Por Guadi Calvo, no site Vermelho. Transcrito do blog do Miro.
Por
fim a dúvida que pairava sobre os argentinos se esclareceu: o próximo
presidente do país será o ultraliberal Mauricio Macri. À luz dos
resultados do último domingo (25), deixa-se claro uma coisa: nada, mas
nada pode ser dado por certo.
A mínima diferença entre as duas
forças – um com 51,40% e o outro com 48,60% – deixa bem claro que o
famoso boato que anunciava que o kirchnerismo estava acabando não está
certo, ele segue muito vivo e é muito difícil que comece a ruir,
principalmente se o novo presidente insistir com suas políticas de
arrasar com tudo que foi construído nos 12 anos.
Na
segunda-feira (23) depois das eleições, o candidato eleito já mostrou
suas garras, falou sobre cortar relações com a Venezuela. Por suas
disputas com a oposição, nos leva a crer que sem dúvida haverá um giro
completo aos Estados Unidos, ao passo que deixará muito nervosos os
vários empresários argentinos que exportam para a Venezuela cerca de US$
2 milhões ao ano.
A respeito da nomeação de seu ministro da
Economia, trata-se de definir um pouco sobre como será sua política,
falou de um gabinete com seis ministros na área. Artimanha usada para
conseguir esconder o temido Carlos Melconian, de uma personalidade fora
de órbita, que já havia anunciado medidas como cortes de gastos públicos
e demissão de servidores durante a campanha, motivos pelos quais foi
silenciado.
Durante todos estes anos, Melconian, braço direito
de Domingo Cavallo (o homem que levou o país ao inferno), se dedicou a
açoitar o governo de Cristina Kirchner desde o meio da oposição – que
não era pouca – prevendo terremotos econômicos que nunca aconteceram.
Em
suas declarações como presidente eleito, Macri também mencionou uma
aproximação à Aliança do Pacífico. E a respeito das declarações do
jornal conservador La Nación – que pedia não só para terminar com o
julgamento dos genocidas da ditadura, mas também fazer algo para que os
mais de 300 que já estão cumprindo suas penas sejam liberados – a
resposta de Macri (que se viu numa posição muito desconfortável, há que
recordar que seu pai Francisco Macri, aumentou consideravelmente sua
fortuna em negócios com a ditadura entre 1976-1983) foi morna e muito
distante de uma contundente reprovação, o que o deixa aberto para
qualquer decisão.
A ousadia de Macri, em sua primeira coletiva
de imprensa, anuncia tempos muito instáveis para o país, afinal, se
esperava uma certa cautela, mas não foi assim. Suas decisões
fundamentalmente econômicas podem chegar a atingir rapidamente sua base
eleitoral, e isso não parece preocupá-lo em demasia. Já agora deixa
claro quais serão seus passos-chave na economia: forte desvalorização,
flexibilização trabalhista e eliminação de paridade, só resta saber se
vai acontecer imediatamente ou de forma gradual.
Macri assume
muito debilitado, com minoria de senadores e deputados, com 16
governadores peronistas e uma base eleitoral peronista/kirchnerista de
49%, que não é pouco e se prevê que logo no começo do novo governo
muitos de seus votantes comecem a se lamentar, mesmo sendo tarde para
lágrimas. Inclusive seus aliados políticos devem começar a se queixar da
pouca presença de seus quadros na estrutura do novo governo.
Macri
precisaria de cerca de 12 mil pessoas para cobrir os postos essenciais
tanto em nível nacional, como na província de Buenos Aires e na Capital
Federal. Não é segredo para ninguém que seu partido Proposta Republicana
(PRO) não conta nem por sonho com essa quantidade de possíveis
funcionários. Fato que obrigaria o futuro presidente não a recorrer aos
membros da União Cívica Radical, seu principal aliado, mas aos
executivos e empregados do setor privado.
Sem dúvida o novo governo seguirá apoiado no tripé que lhe deu êxito: os meios de comunicação, o mercado e o poder judicial.
Os
meios de comunicação que construíram ao seu redor um guarda-chuva
protetor que o permitiu não só esconder seus problemas e ações de
corrupção de seu governo na capital argentina, mas que não se cansaram
de lançar uma artilharia pesada contra o governo federal em exercício.
