quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O escândalo e roubo da dívida grega

Vicenç Navarro no Carta Maior
  
Vimos durante as últimas semanas uma campanha midiática mobilizada para aterrorizar o eleitor grego a fim de que não votasse na coalizão de partidos de esquerda conhecida como Syriza – uma campanha que também vimos aqui na Espanha, na qual o objetivo era assustar o eleitorado espanhol, ressaltando o desastre que seria para este país caso partidos de esquerda como Podemos ou Esquerda Unida (que são considerados homólogos politicamente ao Syriza na Grécia) ganhassem as próximas eleições para as Cortes Espanholas, que ocorrerão no fim do ano.

Grande parte dessa campanha midiática consistiu em deturpar as intenções dos que são considerados adversários ou inimigos, aos quais é preciso destruir. Uma dessas deturpações foi dizer que, se o Syriza ganhasse as eleições, este partido não pagaria a dívida pública, e com isso os mercados financeiros deixariam de emprestar dinheiro à Grécia, com o conseguinte colapso financeiro que forçaria aquele país a sair do euro. Nessa avalanche de falsidades, ignoram-se muitos fatos que deveriam ser revelados para se entender melhor o problema da dívida grega e a resposta do Syriza. Vejamos, em primeiro lugar, como a dívida grega foi gerada.

Por que o grande crescimento da dívida pública grega

A Grécia viu crescer sua dívida pública de uma maneira muito rápida, passando de cerca de 100% do PIB, quando se iniciou a Grande Recessão, para 174% do PIB em 2014. Houve uma ligeira queda em 2012 devido à reestruturação da dívida, acordada entre os credores e o governo grego, mas em 2013 continuou crescendo até chegar aos níveis atuais.

Agora, quando analisamos a situação da dívida pública de um Estado, é importante considerar não apenas o tamanho da dívida pública, mas também o custo que representa para o Estado pagar tal dívida e quem é o proprietário da mesma. Se olharmos cada um desses dados veremos que, ainda quando o tamanho da dívida pública tenha aumentado, o volume dos juros que o Estado grego paga pela dívida, na realidade, foi diminuindo: de 7% do PIB em 2011 para 4,3% do PIB em 2014. Uma cifra, por certo, inferior à de Bélgica e Itália (que é de aproximadamente 5-6% do PIB). A Espanha, com uma dívida pública menor que a grega (cerca de 100% do PIB), destina 3,5% do PIB ao pagamento de juros da dívida (menos que a Grécia) – o que não deixa de ser surpreendente, pois o que custa ao Estado espanhol pagar pelos juros da dívida é apenas ligeiramente inferior ao que custa à Grécia. E a Espanha tem, de fato, uma porcentagem muito menor da dívida pública do que a Grécia. Como isso é possível?

A resposta para essa pergunta é que os proprietários da dívida pública da Grécia deixaram de ser os bancos privados (sobretudo os alemães e franceses, ainda que também os espanhóis) e passaram a ser o Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e os Estados da zona do euro, incluindo a Espanha (através do chamado Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, FEFF). Hoje a grande maioria da dívida pública grega é de instituições públicas, a saber: o FEFF (formado por 17 países da UE, entre eles a Espanha), com 60%; o Fundo Monetário Internacional (FMI), com 10%; e o Banco Central Europeu (BCE), com 6%. Na Espanha, no entanto, segundo dados do Tesouro Público, a grande maioria da dívida pública é dos investidores estrangeiros (48%). O resto é dos bancos espanhóis (30%), das companhias de seguros privados (7%), dos planos privados de previdência (7%), e 8% da Previdência Social.

Por que a troika comprou dos bancos privados a dívida pública grega?

Na Grécia, essa mudança de privado para público significou uma transformação na evolução da dívida. As condições de pagamento acordadas teriam sido muito mais difíceis de alcançar se as negociações da reestruturação da dívida tivessem se dado primordialmente com os bancos privados.  Não foi assim. Foi com a troika. Em tais negociações, permitiu-se uma queda dos juros, uma extensão dos vencimentos da dívida pública e uma entrega dos benefícios diretamente ao governo grego, sem o BCE retê-lo. Essas mudanças explicam a queda do custo dos juros da dívida.

Essas mudanças puderam ocorrer às custas de que a propriedade da dívida pública passasse de mãos privadas a mãos públicas mediante a compra – por parte do BCE, do FMI e dos estados europeus – dos bônus públicos que os bancos privados tinham. Essa compra da dívida pública gerou também um aumento do tamanho da dívida e respondeu à necessidade de resgatar os bancos privados (alemães, franceses, espanhóis, entre outros), que estavam cheios de dívida pública até o pescoço. Daí que, quando parecia que o Estado grego entraria em colapso, a troika interveio para evitar o dano aos bancos privados, comprando sua dívida e facilitando o pagamento por parte da Grécia. Como bem disse o diretor adjunto do Financial Times, Martin Wolf, os fundos da troika, em suas compras da dívida pública aos bancos privados, não eram “para ajudar a Grécia, mas para ajudar o setor financeiro privado que abandonara a Grécia” (entrevista ao jornal ARA, 01.01.15).
A raiz do enorme problema da dívida pública era e continua sendo o sistema bancário europeu e as normas do governo do Banco Central Europeu. Este, o BCE, compra dívida pública dos bancos privados a preços altíssimos – consequência do fato de que o mesmo BCE não pode comprar (segundo suas normas) dívida pública do Estado grego diretamente. E, para maior escândalo, os bancos privados haviam conseguido o dinheiro para comprar a dívida pública grega nada menos do que no mesmo BCE, a juros baixíssimos. Mais que um escândalo, é um roubo e um parasitismo do público pelo privado. E chamam isso de “resgate da Grécia”, quando é um resgate do sistema financeiro privado europeu, que inclui desde os bancos privados gregos até o resto dos bancos europeus.

