sábado, 21 de novembro de 2015

Guerra contra o Estado Islâmico vai ser longa e em diversas frentes

Leneide Duarte-Plon, de Paris* na Carta Maior

A França declarou a guerra a um Estado (o Estado Islâmico ou Daech nas iniciais em árabe) que não é reconhecido como tal nem pela diplomacia francesa nem pela ONU. Os políticos franceses se referem sempre a ele como o « autoproclamado Estado Islâmico » para sublinhar sua ilegitimidade. Acentuando o ineditismo do momento, os atos de terrorismo classificados por François Hollande como « atos de guerra » cometidos por um « exército de terroristas » foram desencadeados por cidadãos franceses em sua maioria, atuando em território francês e pela primeira vez em ataques kamikazes.

Isso embaralha profundamente o quadro da declaração de guerra, levando diversos analistas políticos e juristas a indagar se os conflitos internacionais não mudaram profundamente de natureza. O primeiro-ministro Manuel Valls disse que essa é uma nova forma de guerra e vai durar por muitos anos. Segundo ele, um ataque com armas químicas ou bacteriológicas não está excluído, pois o Estado Islâmico já utilizou-as na Síria. Sabe-se que Daech tem enorme capacidade destrutiva e formou grupos combatentes em outros continentes, principalmente em diversos países da África.

No plano interno, François Hollande confiscou o discurso securitário da direita e do Front National, tomando a iniciativa de levar à votação antigas propostas de Sarkozy e Marine Le Pen. Satisfez uma opinião pública chocada com os atentados e tirou o tapete dos adversários.

Na quinta-feira, dia 19, a Assembleia Legislativa prolongou por mais três meses o estado de emergência e as pesquisas de opinião mostraram que 73% dos franceses pensam que o presidente esteve à altura dos acontecimentos dramáticos.

Em pouco tempo de existência, o Estado Islâmico, formado em sua origem por antigos militares e quadros próximos de Saddam Hussein ligados ao salafismo, já reivindicou muitos atentados. Os últimos atingiram em apenas 15 dias um avião russo, mataram dezenas de pessoas ligadas ao Hezbollah, em Beirute, e semearam o terror em Paris.

Alguns jornalistas franceses se dedicaram a cotejar o discurso de Bush após o 11 de setembro com o de Hollande depois dos atentados. Encontraram a mesma retórica. Hollande disse solene : « Fomos atacados por um exército jihadista que nos combate porque a França é um país de liberdade, porque somos o país dos direitos humanos ». Bush garantira que o terrorismo atacou os Estados Unidos « porque somos a casa e os defensores da liberdade ».

Nas redes sociais, muitos franceses preferiram repetir essa ideia de que são atacados por suas qualidades, não pelos efeitos deletérios de guerras em que o país se engajou e de uma diplomacia em que a venda de armas a países como o Egito e a Arábia Saudita é uma lógica que prima sobre a defesa dos direitos humanos.

A França está em guerra?

Por enxergar na declaração de guerra uma situação inédita e mesmo paradoxal, o jornal Libération deu espaço ao filósofo Etienne Balibar e ao cientista político Bertrand Badie para responderem à pergunta  « A França está em guerra ? ». O primeiro responde que sim e o segundo que não.

Etienne Balibar  afirma « nós estamos na guerra ». A guerra atual é, segundo ele, o fruto das invasões e intervenções feitas no Oriente Médio após o 11 de setembro, das rivalidades regionais, das minorias oprimidas, das fronteiras traçadas abitrariamente desde o fim do império otomano em 1924, dos recursos naturais expropriados e dos contratos de armamentos.

O filósofo assinala a barbárie instalada pelo Estado Islâmico mas não deixa de lembrar que outras barbáries « aparentemente mais racionais proliferam também, como a guerra dos drones do presidente Obama ». Ele diz estar provado que para cada terrorista assassinado pelos drones, nove civis são mortos.