O
mercado que fez o jogo permanente das corridas bancárias, altas
artificiais do dólar e até chegou a obrigar os funcionários dos bancos e
empresas como Santander-Rio a fiscalizar as eleições, camuflados de
militantes do PRO.
O terceiro pé macrista foi o Poder
Judiciário, que com uma corja de juízes e corrupções, conseguiu impedir o
cumprimento de leis importantes sancionadas pelo Poder Legislativo,
como a famosa e discutida Lei de Meios, que regulava o holding Clarín,
responsável por articular todas as estratégias políticas, econômicas e
midiáticas contra o governo. Juízes provenientes da ultradireita, com
sérios antecedentes de violência politica nos anos mais cruéis da
Argentina, que realizaram investigações espetaculares contra
instituições governamentais e empresas relacionadas de alguma forma à
presidenta.
Macri assume sabendo que em poucos meses este tripé
será seu único respaldo. Que vai cumprir pouco ou nada com suas
promessas eleitorais, fundamentalmente as relacionadas a manter muitos
dos benefícios sociais criados pelo atual governo.
A coalizão
Cambiemos, em seu desespero por alcançar a vitória eleitoral, não evitou
prometer uma infinidade de resoluções que já sabia de antemão ser
impossível cumprir. A cada setor social, a cada setor empresarial, a
cada setor sindical prometeu muitas coisas. Com o decorrer do tempo não
só não vai cumprir, mas também pode ser que se vire contra estes mesmos
setores de agitação social, que sem dúvida começarão a ocupar as ruas
novamente.
Os mercados, a banca internacional, sabem que têm
pouquíssimo tempo para operar na Argentina, apesar de ser muito cedo
para começar a pensar em 2019 (próxima eleição presidencial), em 2017
acontecem as eleições onde se renovam parcialmente as câmaras
legislativas, as quais certamente o macrismo não poderá ter aspirações,
dada a pequena diferença eleitoral com seu opositor e o desgaste que já
terá de dois anos de governo. Sendo assim, o mercado terá que saquear o
Estado de forma urgente e sem anestesia para privatizar, vender e se
endividar o máximo possível, já que hoje o país está sem dívidas e será
muito fácil conseguir créditos.
Apesar de ter falado que sua
primeira visita oficial será ao Brasil, seu sócio econômico e político
mais importante da Argentina, deseja ansiosamente a desestabilização do
governo de Dilma, inclusive que caia antes do fim, pois será mais fácil
negociar com seus sucessores.
A polarização
Com
este panorama, acredita-se que a famosa “polarização” que divide os
argentinos não vai diminuir, mas com certeza se aprofundar. Já falou
sobre isso um dos principais arquitetos deste projeto, o famoso
jornalista Jorge Lanata, um mercenário do grupo Clarín: “a polarização
não vai diminuir nem em anos”, talvez esta seja a única verdade que saiu
de sua boca nos últimos tempos. Por via das dúvidas, já anunciou que
vai embora para os Estados Unidos em 1º de dezembro. Soldado que foge...
As
feridas são muitas e doem profundamente, a oposição que se protegeu
atrás do candidato que considerou os meios e o establishment em geral:
Macri esteve disposto a permitir e aceitar todos os boatos contra o
governo como uma verdade revelada. Desde burlar a morte de Néstor
Kirchner a uma infinidade de acusações de corrupção contra a presidenta,
seus funcionários e até familiares, sem que nenhuma pudesse ir adiante
para além da artificialidade graças à cumplicidade de muitos juízes
cooptados material e/ou ideologicamente pelo antiperonismo.
A
presidenta Cristina Kirchner se retira com mais de 54% de aprovação,
fato inédito na história da Argentina, que lhe habilita a se converter
na primeira presidenta do país que depois de liderar um projeto de 12
anos, tem condições morais e políticas para ser a líder da oposição.
Apesar
das pesquisas que davam a sensação de que desta vez o kirchnerismo
levaria uma grande surra, a que tantos desejavam, não foi assim que
aconteceu. Ao contrário, mesmo que o governo tenha perdido, deixa aberta
uma ferida para o futuro presidente: esses 49% de votos genuínos de
militância própria ou de aliados ideológicos, já que os partidos que
compõem a Frente Para a Vitória (nome oficial do projeto kirchnerista)
são peronistas e de esquerda, além de organizações sociais que apesar de
irrelevantes na hora da soma de votos, e também na repartição de
cargos, acompanham o projeto por cunho puramente ideológico.