Por que a dívida grega continua crescendo?

A compra dos títulos públicos pela troika foi um enorme resgate dois bancos privados por preços exorbitantes. Essa é a causa do contínuo crescimento da dívida pública grega. Portanto, os proprietários da dívida deixaram de ser bancos privados para serem instituições públicas, pois a compra do primeiro foi por parte dos segundos. Em outras palavras, para evitar as perdas dos bancos europeus, entre outros, o Estado espanhol acabou comprando títulos gregos pelo valor de mais de 30 bilhões de euros por meio do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira.

Economistas “catastrofistas” não disseram nada sobre esse roubo. Em vez disso, assustam os espanhóis dizendo que, se o Syriza ganhar as eleições, seu governo não pagará a dívida ao Estado espanhol, e cada cidadão perderá 300 euros, cifra a que os catastrofistas chegaram dividindo o total da dívida pública que o Estado espanhol possui entre o número total de espanhóis. Esse cálculo foi vastamente manipulado, pois há o dado fundamental que citei, ocultado (ou provavelmente desconhecido por tais catastrofistas), de que o dinheiro emprestado ao Estado grego por parte do Estado espanhol era, na verdade, parte do pagamento dos famosos resgates dos bancos periféricos da zona do euro (no caso da Grécia, servia para que o Estado pudesse pagar os bancos privados, que eram os maiores proprietários da dívida pública). Dessa forma, hoje a dívida grega é uma dívida pública adquirida em grande parte para que o Estado grego pudesse pagar os bancos privados. O que não se disse é que os 300 euros (na realidade, 600) que o cidadão espanhol emprestou ao Estado grego foram para pagar os bancos estrangeiros, incluindo os espanhóis, que tinham enormes quantidades da dívida pública grega. As prejudicadas foram as classes populares gregas, que tiveram que sofrer enormes cortes de gasto público para pagar os juros da dívida pública, e também os cidadãos de outros países. Tudo isso para pagar os bancos estrangeiros (especialmente os alemães, mas também franceses e espanhóis). E agora tais catastrofistas tentam jogar os cidadãos espanhóis contra os cidadãos gregos, dizendo que se o Estado grego não pagar a dívida, o cidadão espanhol perderá 300 euros.

Por que tal sistema de governo do euro se reproduz?

Na realidade, tudo isso é para o benefício e a glória dos bancos privados. Tudo, repito, tudo poderia ter sido evitado se o Banco Central Europeu tivesse sido um Banco Central em vez de ser um lobby dos bancos, sobretudo alemães. A hipertrofia da dívida pública grega se deve principalmente ao fato de o BCE não ter ajudado os estados (como teria feito qualquer Banco Central), protegendo-os contra a especulação dos mercados financeiros, comprando suas dívidas públicas. Parece que, por fim, o BCE o fará, ainda que não diretamente, comprando a dívida dos bancos privados no mercado secundário. Por que demoraram tanto? Porque a situação dos bancos está ótima. E os Estados periféricos, bem como as classes populares, estão péssimos.

O governo Syriza tem razão

Como consequência disso tudo, é lógico que um governo grego peça uma auditoria para saber como, quando e quem gerou tal dívida. Uma auditoria, por certo, que não é apenas permitida, senão inclusive exigida pelas normativas da UE e do Parlamento Europeu, e segundo as quais a auditoria é exigida quando se fizer uma reestruturação da dívida. A troika foi precisamente quem descumpriu essa norma na última reestruturação da dívida, pois tal auditoria teria mostrado a ilegalidade das condições que a troika impôs à Grécia. É justo e necessário que haja uma demanda pela auditoria da dívida junto com a renegociação dela. Inclusive, o diretor da reestruturação da dívida grega em 2012, Charles Dallara, está de acordo com isso. Suas declarações recentes são, de fato, favoráveis à proposta do Syriza. Mas nada disso aparece nos meios de comunicação, que estão mobilizados para aterrorizar a população grega e espanhola. Na realidade, a troika não poderia ter imposto as condições que impôs à Grécia pois, como observou Eric Toussaint, suas condições violam tanto o Tratado de Funcionamento da União Europeia como sua Carta Social, incluindo também a Carta de Direitos Fundamentais da UE.
Uma última observação. A ênfase na dívida tirou a atenção dos meios de comunicação, que não deram visibilidade suficiente a outros responsáveis pelo crescimento da dívida, como o enorme domínio do Estado por uma estrutura oligárquica – o que levou a Grécia à ruína, conforme indiquei em meu artigo anterior (ver: O que acontece na Grécia [e na Espanha]”, Público, 14.01.15). Tal dívida não pode se estender sem a cumplicidade dessa estrutura de poder com os interesses financeiros estrangeiros, uma situação semelhante à que ocorre na Espanha.




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