« Nessa guerra nômade, indefinida, polimorfa, dissimétrica, as populações das duas margens do Mediterrâneo são reféns. Tanto as vítimas do atentados de Paris, quanto as dos atentados de Madri, Londres, Moscou, Tunis, Ankara e Beirute são reféns. Os refugiados que procuram a Europa em busca de asilo, morrendo muitas vezes no mar, também são reféns. Os kurdos metralhados pelo exército turco são reféns. Todos os cidadãos dos países árabes são reféns, presos entre o terror de Estado, o jihadismo fanático e os bombardeios estrangeiros ».

Para Bertrand Badie, a França não deveria se envolver numa história regional, fruto da desagregação de Estados do Oriente Médio, Síria e Iraque. Deste último, invado por uma coalizão ocidental em 2003, da qual a França se recusou a fazer parte, os Estados Unidos se retiraram militarmente em 2011. Mas com a volta da França à Otan, em 2009, o país começou a impor nova imagem também naquela região e, segundo Badie, hoje se tornou um alvo mais simbólico que os EUA.

Paris alia-se a Putin

Depois de acusar claramente os russos de bombardearem apenas o « Exército sírio livre » que combate Al Assad e não os objetivos do Estado Islâmico, a diplomacia francesa encontrou esta semana um terreno de entendimento com Putin. Essa aproximação se deu ao mesmo tempo em que o presidente russo reconheceu que o avião que caiu no Sinai foi vítima de uma bomba e anunciou que vai perseguir sem trégua os autores do atentado.

Até então russos e franceses estavam profundamente divididos sobre o apoio a Assad, protegido de Moscou, visto por Paris como carrasco de seu povo, sem condições de continuar à frente de um Estado que deve ser totalmente reconstruído depois da vitória contra Daech.

Com a aproximação franco-russa, o Estado Islâmico vê o cerco se fechar contra ele. Estados Unidos, Rússia, Irã, Hezbollah, França, Síria e Turquia ficaram surpreendentemente do mesmo lado contra o inimigo comum, que na véspera dos atentados de Paris atacou com kamikazes um dos bairros de Beirute em que o Hezbollah tem mais influência, cerca de 40 mortos. Apesar da carnificina, o ataque ocupou pequeno espaço na mídia mundial. « Por acaso uma vítima árabe vale menos que uma vítima francesa ? », perguntava à TV francesa uma jornalista libanesa defensora dos direitos humanos.

Vai ser difícil para o Estado Islâmico vencer aliados desse calibre, apontados pelo discurso djihadista como uma a nova cruzada contra o Islã. Mas antes de ser derrotado, ele tem condições de preparar atentados que sobem sempre uma escala na capacidade de destruição.

Herança colonial da França

Essa guerra assimétrica em que os franceses combatem um inimigo estruturado de forma totalmente nova remete imediatamente à herança colonial do país, como lembrou o poeta sírio Adonis. Ele pensa que esses jovens que se entregam a esse ódio contra a França são parte da « memória da colonização, das feridas argelinas ».

Basta conhecer um pouco a história da guerra da Argélia para entender a alusão a um conflito em que a França perdeu um território colonial mas também perdeu sua alma ao ceder à tentação da tortura e das execuções sumárias a fim de vencer os independentistas argelinos. Depois dos atentados de janeiro, o primeiro-ministro chegou a reconhecer uma forma de apartheid vivida por algumas populações na sociedade francesa.

Esses jovens tentados hoje pelo djihad são fruto de rancores identitários que se juntam a uma visão simplista e binária do mundo. Aderem a uma ideologia que lhes promete existir, dando sentido a existências fraturadas psicológica e socialmente.

Em entrevista ao jornal Le Monde, o psicanalista Fehti Benslama, que utiliza a psicanálise para entender o mundo islâmico, apontou o que sustenta o fenômeno do mártir do atentado suicida :

 « Ele quer sobreviver ao desaparecer. Para o candidato ao martírio, não é um suicídio mas um autosacrifício, uma transferência pelo ideal absoluto para a imortalidade”.

* Leneide Duarte-Plon é jornalista, trabalha em Paris e é co-autora, com Clarisse Meireles, da biografia de frei Tito de Alencar, Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar.




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