Não
é o mesmo que acontece com a aliança Cambiemos, composta
fundamentalmente por dois partidos: o PRO, fundado pelo Macri em 2005 e a
centenária União Cívica Radical (UCR) que em seus mais de cem anos de
vida, apesar de ter tido sete presidentes, apenas dois terminaram seus
mandatos; o último foi Marcelo Alvear, em 1928. Foi historicamente o
rival do peronismo, mas jamais conseguiu seu lugar na história argentina
e mesmo vangloriando-se de seu republicanismo, foi colaborador de todas
as ditaduras. Fato que lhe permitiu uma certa subsistência, abandonando
às mãos do peronismo o discurso popular e nacional que lhe deu origem
em 1891, para se converter mais por azar que por vontade – já que há
mais de meio século não existe um partido conservador – no representante
da burguesia e dos setores médios.
Junto ao peronismo, o
radicalismo é o único partido com representatividade territorial, que
ocupa muitas regiões e de vez enquanto algum governo. Esta foi a leitura
que fundamentou a coalizão Cambiemos, já que o PRO até agora não tinha
conseguido sair dos limites da cidade de Buneos Aires, que governava
desde 2007.
Macri sabe muito bem que a inesperada eleição da FPV
o amarra ao seu tripé de poder e o convertem em um refém de seus
aliados, não só os radicais, mas também alguns partidos das províncias e
alguns sindicalistas peronistas como Hugo Moyano e Luós Borrionuevo,
excepcionalmente dotados de ações mafiosas, comprometidos com a
corrupção em grande escala e responsáveis por todas as greves,
paralisações e protestos que acometeram o governo de Cristina.
Estes
“bons moços” não fazem favores gratuitos e sem dúvida já estão
negociando regalias para suas empresas (ambos têm importantes
empreendimentos nas mesmas áreas que dizem representar: Moyano é dos
caminhoneiros e controla várias empresas de transporte e Barrionuevo é
dos cozinheiros e entre seus muitos empreendimentos é o dono do
restaurante de comida japonesa mais caro de Buenos Aires). Estes
sindicalistas também são acusados de ter pertencido à Aliança
Anticomunista Argentina (AAA), uma organização parapolicial que se
incorporou à ditadura em 1976; sonham, desde essa época, em conseguir o
Ministério do Trabalho para eles ou alguns de seus lacaios.
O
dilema do kirchnerismo é agora sobre quanto tempo Cristina levará para
passar para a contraofensiva, quão debilitada sairá do grupo peronista e
se vai conseguir continuar controlando-o (muito difícil) ou vai emergir
em uma nova liderança.
Muitos estão interessados em comparar o
candidato derrotado, Daniel Scioli, com Lula e suas épicas derrotas
antes de se consagrar presidente do Brasil. As diferenças entre ambos
são abismais: Scioli, na verdade, sempre foi um homem da estrutura do
peronismo, que quase fez carreira. Nos praticamente 20 anos que trabalha
na política, não conseguiu montar um grupo de aliados e muito menos o
fará agora.
Uma das últimas notícias que chamou muita atenção
foi a renúncia do atual presidente da UCR, Ernesto Sanz, que aspirava à
chefia do Gabinete, mas só lhe ofereceram o Ministério da Justiça, um
posto de segundo, ou terceiro nível. Sanz não só rechaçou o cargo, como
renunciou à Presidência do radicalismo. Fato que praticamente significa o
abandono da política. O que mais chama atenção é que foi o grande
articulador da aliança PRO-Radicalismo. A versão oficial afirma que sua
renúncia está ligada a graves problemas familiares. Alguns jornalistas
políticos falam que seu passo à margem se deve à sua irritação com o
cargo oferecido, mas outras fontes sempre bem informadas falam que Sanz
pode ter sofrido extorsões pelos aliados de Macri, por ter informações
muito secretas de atos de corrupção e questões mais privadas.
O novo governo assume em 10 de dezembro, uma data que marcará o início de um novo inferno para a Argentina.
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