprios erros e querem continuar a gastar sem qualquer
moderação.
Piketty: Se o mundo tivesse dito a vocês, alemães, nos anos 1950, que
vocês ainda não tinham reconhecido os próprios erros e fracassos, vocês
estariam até hoje pagando dívidas. Por sorte, o mundo foi mais
inteligente.
ZEIT: O Ministro das Finanças alemão, por outro lado, parece
entender que a saída da Grécia, da Eurozona, pode acelerar a unidade
dentro da Europa.
Piketty: Se começarmos a chutar países para fora, a crise de
confiança na qual a Eurozona já se debate hoje só piorará. Os mercados
financeiros imediatamente procurarão o país vizinho. Assim começaria um
longo, esgotante período de agonia, a cujas garras estamos correndo o
risco de sacrificar o modelo social europeu, a democracia, toda a
civilização europeia, sacrificada no altar de uma política conservadora e
irracional de ARROCHO.
ZEIT: O senhor acha que nós, alemães, não somos suficientemente generosos?
Piketty: Mas… que conversa é essa? O que você quer dizer com
“generosos”? Hoje, a Alemanha está lucrando muito sobre os empréstimos
prorrogados a taxas de juros comparativamente altas.
ZEIT: Que solução o senhor sugere para essa crise?
Piketty: Temos de organizar uma conferência sobre todas as dívidas da
Europa – como foi feito depois da 2a. Guerra Mundial. Uma
reestruturação de toda a dívida, não só da Grécia, mas de vários países
europeus, é inevitável. Mesmo agora, perdemos seis meses nas negociações
absolutamente sem nenhuma transparência, com Atenas.
A noção que o Eurogrupo cultiva, de que a Grécia alcançará 4% do PIB
como superávit no orçamento e pagará suas dívidas dentro de 30-40 anos
ainda está sobre a mesa. Supostamente, haverá superávit de 1% em 2015,
depois 2% em 2016, e 3,5% em 2017.
Tudo isso é completamente ridículo! Jamais acontecerá. E continuamos a adiar o debate necessário, até o dia de são-nunca.
ZEIT: E o que pode acontecer depois de grandes cortes na dívida?
Piketty: Terá de haver uma nova instituição europeia, para determinar
o máximo de déficit admissível no orçamento, para impedir que a dívida
volte a crescer. Por exemplo, poderia ser uma Comissão do Parlamento
Europeu, formada de deputados eleitos nos Parlamentos nacionais. Os
parlamentos devem poder tomar decisões orçamentárias.
É grave e caríssimo erro minar a economia europeia – que é o que a
Alemanha está fazendo hoje, ao insistir que outros estados permaneçam na
miséria, oprimidos por mecanismos pelos quais só Berlim se fortalece.
ZEIT: O seu presidente, François Hollande, deixou recentemente de criticar o pacto fiscal.
Piketty: É coisa que não melhora nada. Se, nos anos passados, as
decisões na Europa tivessem sido tomadas por meios mais democráticos, a
atual política de ARROCHO na Europa seria menos rígida.
ZEIT: Mas nenhum partido político francês está envolvido nessa discussão. Na França, a soberania nacional é coisa santificada.
Piketty: É verdade. Há muito mais gente na Alemanha dedicada a pensar
em meios para restabelecer a democracia europeia, na comparação com a
França e seus incontáveis crentes da religião da soberania. E mais:
nosso presidente apresenta-se como prisioneiro do referendum de 2005
sobre uma Constituição Europeia, que fracassou na França. François
Hollande não compreende que muita coisa mudou por causa da crise
financeira. Todos temos de superar nosso egoísmo nacional.
ZEIT: Que tipo de egoísmo nacional o senhor vê na Alemanha?
Piketty: Em minha opinião, a Alemanha foi grandemente modelada pela
reunificação. Temeu-se durante muito tempo que levasse a estagnação
econômica. Mas afinal a reunificação foi grande sucesso, graças a uma
rede de segurança social funcional e a um setor industrial intacto.
Enquanto isso, a Alemanha passou a orgulhar-se tanto do próprio sucesso,
que agora dá lições de moral a outros países. Há certo infantilismo
nessa atitude. Claro que compreendo o quanto uma reunificação
bem-sucedida acrescentou à história pessoal da chanceler Angela Merkel.
Mas agora a Alemanha tem de repensar as coisas. Ou repensa, ou a posição
da Alemanha na crise da dívida passará a criar grave perigo para toda a
Europa.
ZEIT: Que conselho o senhor teria para a chanceler?
Piketty: Os que hoje tentam expulsar a Grécia para fora da Eurozona
acabarão na lata de lixo da História. Se a Chanceler tem interesse em
garantir para ela melhor lugar nos livros de História, como [Helmut]
Kohl, durante a reunificação, nesse caso cabe a ela forjar uma solução
para a crise grega, incluindo uma conferência para discutir a dívida, a
partir da qual poderemos começar de posição mais limpa, mais clara. Mas
com disciplina fiscal renovada, muito mais respeitável.
___________________________________________
[*] Thomas Piketty (nasceu em Clichy, França em 7/5/1971) é um
economista que se tornou figura de destaque no meio acadêmico
internacional com seu livro “O capital no século XXI” (2013), no qual
defende, através da análise de dados estatísticos, que o capitalismo
possui uma tendência inerente de concentração de riqueza nas mãos de
poucos. Sua obra mostra que, nos países desenvolvidos, a taxa de
acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico1.
Segundo Piketty, tal tendência é uma ameaça à democracia e deve ser
combatida através da taxação de fortunas.
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